Porque é uma temática que me agrada bastante e porque estou a trabalhar num jogo dentro da mesma, tenho consumido o máximo possível de jogos militares. A paixão já é antiga e começa pelo cinema, espraiando-se em todo o seu esplendor pelos videojogos. A paixão atingiu um dos seus pontos altos com Day of Defeat. Mais tarde, com Day of Defeat Source. A Segunda Guerra Mundial sem esteróides. Sem saltinhos. Sem invencibilidades, powerups ou Rambos. Ainda houve um ou outro jogo da saga Call of Duty que andou lá perto, mas pouco, muito pouco.

Recentemente, testei Post Scriptum, mas fui afastado um pouco pela sua densidade e complexidade. Pouco fluído, pelo que decidi dar-lhe mais tempo. Encontrei este Hell Let Loose meio por acaso. Fruto de uma campanha bem sucedida no Kickstarter e lançado em Early Access no passado mês de Junho, Hell Let Loose tinha tudo para falhar. Mais um. Mais um clone de clones de clones. Mais um WW2 shooter genérico. Mais um clone feito por uma empresa nova, sem créditos firmados, com uma premissa absurda de ter 100 jogadores no mesmo mapa. Oh, como me enganei. Oh, como é bom ser enganado e erguer-se do teclado com um sorriso nos lábios.

Hell Let Loose é, simplesmente, o melhor do seu género que me foi dado a experimentar até à data, exceptuando Arma 3, embora esse assuma um maior grau de complexidade e, convenhamos, se afaste da temática da Segunda Guerra para um meio mais actual. Certo é que entrei em Hell Let Loose para uma prospecção de 20 minutinhos e acabei por ficar lá agarrado por mais de duas horas. E voltei. Uma e outra vez, voltei. E volto hoje, com revigorado interesse.

A Black Matter foi fundada em 2015 para trabalhar neste título. É a foto perfeita da inocência arrogante de muitos dos alunos de videojogos nos dias que correm. Aqueles que, como seu primeiro jogo, afirmam querer fazer um World of Warcraft, mas melhor. Ou um League of Legends, mas melhor. Aqueles que querem fazer um MMORPG de raiz para ser o melhor jogo de sempre. Çempre, com Ç. Pois… mas a Black Matter anda perto de o conseguir.

Ainda em Early Access, com um roadmap de desenvolvimento previsto para mais um ano, a verdade é que aquilo que temos hoje em dia em Hell Let Loose é bem mais que suficiente para podermos dizer que estamos perante um jogão! Sim, são 100 pessoas no servidor. E não, não estão às moscas (como me lembrei dos meus primeiros passos no último DLC de Battlefield 1 que testei quase única e exclusivamente com jornalistas de outras publicações, por força do reduzidíssimo número de jogadores). Estão cheios. A abarrotar. Tenho jogado a várias horas diferentes do dia e há sempre um, dois, três, quatro servidores em que não é possível entrar, com a lotação esgotada. Tenho conseguido entrar naqueles que têm 95, 97 pessoas e… por lá fico horas a fio.

O cenário é verdadeiramente gigante. Estimo que, de uma ponta à outra, calcorrear todo o mapa a correr desalmadamente, deva durar uns 20-30 minutos para percorrer tudo. Estimo. Porque nunca logrei atingir tal coisa. O mapa é enorme, sim, mas do outro lado estão 50 indivíduos muito pouco interessados em ter um agente infiltrado a matá-los pelas costas. Mas, enfim, o mapa é gigantesco e muito, muito bem trabalhado. Riachos, campos, trincheiras, fortificações, vilas, quintas… Tudo representado com detalhe e esmero. Nas primeiras sessões de jogo que fiz, conheci apenas um mapa, a recrear Utah Beach, uma das praias do desembarque na Normandia, e temi que fosse apenas isso. Mais do mesmo. Iteração após iteração do mesmo mapa, com os mesmos pontos de captura, as mesmas fortif… espera! O mapa é o mesmo mas… mas os objectivos mudaram! Ora aí está uma das coisas que HLL faz bem. Mesmo dentro de determinado mapa há alguma variação no que diz respeito à colocação de pontos de captura relevantes. Isso permite que um mapa tenha um número considerável de abordagens possíveis e a repetição e exaustão sejam bem menores.

O jogo coloca então um limite de 50 pessoas contra outras 50. Contrariamente ao que nos deparámos com Tannenberg, não há aqui bots para encher os servidores. São 50 pessoas, cada uma com sua função específica. Ao entrar no servidor, podemos escolher juntar-nos a uma das squads já existentes ou criar uma nova. Há três tipos de squads: Infantaria, Tanques e Reconhecimento. As de reconhecimento têm apenas duas vagas: um que funciona como spotter, mais móvel, munido de uma submachine gun, de granadas de fumo e de meios para construir um Outpost (já lá iremos), e um sniper, ou atirador furtivo. Desenganem-se se, ao ler estas linhas sobre snipers, estão já a imaginar “campers” escondidos pelo mapa a fragar uns atrás de outros e a liderar as listas. Ninguém quer saber. Literalmente. Ninguém quer saber de mortes aqui. Não há killfeed. Para descobrirem quantos mataram num jogo têm que ir ver o ecrã final do mapa e aceder à vossa informação pessoal. Não são as mortes avulso que desequilibram a batalha. Esta é ganha pela conquista de territórios. Com as munições limitadas e com a impossibilidade de apanhar outras armas do chão, só mesmo recorrendo a trabalho de equipa e trabalhando com a mesma, próximo de quem nos forneça munição, poderemos, de qualquer forma, amealhar mortes que sejam, de facto, relevantes.

Seguem-se as squads de Armor. Tanques. E aqui, novamente, apenas dois papéis. Um Tank Commander, devidamente equipado com uma submachine gun e uns binóculos, e um crewman. Um tripulante. Pois. Tem uma pistolinha e muito boa vontade. É virtualmente inócuo a não ser que se encontre num tanque ou peça de artilharia. E os tanques não abundam – razão pela qual os membros destas squads são também limitados. O número de tanques no campo de batalha é limitado e o aparecimento destes é condicionado pela disponibilidade de recursos, nomeadamente combustível. Mas sobre esses já falaremos também.


Restam as squads de infantaria. Estas são compostas por um membro para cada posição, até um máximo de 9 elementos. Há um Squad Leader, Rifleman, Médico, Support, Engenheiro, Anti-Tanque, Machine Gunner, Assault e Automatic Rifleman. Os papéis estão bastante em linha com aquilo que possam pensar ao lê-los. O médico é o único que consegue trazer de volta ao combate companheiros feridos (sublinhe-se aqui o “feridos” porque há coisas que nem um batalhão de médicos poderia resolver). O Support transporta munições e recursos para construir fortificações e outposts. O Anti-Tanque dispõe de uma bazooka ou semelhante e é o único que pode construir canhões anti-tanque, etc… De recordar que, como disse, cada papel é estanque. Nada de apanhar uma arma no chão e zungas, de repente somos médicos. O que, além de consistente com a realidade, fomenta um gameplay cooperativo. No campo de batalha, ninguém sobrevive muito tempo sozinho. Por último, resta falar dos Engenheiros, que nos servirão para falar de uma outra faceta do jogo. Os Engenheiros, além de equipados com uma arma, minas anti-pessoais e anti-tanques, podem construir fortificações defensivas e, sobretudo, pontos de captura de recursos. Há três tipos de recursos: manpower, munição e combustível. Manter determinados pontos aumenta o rácio de incremento de um certo recurso, construir um Nodo de produção, usando recursos, permite obter o mesmo resultado. Isto é algo que tem impacto com o decorrer da partida, à medida que os recursos iniciais forem sendo gastos. Sem manpower, o respawn de soldados aliados, que poderia ser de escassos 10 ou 15 segundos, pode atingir uns 40 ou 50 segundos, o que é notoriamente algo que afecta as possibilidades de vitória. Sem tropas no terreno, torna-se difícil de vencer.

Por falar em tropas no terreno, retrocedemos para os papéis de Squad Leader e Spotter. Estes têm a possibilidade de construir Outposts onde os membros da sua Squad podem renascer depois de mortos, algo que é de suprema importância dada a dimensão do mapa. Há ainda Garrisons, um Outpost mais compostinho onde todos os elementos da equipa podem renascer. Valiosos, pelo que urge defender e ter critério ao construir.

Resta-nos falar do Comandante, papel reservado a apenas um jogador. Confesso que assumi que se tratava de um cargo como em Natural Selection, com a figura de um comandante arredado do campo de batalha. Mas não, o comandante é um sujeito como os demais. Passam-lhe uma armita para a mão, uns binóculos e ala moleiro que se faz tarde. Pisa o terreno como os demais soldados, mas, para a maioria das tarefas que o tornam relevante, o comandante vai estar com o Mapa à frente a distribuir as restantes tropas e a dar ordens de pedidos de recursos ou ataques. É ele quem coordena as diversas Squads, quem gere os marcadores no mapa de cada grupo de ataque e quem solicita movimentações de infantaria, tanques e artilharia. Além disso, tem também acesso a aviões, para bombas e para metralhar determinada parte do mapa. Um papel que, quando executado por alguém com um mínimo de experiência e com Squads cooperantes e comunicativas, faz parecer todo o campo de batalha uma verdadeira orquestra. Sincronizada, a movimentar-se como uma só, eficiente, eficaz, mortífera.

Falta falar do mais importante: o combate propriamente dito. E esse não é para fracotes. Nem é para peitos feitos e egos desmedidos. A ideia é recriar a guerra. Recrie-se! Não há miras. Crosshairs? Pfft, coisas para meninos. Há única e exclusivamente, ironsights. Ou, em alternativa, disparar pela cintura, a olho. As armas são bastante fidedignas aos seus equivalentes reais, tanto em comportamento como em presença no campo de batalha, e aqui é bom ver que Hell Let Loose não se deixa cair na tentação de agradar a todos, como fez Battlefield 1. Era o que havia? É o que temos. O que faz parecer com que as armas do exército alemão não sejam muito variadas. Mas se a Kar 98K era a arma nas mãos de 90% dos seus soldados, pois que assim seja no terreno de jogo também. Assim, as armas semi-automáticas e automáticas são percentualmente poucas no campo de batalha. Mas todas matam. A maioria com um tiro certeiro. Não há indicadores de direcção do dano. Não há mira, não há kill feed, não há nada. Podem gastar um clip inteiro a disparar para um arbusto onde viram esgueirar-se um inimigo e continuarão sem certeza se o mataram ou não. E, confesso, adoro isso. E adoro o sistema para sermos abalados por tiros e explosões perto de nós. A imagem fica distorcida, tremida, a preto e branco, cada vez mais escura. Hell Let Loose faz jus ao seu nome e, por vezes, temos a tentação de que o que há lá fora, para além do capacete que nos protege, é um inferno. A maior parte das vezes, morrerão não se sabe bem de onde. Noutras, um tiro perdido aqui e ali que vos encontra mesmo no peito. E, não raras vezes, tal como acontece na vida real, o fogo amigo. Lá diz o ditado, “friendly fire is not“. Seja de artilharia, seja de companheiros distantes ou mais perto, a verdade é que, no caos da batalha, isso acontece. Frustrante? Talvez. Se estiverem demasiadamente preocupados com o videojogo.

Mas se se deixarem mergulhar no jogo, se se deixarem embrenhar, então mesmo isso completa a delícia que este jogo tem para oferecer. Creio que o derradeiro demónio deste Inferno é o tanque inimigo. Não há, como em Battlefield, a ideia de que podemos manobrar melhor que um tanque ou de que o vamos destruindo com isto ou aquilo. Se só temos uma espingarda na mão e há um tanque numa zona, nós viramos costas e fugimos. É o melhor a fazer. Podem avisar o Squad Leader. Podem avisar o comandante. Mas as vossas armas farão cócegas. As do tanque não. Os tanques ditam o ritmo do combate. Soldados prevenidos rodeiam os tanques seus aliados e acompanham-nos, protegendo-os de eventuais bazookas ou panzerfausts, mas sobretudo sendo protegidos por ele. E conduzir um… oh, conduzir um é, para usar uma expressão condizente com o tema, uma coisa dos diabos! Esqueçam a vertente arcade. Esqueçam um World of Tanks onde podem fazer tudo e mais alguma coisa. O tanque tem três postos. Um deles conduz, engrenando as velocidades manualmente. Dispara também uma metralhadora frontal mas, adivinharam, não há crosshair. Há que ver as tracer bullets que são cuspidas pela nossa metralhadora e estimar a trajectória das restantes balas. O resto, bem, é conduzir. Devagar. E seguir as indicações dos companheiros.

Depois há o artilheiro. Este dispara o canhão e carrega-o com a munição pretendida. Pode controlar uma metralhadora também mas esqueçam apontar com o rato. Esqueçam apontar rapidamente. A coisa faz-se com recurso às teclas, lentamente, paulatinamente, pausadamente…. é um processo moroso durante o qual nos sentimos pequeninos dentro de uma casca de noz, com os tiros a zoar lá fora e a embater na blindagem – o próximo poderá ser um canhão, uma bazooka, uma salva de artilharia… o próximo pode ser o último que ouvimos… É um processo lento, mas gratificante, o de alinhar a torre com o alvo, disparar e vê-lo a ir pelos ares. Resta falar do que ocupa o periscópio, com uma visão privilegiada do campo de batalha, restando-lhe comunicar com a sua tripulação o que vê em redor e como proceder.

É, como vêem, um jogo que faz jus ao realismo.

E, de acordo com a Black Matter, o plano para este ano que se segue é bastante extenso, melhorando aquilo que é, de momento, um jogo absolutamente fabuloso, recomendável a todos quantos gostem de um bom simulador militar e de um bom desafio. Com gráficos muito bons face ao mapa em questão, com um som a cumprir, mas a precisar ainda de algumas melhorias, Hell Let Loose é, ainda assim, um jogo imperdível.