Não me culpem por voltar a fazer trocadilhos com Hotline Miami. Culpem antes a Devolver por estar constantemente a esforçar-se para reencontrar o filão de ouro ensanguentado que a série lhe conferiu, permitindo à provocadora editora indie chegar a um estatuto crítico e comercial que muitos invejam. Eu próprio começo a ficar sem trocadilhos para fazer, depois de Hotline Bananas, a referência a uma música dos The Smiths, ou a lembrança saudosa do Steven Seagal no grande ecrã. Tudo isto numa pequena porção de jogos que dentro e fora da Devolver, em vista aérea, na terceira pessoa, em 2D e 3D tentam emular o sucesso de Hotline Miami. Alguns são bons jogos por si só, outros não valem o dinheiro que os seus criadores pedem por eles.

Katana ZERO não. É um jogo da Devolver, a quadragésima aposta financeira da editora em suportar o desenvolvimento de um jogo sangrento e violento que emane laivos da aura de Hotline Miami, mas com uma diferença: Katana ZERO é muito bom.

Este jogo do estúdio Askiisoft é um cliché andante. Se esta afirmação na maioria das vezes é uma sentença de morte, em Katana ZERO pouca ou nenhuma mossa acaba por fazer. O nosso personagem é um samurai amnésico em ambiente urbano, que sempre que se deita na cama revisita o mesmo pesadelo da sua infância. Entre missões deita-se no divã do psiquiatra na esperança que este lhe dê o medicamento que procura diariamente, e pelo meio, se nós quisermos, ir descobrindo um pouco mais sobre o seu passado.

E digo que o ónus da descoberta reside sobre os nossos ombros porque existe uma inteligente forma do jogo nos dar espaço para respondermos e descobrirmos o que queremos, e quando queremos. Sempre que dialogamos com um personagem, existe uma barra que começa vermelha e que vai avançando até se tornar branca. Esta é uma barra de, digamos, paciência, e impulsividade no discurso. Se estivermos com pressa ou a conversa não nos interessar podemos responder na zona vermelha da barra o que normalmente resulta em respostas monossilábicas, evasivas e que comummente terminam a conversa de forma abrupta. Isto representa um quase tempo real do diálogo, em que se respondermos logo estaremos a cortar a palavra aos nossos interlocutores, mas se esperarmos que eles acabem de falar, chegando à barra branca, algumas opções de diálogo vão-se abrindo e vão permitindo descobrir mais sobre nós. Noutros casos o outcome do diálogo acaba por mudar ligeiramente o desenrolar do cenário.

Katana ZERO é, em todos os aspectos, um puzzle game disfarçado de action game. Com um sistema herdado de Hotline Miami de one-hit-death, cada gesto e decisão tem que ser devidamente ponderado, sob pena de termos de repetir todo o nível. O que no caso de Katana ZERO não é grande problema já que as sequências são relativamente pequenas, e mesmo que tenhamos dificuldade em alguma nunca vamos ter de investir doses frustrantes de tempo para as repetir.

A importância do nosso psiquiatra é maior do que imaginamos à primeira vista. Para além de ele nos estar a conduzir na nossa terapia, e de ser ele quem nos passa as pastas com os nossos alvos, é também a droga que eles no injecta que nos permite fazer as coisas extraordinárias que fazemos.

Cada missão é, na realidade, um planeamento do nosso protagonista, que calcula cada um dos passos até ao seu objectivo. Se conseguirmos fazer tudo sem morrer aparece-nos um “That should be it” como se depois de ele correr o cenário na cabeça, e de saber que ele funcionará, só lhe resta mesmo pô-lo em prática. Cada vez que perdemos voltamos tudo atrás e começamos tudo do início, como se estivéssemos a viver as muitas realidades possíveis, uma de cada vez.

Para além de podermos atirar objectos que apanhamos neste ambiente 2D, de podermos desferir golpes com a nossa katana e deflectir balas com ela, Katana ZERO permite-nos desacelerar o tempo graças à droga que o nosso protagonista é viciado, e que é fulcral nos momentos em que defrontamos diversos inimigos armados.

A direcção artística, a música e a pixel art de Katana ZERO são soberbos, ajudando a construir um excelente mundo com todos os pequenos detalhes que o tornam verdadeiramente memorável. Até em termos narrativos o jogo consegue ir revelando uma história coesa, interessante, assente em clichés mas elevando-se muito acima das nossas expectativas.

Apesar das limitações mecânicas, Katana ZERO consegue criar cada um dos seus níveis como um puzzle distinto por si só, criando um desafio constante em cada uma das suas onze missões. Artística e narrativamente interessante, encostar este título a Hotline Miami funciona apenas como percepção do seu ponto de origem, mas não explica o seu ponto de chegada: um dos mais interessantes e identitários descendentes do caminho aberto pelo famoso indie criado por Jonatan Söderström e companhia.