Esta é a segunda metade da análise deste jogo. Podem recordar a primeira metade aqui.

Deixei na primeira metade desta análise a ideia de que Fire Emblem: Three Houses tinha um invólucro de Harry Potter e recheio de Guerra dos Tronos. Pois bem – ao fim de 100 horas entre os dois actos de jogo, o Rapaz Que Sobreviveu (ele aqui chama-se Dimitri já agora) ficou para trás.

Dimitri, triste…

O mesmo não se pode dizer quando avaliamos os pontos comuns com a adaptação televisiva de As Crónicas de Gelo e Fogo. Cinco anos após um evento crucial em Three Houses o protagonista acorda de um (vamos chamar-lhe) coma e muito mudou em Fódlan. À boa moda dos clássicos Fire Emblem – Path of Radiance e Radiant Dawn foram os últimos originais a enveredar por aí – eis um continente em guerra. Escolhida a casa Blue Lions e o Sacro-Reino de Faerghus como perspectiva para continuar esta narrativa, as conspirações multiplicam-se tanto quanto a escala de todo o jogo.

…Edelgard, triste…

Se estão a pensar que só vi a série e não li os livros, aviso ao ‘plot twist’: se muita da maquinação política de Guerra dos Tronos existe em Three Houses, o mesmo se pode dizer da forma como os livros de George R.R. Martin contam uma história. Three Houses serve-se das suas personagens para o fazer de forma brilhante – apenas entre capítulos temos mais uma vez a breve narração do Capitão Jeralt. Às vezes nem damos por isso. As relações entre personagens levam ao conflito que temos em mãos neste segundo acto e todos eles têm um papel na história. Quer com o desenrolar dos acontecimentos em que cada um toma parte, quer com o constante desvendar do passado de cada um. Quantas vezes dei por mim a desenvolver níveis de suporte entre duas personagens só para descobrir se realmente tinham uma relação relevante para a história como eu imaginava.

…e Claude, também ele triste.

Sabem que mais? Havia sempre. Pensar que a eventual falta de curiosidade em investigar estes laços faria-me perder pedaços relevantes de narrativa é angustiante. Não é como se a mecânica de Three Houses permita ao jogador construir a própria narrativa: isto não é um título da Telltale ou das Aventuras Fantásticas. Aliás, tirando a escolha inicial da casa onde vamos ensinar e talvez outra ramificação mais à frente, nenhuma escolha narrativa relevante é dada ao jogador. Porém, depende inteiramente do seu esforço perceber uma parte ou a totalidade da história. Imaginem ir à Capela Sistina, olhar para o tecto e, em vez de entrarem num momento de profunda fruição, tirarem apenas uma ‘selfie’ com a Criação de Adão como pano de fundo.

Agora imaginem obras de Miguel Ângelo ali dentro.

Já havia referido na primeira parte desta análise que é necessária uma absurda quantidade de tempo para absorver todos estes elementos. Ao ponto de ser quase impraticável quando passamos pelo menos oito horas do dia a fazer pela vida. Mas depois eis uma bonita ‘side quest’ onde nos é prometido mais um desenlace do complicado novelo que é Fódlan.

O que é que esta mão conseguirá fazer em nove horas?

A par da estrutura narrativa, importa sublinhar a ideia de que toda a escala do jogo aumenta com o desenrolar deste segundo acto. O objetivo das missões é mais sério agora que abrange um continente inteiro. O semblante dos personagens – mais experientes graças à vossa orientação na primeira parte – mais carregado. Os mapas são mais extensos. Os inimigos mais numerosos. As perdas, inevitavelmente, também.

Esta escala é bem visível ao longo da história mas está espalhada um pouco por tudo o que fazemos em Three Houses. Ah, o doce éter do sub-texto! A dada altura tive sérias dificuldades em gerir fundos de guerra e itens. Nunca me faltaram armas para despedaçar inimigos, mas nem sempre tive as mais adequadas em bom estado. Tal como não tive recursos para forjar todos os instrumentos bélicos que desejei. A gestão de tempo e recursos continua bem presente no segundo acto de Three Houses, tal como a progressão através de um calendário. É certo que fiquei surpreso – e um pouco preocupado com as horas que iria despender – com a continuação da mecânica de aulas e dias livres, embora acabe por funcionar dentro da escala de uma guerra que não se trava em meia dúzia de dias. No mosteiro Garreg Mach perde-se menos tempo, contudo, já que a possibilidade de recrutar mais personagens nos é vedada, logo não existe mais necessidade de dedicar tanto tempo a agradar aos alunos-agora-soldados.

Há sempre tempo para alguma frivolidade com Hilda.

Por conseguinte, o tempo absoluto que já era dedicado às batalhas mantém-se. Neste ponto tinha deixado bem clara a minha preocupação com a falta de dificuldade do primeiro acto, mesmo em Hard mode, com amplas hipóteses de refazer erros que terminam com a morte de um personagem. A par da escala, também a dificuldade subiu consideravelmente. Não só foi um desafio bem-vindo como mais um pedaço de contexto adequado ao jogo, em que nos debatemos com uma guerra implacável. Continuei a ter amplas chances de refazer os meus erros, simplesmente precisei dessas chances com mais frequência. Por vezes até as esgotei, mas nem uma vez senti a frustração de ter de reiniciar o jogo. Neste ponto continuo ansiosamente à espera do Lunatic mode: Fire Emblem não é Fire Emblem sem a) perder personagens e/ou b) reiniciar um mapa para que a) não volte a acontecer.

“Olha Dorothea, estudasses!”

Não poderia concluir este exercício de como Three Houses consegue estabelecer uma escala épica – que ultrapassa títulos anteriores – sem referir a novidade da franquia em atribuir pelotões de batalha a cada personagem. Afinal, todos estudaram na Academia de Oficiais, não iam ser praças a vida toda, certo? Há dezenas por onde escolher, por entre infantaria, cavalaria, bandidos ou magos. Todos têm uma afiliação geográfica e até política que os coloca bem enquadrados na história. Permitem não só um incremento a certas capacidades de cada personagem (um grupo de magos permite maiores danos mágicos) como a possibilidade de executar um ataque colectivo cujos efeitos nenhum personagem individualmente conseguiria replicar.

A Intelligent Systems foi ainda ao pormenor de deixar as animações destes pelotões bem presentes não só nas batalhas (onde os nossos pelotões e do adversário também lutam entre si) mas também no mapa em geral, onde existe agora uma câmara que amplia o terreno ao nível da terceira pessoa. Agora um personagem que se esconda no meio de um bosque está mesmo protegido por árvores à escala, ao contrário do que a franquia tem feito até aqui. Podemos até movimentá-lo livremente dentro do que em condições normais seriam apenas os quadrados por onde ele pode andar. O jogo compensa o resto. Esta câmara permite-nos realizar todas as acções de combate, mas infelizmente foi só ambição sem execução. Nunca achei possível ter a visão estratégica necessária ao aplicar este zoom, embora tenha de admitir o quão épico tudo parece desta perspectiva. Quiçá num título futuro esta execução seja adequada.

The KKK Took My Baby Away.

Fire Emblem: Three Houses é um jogo extremamente ambicioso. Também o era Radiant Dawn e esse acabou por se reduzir a jogo amado apenas pelos fãs incondicionais. Só que desta vez estamos perante uma experiência tão expansiva mas que retém tudo aquilo que a franquia fez de bom até aqui. Seja pela satisfação da narrativa ou de guiar aprendizes até estes se tornarem mestres, este é sem dúvida dos jogos mais marcantes que alguma vez joguei. Three Houses não é, porém, um Breath of the Wild, GTA: San Andreas ou Chrono Trigger, jogos onde tudo se alinha tão perto da perfeição quanto possível. Caramba, desde as falhas gráficas imperdoáveis, passando pela falta de alguns desenlaces chave sem recorrer a uma segunda ou até terceira campanha (joguei a campanha dos Blue Lions e ainda não tenho a certeza de quem verdadeiramente é o protagonista) até à ainda não remediada dificuldade, é difícil não dizer que o rei vai nu.

Mas no final de tudo, não deixamos de gostar de O Senhor dos Anéis por causa de um par de extras no meio de uma horda de orcs pois não? Three Houses é épico e trouxe-me emoções vibrantes ao jogá-lo.

É sem dúvida o melhor jogo imperfeito que alguma vez joguei.