O Mundo evoluiu e continua a evoluir a uma velocidade estonteante. A tecnologia proporciona-nos mais e mais oportunidades, facilidades, sonhos concretizados, mas por outro lado também questões e desafios constantes. Não é novidade que a investigação tem desenvolvido imensos estudos associados à área nas mais diversas linhas de intervenção. A psicologia e a medicina não fogem dela e a verdade é que algumas das questões que mais se colocam são “Qual é ou será o impacto da tecnologia no desenvolvimento humano, nomeadamente naqueles que nascem nesta era tecnológica? Como devemos nós adaptar-nos a esta realidade? Quando devemos ou não dar ecrãs às nossas crianças?“.
Estas são questões pertinentes principalmente quando consideramos que o desenvolvimento humano é algo de elevada complexidade e sensibilidade. Apenas saberemos com total certeza os efeitos (negativos e positivos) desta nova fase quando chegarmos ao futuro das crianças de hoje, no entanto, é já possível prever alguns efeitos e factores para possível prevenção de risco no desenvolvimento, sendo importante também considerar quais virão a ser os factores de adaptação deste face a este novo mundo.
É notório pela investigação e na nossa vida enquanto figuras parentais, que os primeiros anos de vida são cruciais para o desenvolvimento humano não só ao nível cognitivo como físico. São por isso fundamentais as actividades, contexto e ambiente em que a criança se desenvolve. É certo que cada criança é uma criança, e que as condições da mesma devem ser adaptadas a cada caso, mas a verdade é que ao nível do desenvolvimento conseguimos compreender a margem daquilo que sabemos ser essencial.
Depois de se debruçar pela perturbação de adição aos videojogos em 2018, a Organização Mundial de Saúde trouxe agora em 2019 as “Linhas guia para a actividade física, comportamento sedentário e sono para crianças a baixo dos 5 anos de idade“. Nestas encontramos considerações relativas ao tempo que uma criança com idade abaixo dos 5 anos deve ter de actividade física, tempo de sono, e ainda o tempo máximo recomendado que as crianças nestas idades devem estar (ou não) em actividades sedentárias dependentes de um ecrã (incluindo videojogos).
Estas considerações foram baseadas na mais recente investigação sobre o assunto, tendo sido criadas com o objetivo de reduzir o sedentarismo infantil face ao aumento da inactividade física, a qual “foi identificada como um risco sério de mortalidade e grande contribuidor para o aumento de peso e obesidade”. Iniciativas como esta são importantes para fazer emergir uma maior segurança, adaptação e tranquilidade à população perante este assunto, dando-nos a conhecer algumas considerações no desenvolvimento base de gerações futuras. Aos que são amantes de videojogos, telemóveis, computadores como nós, é também uma informação útil já que sabendo tudo o que de bom estas actividades podem trazer (algo também realçado pela investigação), podemos por outro lado compreender como as podemos tornar equilibradas para nós e para os nossos filhos sem que isso afecte o seu desenvolvimento base e qualidade de vida presente e futura.
Segundo as considerações da OMS as crianças:
– com menos de 1 ano de idade:
- Devem estar fisicamente ativas em diversas fases do dia, principalmente em atividades no chão, estando pelo menos 30 minutos em posição de barriga para baixo no chão enquanto acordados.
- Não estarem restritos de movimentos por mais de uma hora de cada vez (em carrinhos, cadeiras altas, etc).
- Os ecrãs não são durante este período recomendados de todo. Quando estão sem fazer nada é encorajado que os pais possam ler, brincar ou estimular a criança.
- O período de sono deve ser entre 14 e 17 horas (entre os 0 e os 3 meses) e 12 a 16 horas (entre os 4 a 11 meses), incluindo as sestas.
– entre 1 e 2 anos de idade:
- Devem estar pelo menos 180 minutos numa variedade de actividades físicas.
- Não estarem restritos de movimentos ou sentados por períodos maiores do que uma hora.
- Para crianças de 1 anos o tempo de inactividade física passado a ver televisão, vídeos ou jogar videojogos não é recomendado.
- Para crianças de 2 anos o tempo de inactividade física passado a ver televisão, vídeos ou jogar videojogos não deve ser mais do que 1 hora por dia. Quando estão sem fazer nada é encorajado mais uma vez que os pais possam ler, brincar ou estimular a criança de outras formas que promovam a actividade motora ou contacto relacional.
- O período de sono deve ser entre 11 a 14 horas, incluindo sestas.
– entre 3 a 4 anos de idade:
- Estar pelo menos 180 minutos numa variedade de actividades físicas em qualquer intensidade, sendo que pelo menos 60 minutos deve ser moderada a vigorosa espalhada pelo dia.
- Não estarem restritos de movimentos por mais de uma hora de cada vez.
- Tempo de inactividade física passado a ver televisão, vídeos ou jogar videojogos não deve ser mais do que 1 hora por dia. Quando estão sem fazer nada é encorajado mais uma vez que os pais possam ler, brincar ou estimular a criança de outras formas que promovam a actividade motora ou contacto relacional.
- O período de sono deve ser entre 10 a 13 horas, incluindo sestas.
Segundo a OMS um elevado tempo em actividades sedentárias encontra-se largamente associado a um baixo nível de saúde física, psicológica e social. Sabe-se ainda que o sono influencia a saúde, estando baixas horas de sono associadas a obesidade na infância e adolescência, assim como a perturbações mentais na adolescência. A verdade é que muitos dos hábitos que levamos para a nossa adolescência e vida adulta começam na nossa infância e a investigação demonstra que quanto mais cedo cultivarmos rotinas equilibradas, melhor! e as figuras parentais são aqui fundamentais para a estimulação destes hábitos.
Mas agora tendo em conta estas considerações, muitos educadores se podem questionar “Como fazer a criança aguentar-se durante um jantar ou almoço à mesa sem birras sem ter de usar como recurso um vídeo de Youtube no telemóvel? como manter a criança distraída enquanto temos de trabalhar ou fazer as nossas tarefas diárias na azáfama do dia a dia quando ela pode simplesmente ficar a jogar ou a ver televisão durante todo esse tempo?”. O que é certo é que cada vez mais vivemos estilos de vida e rotinas acelerados e muitas vezes o cansaço, a ausência de tempo e também a ausência da paciência necessária, podem levar-nos a utilizar determinadas bengalas para nos auxiliar. É importante conhecê-las e compreender quando é que estas poderão estar a prejudicar-nos a nós ou/e aos que nos rodeiam arranjando outras estratégias. Tudo em excesso é negativo e a procura de um equilíbrio auxilia-nos a que nos possamos sentir e fazer outros sentir saudáveis nas várias áreas de vida. O que é facto é que muitos dos nossos pais e avós educaram-nos sem todas estas bengalas e conseguiram! no entanto é certo também que outros fatores nos condicionam de momento: no tempo dos nossos avós grande parte das mulheres não trabalhava, dedicando a sua vida à criação dos filhos; no tempo das nossas avós e pais não existiam ainda as tecnologias que nos levavam a estar conectados ao nosso trabalho durante todo o período que estamos acordados, estando contactável e disponível sempre, sob risco de perdermos o nosso “ganha pão”. Se penso que deveríamos voltar a ter estes factores? Não! Adoro o Mundo tecnológico e tudo o que este proporciona! Mas penso que devemos caminhar para uma vivência equilibrada deste Mundo novo e para isso não nos compete apenas a nós, mas também à sociedade como um todo, às entidades empregadoras, aos governos adaptarmo-nos a ela, já que todas estas mudanças na vida familiar exigem pensar novos modos de como estarmos presentes (verdadeiramente presentes) para o desenvolvimento dos nossos filhos, que são na verdade o futuro do Mundo onde vivemos.
No que respeita à primeira infância, sabe-se que o desenvolvimento motor e cognitivo é fundamental nestas idades e tanto a OMS realça isso, como muitos investigadores ao longo do tempo. É certo que a tecnologia aqui em determinada fase pode ser fabulosa para o desenvolvimento cognitivo e até para a motricidade fina com o seu peso e medida e com o acompanhamento parental (nomeadamente os videojogos), no entanto é importante que conheçamos estas fases e percebamos o que deve ser prioritário. Serge Tisseron, psiquiatra, doutorado em psicologia, é uma das pessoas a debruçar-se sobre este tema e também ele já em 2013, tendo em conta a investigação, nos trouxe um livro com as várias fases que considerava pertinentes em termos de utilização dos videojogos naquilo que se conhece do desenvolvimento infantil até então. As suas considerações não fugiram muito àquelas que a OMS de momento recomenda, embora este tenha sido mais rígido no que respeita à utilização da tecnologia até aos 3 anos. Além disso alargou ainda as suas considerações a mais idades. Deixando à vossa consideração as afirmações do autor, este considera que:
Dos 0 aos 3 anos: É necessário que a criança construa referências corporais e sensório-motoras. É preciso a criança cheirar, tocar, correr, cair, desenvolver todos os seus sentidos ao máximo compreendendo as potencialidades do seu corpo. É aqui também que a criação e compreensão de novas rotinas começa, sendo estas as primeiras referências temporais que nós enquanto humanos temos. A leitura de uma história a uma criança por exemplo, auxilia neste factor trazendo referências de inicio, meio e fim com o estabelecimento de uma vinculação. O autor refere ainda que as crianças que desenvolvem mais referências temporais nesta fase através de diversos tipos de actividades, irão localizar-se e orientar-se melhor depois no que respeita à utilização de tecnologia. Nesta fase o autor não recomenda a utilização de ecrãs e da actividade de videojogos, ao contrário da OMS que tendo por base investigação mais recente refere que a partir dos 2 anos de idade não há problema da sua utilização caso seja no tempo recomendado (1 hora diária).
Dos 3 aos 6 anos: Sabe-se que os jogos de tabuleiro e videojogos (acompanhados pelas figura parentais) poderão de diferentes formas auxiliar imenso no âmbito do desenvolvimento da inteligência intuitiva (aprendizagem por tentativa-erro) e hipotético-dedutiva (capacidade de antecipar o retorno). Ainda assim é realçado que os videojogos não devem substituir os jogos tradicionais e outras actividades que envolvam a actividade física já que estas são fundamentais para um bom desenvolvimento físico e psicológico. Nesta fase o autor refere que os melhores jogos e videojogos são aqueles que desenvolvem interacções sensório-motoras (que envolvem a atenção e os movimentos reactivos) e as narrativas (interacções emocionais, culturais através da história ou do seu conteúdo).
Dos 6 aos 9 anos: Podem ser inúmeros os benefícios dos videojogos no desenvolvimento de competências da criança tais como: criatividade, inovação, estratégia, cooperação, adaptação à sociedade, entre outros. No entanto o autor realça mais uma vez que podendo por vezes existir conteúdos que podem não ser tão bem compreendidos, que a presença da família e o diálogo são e importantes e um excelente exercício para a correcta interpretação do conteúdo visto e estabelecimento de relação (tal como podemos fazer com um filme, situação de vida ou actividade).
Dos 9 aos 12 anos: O autor sugere que é a altura recomendada para a descoberta dos jogos online, tornando-se preferencial (que com as devidas precauções e acompanhamento parental) o jovem possa jogar videojogos com outras pessoas em vez de o fazer sozinho, evitando situações de isolamento ou condutas agressivas. Dada esta situação, os videojogos quando vividos de modo equilibrado e bem “rotinado”, podem realmente tornar-se um campo de desenvolvimentos de aptidões.
A partir dos 12 anos: Capacidades como o trabalho de equipa, curiosidade, interacção social, reciprocidade social, entreajuda, cooperação, trabalho de gestão emocional, entre vários outros benefícios que a investigação demonstra serão trabalhados na actividade de videojogos equilibrada, e tem vindo a ser estudado que as competências desenvolvidas nesta fase passam depois para a vida real. A partir desta idade existe uma maior autonomia na realização desta actividade, no entanto é ainda importante que haja um desenvolvimento de rotinas equilibradas estimuladas pelas figuras parentais, perante a qual as várias áreas de vida (família, vida social fora do ecrã, escola, necessidades básicas, exercício, outras actividades, etc.) são tão ou mais investidas. A prevenção do isolamento, do uso excessivo e não disciplinado é fundamental, tal como em outras actividades que possamos fazer no nosso dia-a-dia.
A verdade é que muito ainda existe a fazer na investigação de toda esta temática, existindo ainda várias limitações aos diversos estudos existentes, algo também saliente pela OMS.
A meu ver enquanto psicóloga, gamer, utilizadora frequente de telemóvel e computador e futura mãe, considero que é necessário bom-senso. Tal como digo sempre, “tudo em exagero é negativo” e o que é facto é que a primeira infância é um período de extrema importância na qual quanto mais for a estimulação motora e cognitiva melhor o desenvolvimento da criança. Apesar dos ecrãs, nomeadamente os videojogos nos darem muitas competências extraordinárias, eles não salvaguardam todas as competências essenciais ao nosso desenvolvimento motor, cognitivo, emocional e social na infância. Ainda assim, não penso de todo que a solução passe pelo evitamento de ecrãs, mas sim tal como a OMS refere, uma utilização doseada e com bom senso, tentando fazer ao máximo por não investir na tecnologia como bengala à nossa vida parental ritmada.
Além disso, ao nível psicológico estas são idades em que a criança passa por processos muito importantes, nomeadamente ao nível da compreensão do “Não”, das rotinas e da “tolerância à frustração”. Estas competências são essenciais não só enquanto criança, mas principalmente quando chegamos à vida adulta. A “birra” vai ser uma das opções de comunicação mais usadas e o que é facto é que a paciência, disponibilidade e perseverança que requer mantermo-nos firmes e mantermos um não ou uma não cedência a uma birra (ensinando assim a criança a lidar com a sua frustração e a compreender que este tipo de comportamento não é recompensado) são capacidades difíceis principalmente quando nos encontramos cansados da nossa vida diária tão exigente. Ainda assim é importante procurar soluções e estratégias, já que este investimento no “agora” irá recompensar os comportamentos e aprendizagens futuros da criança, principalmente na sua passagem para adulto. A cedência à “birra” leva a criança a compreender que aquele seu comportamento resulta para obter o que deseja, e compreendendo isso, ela irá repetir. É por isso importante que nos mantenhamos firmes quando consideramos pertinente, existindo diversas técnicas para tal (que este artigo não daria tempo para rever). Facto é que a disciplina também é amor e aplicá-la com paciência e amor será positivo tanto para melhorar a gestão emocional e comportamental da criança, como também para a tornar um adulto confiante e capaz de melhor gerir a sua vida emocional – tendo por consequência maior bem-estar físico e psicológico!
Por fim, e sobre este último ponto, sem tecer a minha opinião para já, deixo à vossa consideração o próximo vídeo para refletirmos em conjunto. É um vídeo – um pouco excêntrico e até cru – sobre a opinião de um psicólogo da atual educação infantil (o qual pode ser directamente ou indirectamente ligado a esta temática em alguns tópicos). Deixo-vos então para comentar se assim quiserem!
Principais referências: