No meio de todos os pecados capitais da última season de Game of Thrones, há algo que os seus autores têm conseguido representar de forma inequívoca: o desespero das pessoas anónimas em tentarem pôr a salvo as pessoas que amam de perigos catastróficos, seja ele um exército de mortos-vivos aparentemente imparáveis, ou um dragão a incendiar todas as ruas da nossa grande cidade.
O sentimento de vulnerabilidade e de protecção dos mais fracos nem sempre foi representado de forma recorrente nos diversos media culturais, onde invariavelmente o ou a protagonista acabam por ter uma aura de invencibilidade à herói de acção dos 1980s.
Representar emocionalmente esse balanceamento do que um pai faria para defender um filho perante qualquer adversidade não é certamente uma tarefa fácil, nem de mostrar nem de exemplificar. Que o diga qualquer mãe ou pai (na acepção emocional do termo, não estritamente biológica) de todos os sacrifícios que levaria a cabo pela segurança dos seus filhos.
The Last of Us e The Walking Dead: the Telltale Series Season 1 mostram isso mesmo. Com tons semelhantes mas simultaneamente diferentes perante a super-capacidade do elemento protector perante a vulnerabilidade da criança (mas nenhum deles a atingirem os óbvios píncaros de diferença do mais recente God of War), estes são dois dos melhores exemplos videolúdicos de como o desespero pela protecção de alguém mais frágil que amamos pode ser representado.
A surgir de rompante, sem grandes floreados ou expectativas criadas, encontramos A Plague Tale: Innocence, que é, em muitos aspectos, a mais sólida representação deste desespero pela salvaguarda de outro que não nós. E fá-lo, no meu entender, de melhor forma, porque perante as ameaças quasi-sobrenaturais e humanas que povoam a França deste período, a protagonista que controlamos, Amicia, é apenas uma adolescente corajosa mas nunca sentimos que ela seja “poderosa” ao ponto de que a ameaça constante deixe de o ser.
A história de A Plague Tale: Innocence começa durante a Guerra dos Cem Anos entre Inglaterra e França, com a Peste Negra às portas. A família dos dois irmãos cujas vidas vivemos, Amicia e Hugo, são pequenos nobres franceses que logo no início se debatem entre as invasões inglesas ao seu território e a prossecução da Inquisição que quer “raptar” o filho mais novo por motivos que no início ainda não sabemos. Apesar de serem irmãos, há uma estranheza tocante entre Amicia e Hugo que mal contactaram um com outro ao longo das suas curtas vidas, já que o rapaz vive em isolamento devido a uma doença no sangue que o assola desde o nascimento.
Esta falta de uma ligação emocional forte a priori acaba por ajudar ao nosso envolvimento emocional em todas as provações que os dois irmãos vão passar, já que vemos ao longo do jogo este relacionamento a fortalecer-se ao ponto de Amicia valorizar mais facilmente o bem-estar do irmão do que o seu próprio.
Em fuga desde o início do jogo, Amicia e Hugo acabarão por encontrar mais uma série de crianças perdidas ou órfãs pelo caminho com as quais vão criar uma pequena comunidade. Para um jogo de longevidade média (dependendo da perícia/vontade de exploração o jogo pode chegar às 15 horas) é interessante a construção dos personagens, coesos, e que tornam toda a experiência mais palpável.
Visualmente este A Plague Tale: Innocence é possivelmente o jogo mais impressionante do ano até agora. É óbvio que a falta de abertura do jogo, com os espaços de deambulação limitados pelo level design ajudam a isto, mas é inegável que os Asobo Studios criaram aqui uma das maiores maravilhas visuais e técnicas deste primeiro semestre, o que acaba por ser uma tremenda surpresa tendo em conta o seu portefólio passado.
Sejam os jogos de luzes e partículas, as brilhantes modelações e animações dos personagens, os detalhes e construção do cenário, cada momento de A Plague Tale: Innocence é uma verdadeira maravilha artística, altamente bem optimizado, onde o nível de exigência gráfica nunca é assombrada por qualquer falha técnica.
Mecanicamente, pela furtividade de todo o jogo, é fácil de colocá-lo no cesto dos stealth games, ainda que à semelhança com Thief, que é a sua maior inspiração, A Plague Tale: Innocence seja sobretudo um tremendo puzzle game, onde as fragilidades dos protagonistas nos obrigam a utilizar todos os subterfúgios e utensílios para conseguir sobreviver.
Munida de uma funda, Amicia consegue utilizar esta pequena arma rudimentar não só para matar soldados com uma pedra certeira na cabeça, ou para os atordoar se eles tiverem um capacete colocado. Tem também a possibilidade de apanhar vasos e atirá-los para longe, para conduzir os guardas para longe dos seus percursos de vigia. Mas para além do crescente número de engenhos que vamos tendo à nossa disposição, a realidade é que existe um elemento narrativo e mecânico que acaba por ser aquilo que deu fama ao jogo nos meses que antecederam o seu lançamento: a vaga de ratos.
Se tecnicamente é impressionante ver como é que aquela verdadeira onda orgânica de ratos pretos de olhos vermelhos se move pelo cenário, torna-se curioso como é que os conseguimos incorporar na resolução dos puzzles do jogo. Esta maré de ratos é voraz, e devora tudo no seu caminho, irrompendo pelo solo como se de nada se tratasse, mas acabam por ter uma grande vulnerabilidade com a luz e o fogo. É com a utilização desses elementos que vamos “dirigindo” a movimentação dos ratos e muitas vezes fazê-los devorarem os soldados que nos ameaçam, em momentos visualmente cruéis mas que representam o desespero de sobrevivência de Amicia para manter-se a si e ao seu irmão Hugo vivos, levando à morte de forma cruel todos aqueles que os ameaçam.
O enredo, sólido, acaba por tornar-se ainda mais impressionante não só com as maravilhas visuais levadas a cabo, mas também com o excelente voice acting e sound design (e composição) aqui presentes. Os actores têm uma interpretação credível que encaixa na tensão constante de todo o jogo, e a banda-sonora, com composições clássicas expectáveis, acaba por ajudar a pintar a aura taciturna da luta pela sobrevivência dos dois irmãos.
Apesar de gostar de puzzle games mas os jogos de acção furtiva não serem a minha predilecção, tenho de admitir que a fragilidade de Amicia e a sua incapacidade de combater para além de conseguir atirar pedras de forma matreira fizeram de A Plague Tale: Innocence um dos poucos jogos do género a manterem-me investido ao longo da sua duração. Com um mundo artisticamente soberbo, um enredo surpreendente e um preço (39,99€) equilibrado para um jogo AA, A Plague Tale: Innocence é a maior surpresa deste primeiro semestre e um jogo obrigatório para todos os fãs de furtividade. Para além disso é a representação mais frágil da ligação e o desespero pela sobrevivência de dois personagens de qualquer videojogo que eu tenha jogado, com ideias interessantes em torno das suas mecânicas e do flagelo que assolou a Europa no Séc. XIV.