Nunca Lovecraft e Cthulu tiveram tão grande (grande mesmo) homenagem sob a forma de jogo de tabuleiro.

Baseado no universo fantástico criado por Lovecraft, Cthulhu Wars de Sandy Petersen (sim o mesmo criador do clássico para PC Age of Empires, que também colaborou com os criadores de Doom e Quake) apresenta-se como um excelente ‘area control’ com partes de wargaming ideal para quem está a introduzir-se nos jogos de tabuleiro.

A experiência de Petersen no mundo dos tabuleiros vincou-se com o bem sucedido Kickstarter Cthulhu Wars da sua startup Petersen Games. Não deixa de ser curioso que o mesmo apesar de experiente neste mundo do entretenimento lúdico teve de aprender e certamente cometeu erros na criação do seu primeiro jogo, mas tal não invalida a sua escolha para atrair novos entusiastas especialmente aqueles que têm recentemente redescoberto a brilhante obra literária de Lovecraft.

Foi com Lovecraft que descobri um dos jogos que mais tenho jogado desde à dois anos até agora. Será interessante no entanto mencionar que Lovecraft só muito recentemente tem começado a ser ‘redescoberto’ e aclamado em massa como um dos grandes pilares do terror e literatura modernos. Face ao léxico muito rico em inglês aconselho aos interessados a experimentarem versões muito recentes traduzidas em Português de Portugal de Lovecraft.(Pessoalmente foi só com o velhinho Prisoner of the Ice para PC que entrei em contacto com o universo do temível Cthulhu). Howard Philips Lovecraft nasceu na Nova Inglaterra numa altura em que a razão científica já se encontrava razoavelmente bem disseminada na opinião pública. As suas histórias são das primeiras no universo fantástico e de terror a mencionar a real idade da terra em milhões de anos, remetendo para um tempo anterior à existência do homem, de um mundo habitado por entidades extraterrestres e extra dimensionais que coabitam entre si no globo terrestre alternando a sua existência ao longo do tempo com longos períodos de repouso e períodos de actividade quase sempre marcados por eras de terror. Os próprios humanos seriam então criados como adoradores conscientes de tais entidades ao longo de milhões de anos, não deixando de sentir o terror pelas mesmas muito depois de perecerem em sono letárgico. Esta ideia é fundamental para perceber porque é que no mundo de Cthulhu Wars não existem humanos. Os mesmos estão tão assombrados pelo terror e pela pequenez face à imensidão cósmica destas entidades quase supra naturais, que não marcam presença no jogo. É precisamente com estas facções de entidades ancestrais e poderosas que se desenrola o jogo de tabuleiro.

O jogo base que consta da versão de Kickstarter possui quatro facções. São essas: The Great Cthulhu, Crawling Chaos, Black Goat e Yellow Sign. Todas são muito assimétricas entre si e a estratégia que funcionar para uma facção não irá funcionar para outra. Isto no meu entender é extremamente positivo pois permite que jogadores com diferentes personalidades se manifestem em jogos de maneira a reflectir os seus gostos. O problema de se criarem estratégias de jogos diferenciadas resultando em assimetria acarreta o risco de haver uma facção que esteja mal ‘calibrada’ comparativamente às restantes. Até hoje só Vast conseguiu produzir na sua versão base personagens completamente assimétricas com mecânicas bem diferenciadas entre si e que conseguem mesmo assim manter um equilíbrio entre jogadores quase constante até à última jogada. Com a versão base de Cthulhu Wars só excluindo a facção de Yellow Sign (aconselhável para jogadores mais experientes) é que este equilíbrio se mantém.

A sua mecânica é simples, o que é um factor positivo a seu favor pois torna o jogo muito fluído e sem excepções que muitas vezes obrigam a parar a fluidez do mesmo. Em Cthulhu Wars temos quatro fases de jogo. A primeira passa pela acção  (action phase) onde nos expandimos e confrontamos directa ou indirectamente os outros jogadores através do controlo de espaço. Estas acções custam nos poder. O poder aqui é como que uma moeda que nos  permite ou criar novos portais de adoração ou movimentar tropas e declarar guerra. Seguidamente a todos os jogadores esgotarem os pontos de poder acumulados passa-se à fase de contagem dos mesmos e preparação para um novo turno (gather phase). Com a determinação do jogador que tiver mais pontos fica atribuída igualmente a posição de primeiro jogador; este por sua vez determina a ordem pela qual os jogadores começam o turno (se no sentido dos ponteiros do relógio, se contrário a este). Seguidamente a essa fase temos a Doom Phase que é aquela que de facto determina o fim do jogo. Cada portal controlado, após todos os pontos de poder terem sido usados, rende um ponto pelo que o primeiro jogador a chegar aos 30 pontos determina o fim do jogo. Durante esta fase podemos ainda fazer o ritual de aniquilação. Este é pago em poder pelo que o seu uso é altamente estratégico. Por cada Great Old One vivo (espécie de general da nossa facção em jogo) podemos tirar de um saco sem ver um Elder Sign que é um token com uma numeração que pode ir de 1 a 3. Podemos optar por esconder essa numeração e pontuá-la somente quando um jogador determina o fim do jogo ou podemos jogá-lo para precipitar o fim do jogo. Mais um vez é uma decisão estratégica que pode ou não ser tomada consoante o desenrolar da partida. Paralelamente temos a possibilidade de fazer seis upgrades às nossas facções à medida que vamos completando objetivos. Uma das condições para nos sagrarmos vencedores é precisamente ter as nossas facções devidamente desenvolvidas. Tais melhorias tornam cada exército ainda mais assimétrico e potencialmente mais poderoso na sua maneira de jogar.

Não obstante o jogo possui alguns problemas que não estão necessariamente ligados à mecânica de jogo.
O primeiro e que salta imediatamente mais à vista é o tamanho dos elementos de jogo. Como ouvi dizer cada jogador não joga com miniaturas à semelhança do que acontece com Mansions of Madness ou outros…. jogamos com ‘maxituras‘ ou pequenas estatuetas de plástico que fariam as delícias de qualquer negócio de extrusão de plásticos. As figuras são grandes… muito grandes.

À esquerda e à direita temos duas figuras de Mansions of Madness e Descent respectivamente, com cerca de 3cm de altura… atentem no tamanho do grande Cthulhu (trocadilho intencional)

É preciso um destes se quiseres ir jogar a casa dos teus amigos…

Seria um caso em que os ditos cubinhos e disquinhos de madeira se justificariam… mas sejamos honestos não era bem o mesmo sabor. Para tornar tudo pior tanto o jogo como as expansões saíram completamente fora de controlo de Sandy Petersen. Se não atente-se ao problema que foi Sandy Petersen ter ido a Essen em 2017 e ter durante dois dias de feira visto o seu enorme stock ter sido retido em alfândega para investigação enquanto os fãs esperavam pelos seus jogos.

Essen, 2017: Sandy Petersen fitou por dois dias a Senhora Morte-por-ataque-cardíaco (reza a lenda que em 2018 foi por uma velinha a Fátima)

Para agravar o jogo completo (com as expansões para oito jogadores) requer um pequeno porta paletes para ser transportado caso queiramos mostrar o jogo a um amigo. Para tornar tudo pior os fãs já pediram uma versão mais portátil pelo que a resposta foi… criar um board maior onde todas as estatuetas coubessem dentro das áreas controladas. Este jogo está completamente fora de controlo caros leitores… FORA DE CONTROLO!!!!!

Not so Triggered: ‘Estavas à espera de quê? É Ameritrash!!!! Devias-te ter ficado pelos cubinhos e disquinhos!’

O milking da vaquinha do dinheiro dos fãs chegou ao ponto de se fazerem dados de ‘Pains’ e ‘Kills’ (resultados decorrentes de combates declarados pelos monstros que invocamos para o tabuleiro através do gasto de poder)… diferenciado através de cores por facções!

Presentemente Cthulhu Wars possui quatro expansões que permitem que mais 4 jogadores joguem em simultâneo, no entanto a fação dos Tchoos Tchoos que tive oportunidade de experimentar é uma que desaconselho vivamente dado que a sua estratégia consiste fazer uma carapaça não se expandir nada e pontuar (mesmo muito) assim… sem fazer nada. Se tiverem um chimpanzé podem treinar para jogar com esta facção dado que tudo o que têm de fazer é rolar dados de defesa e decidir se e quando querem fazer rituais de aniquilação. No meu caso demorei cerca de 10 segundos por jogada e sem fazer nada de relevante cheguei a terceiro lugar. (A facção acabou por ser banida para um canto da estante do IKEA onde está a servir de tijolo para evitar que os jogos das prateleiras superiores desabem). Já as outras três expansões Windwalker, Opener of the Way e Sleeper são bastante acessíveis e possuem quirks que farão as delícias dos jogadores mais experientes.

Resumindo é um jogo altamente estratégico, altamente assimétrico/diversificado, simples de jogar (o que o torna excelente para novos jogadores) e está completamente imerso no tema do mythos lovecraftiano. Por isso no meu entender tenho-o em boa conta, mas percebo as críticas à sua falta de portabilidade física e o facto de uma das facções estar altamente desequilibrada comparativamente às outras. Não obstante, é um grande jogo que permite que um elevado número de jogadores (oito se pusermos todas as facções em jogo) se confronte pelos melhores lugares em tabuleiro. A arte está brilhante e as figuras são completamente over the top!