ENTRONCAMENTOS SEM FIM #02

Na continuidade do artigo anterior, a tal “desarrumação” encontrei uns quantos jogos peculiares, esquecidos no tempo, mas por mim guardados na memoria e na nostalgia!

No primeiro jogo que tratei neste artigo escrevi sobre um jogo assumido em honra dum escritor de Ficção Cientifica, obscuro mas bem aproveitado.

Jorge Luis Borges, as suas obras inspiraram outros escritores, romances, outros contos, pensamentos e até videojogos.

Este possivelmente é mais obscuro e se aparentemente não demonstra nenhuma influencia literária, mas não é bem assim, vasculhando sobre o assunto descubro que nele está aplicado um trabalho interessante de dois artistas, um escritor também ele de certa forma obscuro mas igualmente interessante e com ideias originais, e do outro lado um artista plástico que tem um currículo invejável hoje, e que trilho o seu trabalho inicial por obras menores de low-budget.

Ao contrario do primeiro jogo do primeiro artigo, deste nada soube até recentemente, e confesso que pouco ou nada sei do escritor cuja obra foi influenciado e pouco sei também do artista a não ser que trabalhou nalguns trabalhos notórios e reconhecidos por muita gente, menos neste obscuro jogo independente low-budget.

Artwork de Rado Javor

Como na altura a informação sobre um jogo era muito escassa e só a obtínhamos ou por via de revistas ou em fóruns, muitas das vezes com meses de atraso porque éramos nós que muitas das vezes tínhamos que recorrer a eles a pedir ajuda sobre um jogo em particular. Por esses factores a compra era muitas vezes feita por impulso e baseada nas primeiras impressões ao olharmos para a capa dum jogo.

Hoje é muito mais fácil comunicar, em especial com quem produziu o jogo, muitos updates seguem-se por vezes no próprio dia de lançamento, quando há 20 anos muitos jogos nem sequer recebiam patches, principalmente jogos low budget de equipas pequenas, e assim caiam no limbo até um dia alguém se lembrar deles.

Se 9 anos depois era difícil descobrir uma forma de terminar o jogo imaginem como o era quando saiu em 2000!

O nome do jogo é Tlön: The Misty Story, uma aventura point n click cujo protagonista é visto na “terceira-pessoa”, apresenta todos os elementos dos jogos clássicos do género, cuja sonoplastia e cenários são o melhor que se pode apreciar do jogo.

O jogo foi lançado em 1999 ou 2000 (as fontes que encontrei umas referem 1999 outras 2000, julgo que a versão budget será de 2000) para Windows 95/98 e tem mecânicas e enredo baseados na obra Tlön, Uqbar, Orbis Tertius do escritor Argentino, Jorge Luis Borges.

Não foi propriamente pela parte da frente da capa do jogo que o comprei.

Quanto ao cenário, este é da autoria de Rado Javor, o senhor conhecido por muito outras coisas como o concept art do Total War: Warhammer.

Bretonnia concept art para Total War: Warhammer, Rado Javor

A beleza dos cenários criados por Rado Javor são o que de bom o jogo pode oferecer e que em juntamente com uma sonoplastia competente o tornam num jogo fácil de ficar na nossa memória e nostalgia. Infelizmente o bom da coisa fica por aí.

O som da chuva, os efeitos de nevoeiro bem conseguidos, tudo se encaixava perfeitamente num cenário lindo.

O problema no jogo eram os glitches ou que quebravam a progressão do jogo ou assim do nada deixava de correr. Mas o maior problema é não ser possível terminá-lo de forma normal. Só bem mais tarde é que foi possível conseguir terminar o jogo com recurso a um hack nos saves do jogo.

Estávamos no Outono de 2000 quando adquiri este jogo, numa loja de informática aqui perto de mim que ainda está aberta. Custou-me a quantia de 7€ e 50 centavos. Já lá tinha comprado jogos destes, numa gama de jogos low-budget publicados pela Midas Interactive. O jogo pareceu-me bonito pela capa e as especificações eram baixas.

A descrição em Português transmitiu-me alguma confiança no jogo, as duas imagens eram pequenas mas já pareciam muito interessantes!

Devo dizer que nunca o terminei, mas que por causa do ambiente espectacular que o guardo num sitio especial nas minhas primeiras memorias nostálgicas. Foi uma experiência agradável mas que infelizmente não me foi possível terminar na altura.

As mecânicas do jogo são também interessantes, quando outros jogos do género o que nos podia acontecer no jogo era limitado à progressão na resolução de puzzles, ou numa qualquer altura que poderíamos sofrer danos e morrer, neste jogo estava acrescentado outros riscos como a fome ou a sede, além de nos termos de preocupar em progredir no enredo e encontrar o caminho, tínhamos de ter em conta que tínhamos de arranjar agua e comida, caso contrario morríamos ali mesmo.

Posso estar errado por não conhecer outro exemplo na altura, mas a mecânica de sobrevivência estava lá antes de voltar a ser popular 20 anos depois.

Foi o primeiro ou dos primeiros jogos que tenho memória que possuía mecânicas de sobrevivência e isso nessa altura cativou-me. O jogo transmite um misto de mistério e deslumbramento”, mas depois estraga tudo em situações difíceis de defender, qualquer percalço ou qualquer erro mesmo que nos seja alheio vai punir-nos, e a punição é o fim da progressão. Talvez seja por causa disso que jogos do género não peguem nesta mecânica de sobrevivência porque por exemplo consumir algo para nos tirar a fome mas que iria servir para uma troca com um NPC que nos iria abrir portas para o capítulo seguinte acaba por ser algo mau muito mau, principalmente porque nos estraga toda a experiência que o jogo nos poderia proporcionar.

A única alternativa a contornar esses erros é voltar ao inicio ou pegar um save anterior e tentar não estragar tudo novamente, o que não é fácil pois estaremos sempre no constante risco de morrer à fome ou de sede.

Falei nas influências deste jogo a partir da obra de Jorge Luis Borges, e de facto tem algo, mas levemente aproveitado, ainda tem um certo Niilismo e muita filosofia que tenta chegar à razão de todas as coisas e do seu sentido de existencial. Mas sobretudo, pega no nome Tlön, que na obra é um planeta completamente novo, com crenças diferentes, uma sociedade recriada do zero com os seus uso, costumes, tradições, formas de pensar, próprios mitos e lendas.

Foi uma oportunidade perdida pegar em tudo isso, mas conseguiu de certa forma pegar em coisas que hoje e já naquele tempo caracterizavam um jogo do género e contos fantásticos, uma oportunidade perdida que foi buscar uma gatinho de inspiração a uma obra pioneira e que influenciou muitas outras obras do imaginário fantástico-medieval, dos contos de mistérios que vemos por exemplo no Nome da Rosa de Umberto Eco, que não por acaso se inspirou para a sua personagem Jorge de Burgos.

Jorge de Burgos, uma personagem sombria, pragmática e misteriosa

A nostalgia nem sempre se traduz num gosto por algo bom ou muito bom, neste caso é o perfeito exemplo como a nossa ingenuidade nos pode dar este tipo de experiências que nos foram agradáveis no seu tempo. Não é bom nem excepcional, mas também não é mau, hoje seria inaceitável um trabalho destes inacabado. Serve de exemplo para o caminho que chegamos hoje, a industria está mais madura, continuamos a ter bons e maus exemplos, mas muitos maus exemplos hoje não acabam como este que ainda é uma obra inacabada e que ainda tem um certo de charme e mistério. Uma pena.

Aos interessados o jogo caiu na área do abandonware, se o querem terminar tem que descarregar um save hackeado que vos permite passar uma fase do jogo e progredir até ao fim, incluído no link em baixo com uma analise mais detalhada ao jogo.

Fontes de interesse sobre o jogo: https://obscuritory.com/adventure/tlon-a-misty-story/

Livro: https://www.bertrand.pt/livro/-el-sur-et-tlon-uqbar-orbus-tertius-jorge-luis-borges/9622842