Este artigo é a primeira metade da análise deste jogo. Fiquem atentos à publicação da segunda metade.

Quando se pensa nas maiores franquias de exclusivos da Nintendo, rapidamente Mario vem à cabeça, seguido de Pokémon e Zelda. Quando se pensa nas que trazem mais dinheiro à gigante japonesa o raciocínio é semelhante. Mas e quando se pensa para lá deste trio?

Eu penso muito em Fire Emblem.

É certo que não vendeu tanto como outros títulos. É certo que não chega aclamação crítica regular para cimentar uma franquia no Olimpo dos videojogos. Mas acima de tudo é certo que Fire Emblem: Three Houses é um enorme passo nesse sentido.

Desde o surto de popularidade que a série beneficiou com a chegada à Nintendo 3DS que os jogos da saga se afastaram do nicho implacável do RPG Táctico visível no GBA, SNES ou Wii. Há a escolha se os personagens morrem em definitivo. Há a escolha de desenvolver relações com os nossos personagens. Há a escolha de fazer “grind” para fazer face a algum obstáculo mais teimoso. Em Three Houses há todas essas escolhas e mais ainda – só ninguém me convence que este jogo é verdadeiramente universal.

Three Houses é um jogo extenso e levei 60 horas de jogo a completar o primeiro acto sobre o qual escrevo este artigo. Isto dá cerca de cinco horas por capítulo (ou mês de jogo, já lá vamos) repartidos pelas várias tarefas. Embora todo o conteúdo para lá da batalha mensal seja absolutamente opcional, não consigo imaginar uma experiência satisfatória deste jogo na qual uma grande parte desse conteúdo não seja vivenciado. Eis onde quero chegar: quem jogar Three Houses ficando-se pelo básico terá uma experiência muitas vezes desconexa e sem o crescendo narrativo e emocional que os criadores imaginaram e que o ritmo muito próprio deste jogo fomenta. Acontece que este ritmo faz com que o jogo não seja tão universal como os últimos dois títulos, Awakening e Fates – nem toda a gente terá o gosto e/ou a paciência para desfrutar de tudo o que Three Houses tem para oferecer.

Three Houses está disponível há cerca de um mês e os mais atentos saberão que o jogador, na pele de um jovem mercenário cujo talento para a mudez é apenas suplantado pela aura de mistério que o rodeia, acaba por ajudar um grupo de nobres e posteriormente dar-lhes aulas no mosteiro Garreg Mach. Este complexo sacro-educativo apela tanto a uma ideia de clero católico europeu medieval que teve um papel preponderante nos avanços académicos de então; como da tendência desse mesmo clero para encetar uma série de práticas condenáveis em nome da religião.

Todos os meses de jogo incluem um calendário para ajudar no planeamento de como distribuir o tempo limitado

Isso parece-se mesmo com Harry Potter”, dizia a fã muito mais acérrima que eu dessa saga lá em casa. Tem toda a razão. À medida que passeamos pelo mosteiro com as nossas vestes escuras procuramos orientar os nossos alunos adolescentes no caminho certo para se formarem na Academia dos Oficiais. Damos-lhes aulas, escolhemos os tópicos em que se devem focar e até lhes damos algumas dicas de vida. Há três casas em que estes alunos se inserem: Blue Lions (os Gryffindor lá do sítio), Black Eagles (um cruzamento de Ravenclaw com uma pitada de Slytherin) e Golden Deer (os muito diversos que sobram, à boa moda de Hufflepuff). Só podemos é escolher uma – no próximo artigo desvendarei qual foi a minha escolha.

O esquema de jogo neste primeiro acto é fácil de compreender, embora leve uma horinha até nos passar o assoberbamento: durante um mês de calendário temos de escolher a cada domingo entre explorar o mosteiro, participar em seminários de outros professores para melhorar certas capacidades, combater em side quests ou apenas descansar. Nos restantes dias o calendário avança e temos aulas para dar em capacidades específicas e outros eventos aleatórios como por exemplo tomar chá com alunos e corpo docente. No final de cada mês espera-nos a batalha da missão principal.

Só… uma… batalha… por mês?

As batalhas têm ótimo aspecto no regresso de Fire Emblem a um ecrã de TV

Obrigatória, sim. Dentro das escolhas pelos pontos limitados que têm no tempo, não. As batalhas em Fire Emblem: Three Houses continuam com a mesma génese desde que a série começou em 1990. A ideia do pequeno exército de elite que precisa de uma táctica sólida para derrotar um inimigo numeroso mantém-se fresca. O modo clássico – onde personagens derrotados não voltam durante o resto do jogo – é o único que ainda faz sentido neste ambiente táctico e de manter todo o batalhão vivo a qualquer custo que não a vida de um elemento.
Leitores do Rubber, nunca joguem Fire Emblem em Casual mode. Um dia hão-de-me agradecer.

A opção de aligeirar esta realidade existe e trouxe muitos jogadores à série, mas não é assim que este jogo foi pensado – senão a táctica é muitas vezes substituída pelo isco no campo de batalha. Dito isto, o primeiro acto em Clássico e Hard mode não apresenta um desafio, com pouquíssimas exceções. De volta de Echoes está a capacidade de voltar atrás no tempo, só que agora sem limite até ao início de um capítulo. E este número de vezes vai aumentando sem vergonha à medida que o jogo avança.

Nem consigo imaginar quão aborrecido isso será em modo Normal…

Conto que o segundo acto aumente um pouco a parada, mas vou perdoar a transgressão até final deste ano, altura em que ficou subentendido o regresso do modo Lunático via DLC gratuito – resta saber se ao nível implacável de Awakening ou ao nível justo de Fates.

Se a questão táctica se mantém a de sempre, a componente RPG está cada vez mais evoluída. As armas são mais e mais belas, seja quando olhamos para o personagem inactivo ou enquanto as animações de combate nos revelam todas essas nuances. De volta de Fire Emblem Echoes estão as Combat Arts, habilidades que causam mais danos ao inimigo e à arma utilizada, eficazes para nos desfazermos daquele adversário mais forte mas sempre com atenção à durabilidade do nosso equipamento. Juntem aqui as já habituais habilidades, conquistadas em diferentes classes de personagem mas também de acordo com a individualidade de cada uma. Todos estes elementos ajudam-nos a conhecer melhor cada guerreiro e fazem parte do sub-texto de cada um e…

… são ótimos para estimular o obsessivo-compulsivo que há dentro de nós.

Punhos ou armadura, eis a questão

Não era assim tão irónico. Das 60 horas de jogo dei por mim diversas vezes a desequipar todos as armas, itens, combat arts e habilidades de todo o meu plantel só para as re-equipar antes de um qualquer combate, além de escolher a classe certa dentro das que estivessem habilitados. Em certos combates é aconselhado fazer estas alterações de maneira a adequar o nosso exército a cada uma. Fazê-lo a cada dois meses de jogo só porque gosto de personalizar tudo do zero? Mera tara pessoal que este jogo só vem estimular. São tantas as combinações possíveis que entre combate e exploração, o obsessivo-compulsivo entra em ebulição. Aqui já não direi que foi assim que este jogo foi pensado – eu é que gosto de pensar nele assim.

Mais acima referi que muito deste primeiro acto de Three Houses se assemelha a Harry Potter. Mas isso é apenas o invólucro de um Sapo de Chocolate. Na parte narrativa, repleta de intriga política que promete expandir-se no segundo acto e na qual todos os estudantes, particularmente os de origem nobre, têm um papel preponderante, este jogo sabe a Guerra dos Tronos. Há engodo, traição mas também virtude. Mas o meu veredicto narrativo fica prometido para o próximo artigo…

Pese ser uma experiência tão imersiva, Fire Emblem: Three Houses tem falhas técnicas gritantes. Não é tanto os gráficos não serem incríveis, mas serem pouco dados ao detalhe. Contornos e texturas são pouco refinados, particularmente no mosteiro. E mais imperdoável do que curtos momentos de “lag” enquanto exploramos esta novidade RPG da franquia é a total ausência de personagens onde uns longos segundos depois estas aparecem, mesmo na nossa frente onde estaríamos à espera de inicialmente as encontrar. Ou entre as diferentes áreas do mosteiro que não estão separadas por um curto ecrã de loading, portas duplas não abrirem assim que as transpomos e ali ficamos à espera, como se de um elevador se tratasse.

O jogo até perde a vergonha ao mostrar nestas alturas o habitual ícone de loading no canto inferior direito do ecrã! Nem uma Switch em modo docked evita estas situações angustiantes. Questiono-me se o atraso de mais de um mês em relação à janela de lançamento inicialmente prevista tenha contribuído para tal.

Se a questão gráfica pode estar pouco refinada, do outro lado da produção não faltou investimento. Tal como aconteceu com Fire Emblem Echoes, Three Houses tem diálogo falado integralmente em praticamente todas as cutscenes, tanto em Inglês como Japonês. Façam um favor a vós próprios e ouçam tudo. Leva mais umas valentes horas de jogo? Claro que sim, mas a entoação dos actores traz ao de cima as motivações mais profundas de cada personagem, que vão querer conhecer a fundo.

O esquema de personalidade com cada aluno é geralmente o mesmo – começam com uma característica algo esterotipada e por vezes irritante, mas à medida que conhecem a sua história através de combates secundários, conversas de suporte ou durante os passeios pelo mosteiro, as suas legítimas motivações vêm ao de cima e um personagem que odeiem pode passar aos vossos favoritos e vice-versa.

No entanto, para um jogo tão recheado de diálogo, é uma desilusão ver o personagem principal sem qualquer fala que se ouça. Expressões genéricas quando se sobe de nível ou se elogia tal subida de um companheiro não contam. Nem os grunhidos a sofrer ou desferir um golpe de espada. Há um pretexto narrativo, sim, mas não basta para justificar toda esta mudez e nem nas alturas em que há escolha de resposta podemos ouvir o nosso personagem a recitar falas repletas de sapiência. A segunda parte pode ainda surpreender, mas até aqui só vi um personagem calado bem escrito: chama-se Dedue, está nos Blue Lions e tem um passado trágico. E às vezes fala. O que ajuda bastante ao caso.

Para quem está à espera de mais críticas, elas terminam aqui e poderão quiçá voltar no segundo artigo.

É possível cozinhar com os alunos.

Impedem Fire Emblem: Three Houses de ser um jogo perfeito? Claro. Ainda podiam ser corrigidas em patch? Quase todas. Prejudicam a experiência global de jogo? Nem por sombras. Ter um Fire Emblem de consola doméstica numa híbrida como a Switch significa que tive Fire Emblem em casa, Fire Emblem na pausa do almoço, Fire Emblem nos transportes ou Fire Emblem onde bem entender. Tem activado o meu obsessivo-compulsivo latente e despertado rasgos de vício que nem nos meus anos mais doentios de adolescente me recordo. Seja pelos pedaços fulcrais de história disponíveis nas missões secundárias, pelas conversas no mosteiro ou pela ampla recompensa de moldar um estudante para um objetivo longínquo e ver esse objetivo cumprido durante uma batalha em que esse personagem supera todas as expectativas – Fire Emblem: Three Houses já me faz pensar na próxima campanha e mal vou a meio desta. Para já, não o consigo largar.