[21h48 | Turno 0] – O que é que eu vou jogar hoje? Bem, já aqui tenho o novo 4X do Jon Shafer há semana e meia, deixa cá experimentá-lo.

[22h12 | Turno 28] – Ok, acho que já estou a perceber o sistema de clãs, mas está-me mesmo a faltar madeira.

[04h15 | Turno 493] – Já são 4 da manhã e eu amanhã tenho de estar no escritório cedo! Será que ainda dava para fazer mais um turno?…

Uma situação destas não é incomum para os fãs de 4X. Quantos jogadores de Civilization perderam noites de sono apenas porque “é só mais um turno” e cada um deles é tão curto que quase nem se dá pela sua passagem? Foi, decerto, o que aconteceu a Jon Shafer, que começou a sua vida como um grande fã de História e de Civilization e viria a progredir na Firaxis até ser o designer principal da quinta iteração da famosa série criada por Sid Meier.

A quantidade de novas ideias que Shafer introduziu mostrou que o jovem criador podia agitar um género que há muito estava solidificado, para o bem e para o mal. E foi com essa promessa que saiu da Firaxis, entrou na Stardock e saiu de lá dois anos depois para criar o Kickstarter para o seu projecto pessoal, At the Gates, em 2013.

Na Paradox desde 2017, Shafer esteve a produzir o seu At the Gates no seu tempo livre, e finalmente neste início de 2019 o (potencialmente) diferente 4X chegou ao Steam. Verdade seja dita, Jon Shafer’s At the Gates é realmente diferente de qualquer outro jogo do género, e senti que após hora e meia de jogo é que o conceito subjacente acabou por vir ao de cima.

Em Jon Shafer’s At the Gates vivemos um momento específico da História, o da fragmentação do Império Romano e da expansão dos povos nómadas. O nosso objectivo de vitória é duplo: ou destruir de vez o Império, ou conquistá-lo e comandá-lo.

Estamos habituados a olhar para os 4X pelo valor colectivo das características únicas das nossas unidades, do que contribuem para a nossa facção e para a nossa progressão. Mas até hoje nunca senti que um 4X me permitisse deixar de ver a minha facção como isso mesmo: um lado plural, um sobrevoo sobre a diferença do grupo para o indivíduo. Os nossos construtores, colectores, diplomatas, soldados e agricultores são isso mesmo: uma construção esterotipada que serve apenas como bloco individual de somatório para o todo que é a nossa civilização.

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Um interlúdio para ouvirmos uma das bandas e um dos álbuns mais influentes da sonoridade do death metal melódico de Gutemberg.

Estamos de volta

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Com At the Gates, Jon Shafer quis ir mais longe, aproximando a lupa da gestão da nossa civilização até ao indivíduo, indo do geral para o particular. O que faz sentido na temática geral nomádica de todo o jogo, em que controlamos os muitos povos que foram ganhando terreno perante a queda do Império Romano.

A nossa colónia é constituída por clãs nómadas que se vão progressivamente juntando. Eles constituem um dos elementos roguelike do jogo, já que trazem características passivas que alteram a forma como podemos “contar com eles” na nossa sociedade. A aleatorização destes elementos pode originar clãs com bonificações extremas que nos facilitarão, e muito, o trabalho em algumas áreas, ou clãs verdadeiramente inúteis e que só criarão distúrbios, desordem e feudos com os restantes clãs.

Se um dos elementos fulcrais do género, na visão colectiva habitual, é o de ter as profissões relativamente generalistas e regra-geral imutáveis, Jon Shafer decidiu criar um sistema dinâmico e em constante mudança, que nos obriga a estar sempre a repensar a utilidade dos nossos clãs.

Cada clã, para além dos traços que não mudam e que são aleatoriamente criados, e os desejos internos que vão surgindo à medida que o jogo progride (e que se não forem respeitados tornar-se-ão fonte de ressentimento) pode ser ensinada numa disciplina e numa profissão. As disciplinas existem de base, e são 6, mais ligadas a componentes sociais, manuais ou intelectuais. As bonificações inatas de cada clã (e a sua inclinação natural) podem mais ou menos direccionar-nos nestas escolhas, mas depois de largas horas em Jon Shafer’s At the Gates senti que vamos precisar de nos reajustar. As profissões, essas, vão sendo desbloqueadas à medida que as pesquisamos.

Quando mais tempo um clã está numa disciplina e na profissão que lhe está interligada, maior nível terá, até um máximo de 10. Mas já que o jogo nos permite re-treinar os clãs em profissões mediante as nossas necessidades ou os desejos dos próprios clãs, o único senão é que toda a experiência adquirida até então é deitada fora, e é feito um reset para que aprendam um novo métier.

Quase todos os 4X até então apresentaram-nos uma ideia generalista das profissões, na qual os construtores construíam todo o tipo de edifício e os recolectores apanhavam todos os recursos. A diferença aqui é que dentro da agricultura um clã treinado na ceifa consegue interagir apenas com cereais, enquanto que outro que aprendeu a recolecção sabe apenas como interagir com alimentos presentes em árvores e arbustos, mas não os sabe identificar se estes não forem conhecidos. Um lenhador consegue cortar árvores mas não consegue construir uma serração ou recolher minerais. Temos de estar constantemente a ajustar os nossos clãs perante o momento do ano em que estamos e o ponto da nossa civilização, treinando-os em profissões activas (que estão no exterior a cumprir uma determinada tarefa) e as passivas (que ficam “escondidas” dentro da povoação e que dão bonificações à produção e recolecção).

Jon Shafer’s At the Gates, como disse, está muito detalhado nos indivíduos, sendo os clãs a base de toda a jogabilidade. Este 4X está muito menos talhado para as construções e edificações, mas mais apontado para a gestão e adaptação que fazemos dos nossos clãs e dos recursos e geografia que nos foram aleatoriamente atribuídos.

A profundidade mecânica da geografia é imensa com alterações visuais e de game design à medida que as estações avançam. No Inverno os clãs que estão fora da povoação têm de passar turnos a encontrar suprimentos para a sua sobrevivência, já que durante a estação os hexágonos não os conseguem produzir por si só. A produção e a capacidade de movimentação caem nos meses frios, como acontece no mundo real, e isso obriga a uma série de decisões adicionais.

Tudo isto poderia ter uma barreira de acesso intransponível, não fosse Shafer ter incluído um sistema de informação contextual, uma espécie de wiki interna do jogo sempre que passamos sobre uma palavra. São estas explicações de toda a complexidade do que se passa em At the Gates que nos permitem apreender grande parte do seu todo em relativamente pouco tempo e é indubitavelmente uma das melhores inclusões neste título e que eu espero sirva de inspiração a jogos posteriores.

Jon Shafer’s At the Gates tem, porém, alguns senãos. O primeiro dele é a notória falta de necessidade de interagir com as restantes facções controladas por IA, renegando-se apenas a contactos superficiais de aliança ou beligerância. Até as trocas comerciais são feitas por caravanas e não entre facções. Com toda a atenção dada ao micro-detalhe do indivíduo da nossa civilização, tudo o que está fora dele com as restantes é apenas superficial. Como também é superficial a banda-sonora que acompanha todo o jogo, e que rapidamente desligamos por ser tão repetida. Alguns problemas técnicos assombram Jon Shafer’s At the Gates, sendo que o incompreensível número de saves (um a cada turno) tornam a ocupação de espaço em disco demasiado grande.

Mas é a profundidade mecânica, a inteligência de ter seguido uma direcção artística próxima da aguarela e o sabor diferente deste 4X que o torna, para mim, obrigatório para os fãs do género. Se o sistema de diplomacia e interacção entre facções for aprimorado (sendo que o combate é o mais clássico que o género poderia pedir), e certamente Jon Shafer’s At the Gates tornar-se-á o standard criativo para os jogos 4X.