É bizarra a sensação de estar num mundo com aspeto de desenho animado, sentado à volta de uma fogueira que não aquece, num acampamento montado numa ilha flutuante, em conversa com uma banana antropomórfica com óculos de sol. É bizarra porque parece tão natural, como se de facto para este mundo estranho o nosso corpo tivesse sido transportado. É o poder da realidade virtual, imersiva e capaz de enganar o cérebro por mais que este mantenha firme, em pano de fundo, a convicção de que está na sala da própria casa.

Já cá discorri sobre a realidade virtual fora do contexto de acessório caseiro e a sua capacidade de aumentar experiências em formato arcada onde o investimento é distribuído por um grande número de utilizadores. Mas também dentro de casa, a realidade virtual já muda o mundo de muitos. E embora vá falar de um “jogo” gratuito na Steam, podemos considerar esta utilização da RV mais como o acesso a uma plataforma, do que como acessório de um tradicional videojogo.

Tal como os seus predecessores, como Second Life, VR Chat oferece um espaço que só existe em 1s e 0s, mas que os seus utilizadores ocupam e utilizam para diversos fins. A adição da realidade virtual à fórmula, aproxima ainda mais a experiência do real, pelo menos no que à nossa perceção diz respeito.

Assim, um computador e um dispositivo de realidade virtual criam um portal para um mundo novo, ainda a ser explorado por pioneiros, onde ainda estamos a aprender a viver.

Estas novas fronteiras e os seus habitantes tÊm histórias para contar.

Nesta materialização do ciberespaço à qual podemos aceder de corpo inteiro, ficam para trás todas as limitações da realidade. Tal como num filme de ficção dos anos 80, ou no recente Ready Player One de Steven Spielberg, o mundo digital já é habitável. O espaço é moldado à nossa vontade, escolhendo entre inúmeros mundos criados pela comunidade para visitar apenas à distância de um ecrã de carregamento. Optamos por interagir apenas com o que nos agrada. O som da chuva incomoda? Não quero música ambiente? Desligo-as na minha instância. A paisagem de uma cidade é demasiado corriqueira? Que tal mudá-la para uma vista do espaço sideral?

A personificação do jogador, o seu avatar, é também ela completamente livre. Desde o tamanho de uma tarântula, até gigantes que não cabem nas comuns habitações, o aspeto pode ir de humano a abstrato, passando por todas as espécies, reais e fictícias, que possam ser imaginadas pelos utilizadores que se queiram dedicar a trazê-los à vida nas ferramentas acessórias disponibilizadas pelos criadores da plataforma.

É nesta dimensão alternativa que milhares de utilizadores convivem diariamente. São diversas as razões que os trazem a explorar estes mundos de 1s e 0s em vez do natural, onde temos acesso a todos os nossos sentidos. Mais do que pessoas a utilizar uma ferramenta digital, a presença virtual de cada um deles é o foco da história. Assim, aqui não encontramos o Rui, o Peter ou a René, ou outros nomes que estariam atrás do ecrã, mas o ToastmeisterTTV, o TirilValkyrje, ou a Pudhing, a figura com que se apresentam.

Não existiria forma de o utilizador The Dying Breed ser melhor representado na vida real do que o é neste quarto onde chuva digital bate na janela. A sua conversação metódica e calculada enquanto discorre de forma enciclopédica sobre tópicos como diferenças geracionais ou factos geológicos sobre areia, quase sem intervenção de interlocutores, assenta como uma luva no estereótipo da cultura popular do seu avatar de robô amigável.

Esta foi a primeira vez do estudante de geologia sérvio, que fala cinco línguas, no jogo VRChat. Diz que decidiu experimentar porque estava aborrecido, mas depressa a experiência o cativou. “A atmosfera é espetacular, e as pessoas estão dispostas a conversar”, explica o extrovertido robô a atração.

Mas nem todos tem a facilidade de The Dying Breed com línguas ou o seu à vontade para falar quase ininterruptamente.

Hamori, um jovem húngaro de 18 anos com um chamativo avatar feminino numa armadura preta e vermelha, descreve-se como antissocial: “Os meus colegas de escola falam do que fizeram no fim-de-semana, das bebedeiras que apanharam. Eu prefiro estar em casa, jogar, etc. Também tenho os meus amigos íntimos. E estou feliz assim”.

“Aqui é muito mais fácil abordar pessoas”.

Apesar de apresentar a melhoria do seu inglês como principal motivo para a sua presença no mundo digital, admite que este traz benefícios para quem é introvertido: “Já investi neste jogo umas 40 horas, e comecei há duas ou três semanas. Sim, estou mais ou menos viciado. Aqui é muito mais fácil abordar pessoas”.

Prefere entrar em mundos onde estão menos utilizadores, porque é mais fácil começar uma conversa com alguém, do que entrar numa já a decorrer entre estranhos. Afirma que mesmo quem fica em silêncio num canto das salas tira algo positivo da experiência: “Muitas pessoas são antissociais ou introvertidas, mas ainda assim sentem a necessidade de encaixar algures na sociedade”.

Embora este tipo de comportamentos possa ser visto como um escape à vida real, não desenvolvendo as ferramentas psicológicas necessárias para desenvolver relacionamentos offline, para muitos, pode ser um passo numa progressão gradual, ou um escape extra que permita expressar partes da sua personalidade inibidas de outra forma.

Kingdeath_2006, com 40 anos, sofre de um problema psicológico que atribui a anos de bullying no percurso escolar e na vida pessoal: “Sair e falar com pessoas na vida real é difícil para mim porque eu sofro de um problema de ansiedade com reação de fuga ou luta”. O seu avatar favorito é o que usa durante a conversa, um coelho de peluche a controlar um fato mecânico. A contrastante voz grave e áspera que sai do coelho digital explica: “Este avatar representa-me. Um bom tipo por dentro, mas quando as pessoas se aproximam demasiado sinto um impulso para ser violento. Eu não quero isso, por isso não saio, afasto-me naturalmente”.

“Podes ser quem quiseres, não tens que ter medo de ser julgado pela tua aparência”.

A liberdade proporcionada pelo VRChat é aparente: “Desta forma consigo falar com pessoas. Quando venho para aqui gosto de conhecer pessoas novas, conversar, ver como as pessoas interagem entre si.”

As diferenças entre este mundo virtual e a realidade são ainda uma proteção contra os abusadores: “Podes ser quem quiseres, não tens que ter medo de ser julgado pela tua aparência. E a melhor parte é que se alguém estiver a ser ignorante contigo, podes simplesmente bloqueá-lo completamente”.

Em frente a uma grande audiência de outros utilizadores, ToastmeisterTTV, um jovem muçulmano da Finlândia, não hesita em comparar a anonimidade da plataforma com o que acontece na vida real. Tal como no dia a dia, apenas conhecemos a faceta das pessoas que estas pretendem mostrar: “Todos já fizeram alguma coisa errada na vida. Eu fiz, ele fez, este tipo também. Não o negues. Este tipo possivelmente raptou alguém, aquele provavelmente roubou €100 a uma avozinha cega. Nunca temos forma de saber”.

Acrescenta ainda que a diferença de comportamentos entre as duas versões de cada um são exacerbadas por esta liberdade, e por vezes vão mesmo na direção oposta: “Há pessoas que quando vêm para cá querem ser diferentes do que são lá fora. Por isso, se são uns imbecis aqui, possivelmente são bons tipos lá fora. Mas se são boas pessoas lá fora, aqui procuram outra forma de se exprimirem. Basicamente escapismo de ti próprio”.

” Este tipo possivelmente raptou alguém, aquele provavelmente roubou €100 a uma avozinha cega. Nunca temos forma de saber”.

A liberdade para agir sem medo de consequências como exclusão social ou bullying, permite comportamentos que são reprimidos pelo próprio na vida real. Isto também significa que partes da verdadeira identidade reprimida podem florescer e encontrar quem tenha interesses correspondentes. Hamori argumenta que com a quantidade de utilizadores é mais fácil encontrar alguém com os mesmos interesses. E isso pode advir de algo tão simples como um avatar da série ou filme favoritos. Para Hamori utilizar avatares de personagens conhecidas é também um truque para aumentar a acessibilidade no que toca à aproximação de outros utilizadores: “É mais fácil abordar alguém com ‘Ei Homem-Aranha’ do que tentar pronunciar nomes estranhos dos utilizadores”.

Um dos mundos favoritos de Hamori é a Noite do Microfone Aberto [Open Mic Night]: “É um bom sítio para relaxar. Podemos lá encontrar muitos indivíduos talentosos. Beatboxers, alguém no canto a cantar ou a dançar. Traz uma boa sensação”.

SabrinaSabliccard é uma jovem de 18 anos da Itália, e apesar de nunca ter tomado o palco, é uma das vozes que cantarola afinadamente fazendo as delícias dos restantes utilizadores. Quando não o está a fazer, gosta de falar com pessoas de diferentes países. Apesar de a plataforma ter um sistema que permite adicionar amigos, prefere encontrar pessoas novas todos os dias, que provavelmente não voltará a ver.

Mas ao contrário de um café real, a Noite do Microfone Aberto está à disposição de qualquer pessoa que aceda à sala, para que este possa atuar para quem o esteja disposto a ouvir. A desinibição proporcionada pela apresentação de uma versão digital permite que Heyimfurry se dedique de alma e coração à sua performance, com mais ou menos talento.

Apesar da estranheza criada por alguns utilizadores na sua anonimidade, VRChat não é apenas um isolado submundo cibernético. Tem igrejas virtuais onde pouco mais se faz do que cerimónias de casamento de faz-de-conta. Mas noutras, um verdadeiro padre realiza batismos com água digital para pessoas com dificuldades motoras que as impedem de sair de casa. Os utilizadores podem abdicar da comunicação com quem está perto na vida real para falar com desconhecidos. Mas em certos casos a realidade virtual é uma ponte instantânea entre amigos em diferentes partes do planeta. O caso de TirilValkyrje e Pudhing, assenta algures entre destas definições.

Encontro-os num mundo que é uma casa grande, cheia de obras de arte famosas nas paredes. Sigo-os para a cave. Num ambiente escuro que contrasta com o resto da habitação, apesar do teto estrelado, encontra-se uma miríade de posters de anime a cobrir as paredes, almofadas com personagens das mesmas séries decoram o cenário. Ela usa o avatar do Sem-Face do filme de animação Viagem de Shihiro“. Ele é representado por uma florida e colorida figura feminina com uns grandes óculos de sol.

Os dois jovens de 22 anos vivem na Noruega, na mesma casa. No entanto, todos os dias encontram-se os dois neste mundo digital para encontrar tanto conhecidos do mundo real, como para conhecer novas pessoas. As aventuras no VRChat são partilhadas, com um nível de interação e uma escala que não seria possível ao par, se confinados à realidade da sua casa.

“Gostamos de conversar com pessoas novas e ver avatares marados. Procuramos alguém que esteja disposto a falar e passamos o nosso tempo com ele”, explica Pudhing. “Procuramos pessoas interessantes aqui, porque eu gosto muito da atmosfera do jogo, há algo calmante nele”, complementa Tiril.

Contam histórias de conversas com pessoas com dificuldades que lhes dão perspetivas importantes da vida para além de uma conversa interessante, como os desafios e desabafos de um casal que lida com distúrbio de déficit de atenção; ou de casos mais leves como quando alguém se chateou com o namorado quando este “tocou” noutra pessoa no mundo digital.

“Definitivamente tento ser mais engraçado no VRChat com estranhos. É mais fácil conseguir uma conexão quando as pessoas se riem contigo”

Enquanto Pudhing admite ser menos tímida no mundo virtual, Tiril diz ter um comportamento diferente daquele que tem na vida real para combater a intimidação de abordar pessoas novas: “Definitivamente tento ser mais engraçado no VRChat com estranhos. É mais fácil conseguir uma conexão quando as pessoas se riem contigo”.

É então que uma laranja gigante com pernas entra na cave, agindo de forma errante e com um pesado sotaque, a exigir satisfações por termos entrado no seu lar enquanto foi comprar açúcar.

Um jogo, uma ferramenta, um lugar de diversão, entretenimento ou desabafo. A função da plataforma assume tantas formas como o número de utilizadores que a frequenta. A presença no ciberespaço difere em vários aspetos daquela do mundo real, mas tal como este está sujeita às transformações humanas que o moldam segundo as suas necessidades.

O nosso futuro pode tomar mil e uma formas, mas a utilização destes espaços sem espaço, é já o presente para muitos indivíduos.