Lembro-me de por volta de 1995 ter recebido emprestado um cartucho de Game Boy que um vizinho tinha recebido de prenda de anos e que não gostava assim tanto porque não conseguia avançar muito no jogo. Andei semanas de volta dele, sem grande preocupação para o meu vizinho, que em troca foi recebendo também por empréstimo a minha curtíssima colecção de jogos de Game Boy. Nunca tinha jogado nada parecido com aquele jogo, cujo nome era demasiado longo – The Legend of Zelda: Link’s Awakening – e que viria a mudar as minhas expectativas para com os videojogos. 

Quando saiu em 1993, Link’s Awakening não era propriamente um jogo fácil, pelo menos para os padrões que muitas crianças e pré-adolescentes (como era o meu caso) tinham dos seus jogos. A não-linearidade de um mundo aparentemente aberto colidia com a progressão imaginada pelos seus autores, à medida que íamos avançando nas dungeons e obtendo as ferramentas necessárias para explorar a ilha de Koholint.

Apenas alguns anos mais tarde viria a jogar o magistral A Link to the Past, e perceber que aquele jogo marcante que joguei com todo o esplendor âmbar do ecrã do meu Game Boy era uma sequela de um dos jogos mais marcantes da História dos videojogos. Não sei se este facto foi suficiente para obscurecer a memória e a existência de Link’s Awakening para os jogadores de todo o mundo, mas era óbvio, mesmo com o remake para Game Boy Color de 1998, que há um problema em seguir as pisadas de um colosso: a sua estatura é visível a milhas, mas a sua sombra cobre uma vastidão.

Não sou um defensor de remakes, pelo integralismo da obra dos seus autores que desenvolveram dado objecto perante um contexto. Porém, não sou fundamentalista para perceber que em algumas situações muito específicas um remake pode ser a margem necessária a que dada obra possa receber um novo olhar, muitas vezes merecido. Em quase nenhum media defendo isto, mas os videojogos, com a décalage tecnológica que têm, são um dos meus regimes de excepção. O anúncio do remake de Link’s Awakening, um dos meus Zelda favoritos e indubitavelmente um dos maiores influenciadores silenciosos da série e do próprio mercado de videojogos, soa-me à oportunidade perfeita para não só o retirar da sombra volumosa de A Link to the Past, mas também de o trazer para um novo público que por uma multitude de razões não o pode jogar. Muitos por acharem que, à semelhança do que era o projecto original, Link’s Awakening ser apenas um port menor do seu antecessor.

Mas não é. É algo mais, e muito maior do que a dimensão de um cartucho de Game Boy.

Não podia deixar de reconhecer desde o primeiro trailer de revelação do remake de Link’s Awakening que a decisão de imprimir uma direcção estética a este jogo distante do visual distinto do universo de Wind Waker, diferente da linha dos restantes jogos “recentes” de Zelda e diferentes da linguagem clássica nipónica do original foram uma excelente decisão. A aventura artística de criar este Link’s Awakening como um ambiente de diorama, com os personagens a assemelharem-se a brinquedos como Polly Pocket e Playmobil dentro de cenários também eles a emularem uma linguagem entre a plasticina e o plástico é uma excelente decisão conceptual, tendo em conta o tom do jogo e o desenlace da própria história.

Há porém ligeiros problemas técnicos. O primeiro prende-se com a transição para novas regiões dentro do grande mapa aberto, que causam sempre um soluço e um arrastamento à Switch, de algo que deveria ser suave visto que estamos, em teoria, apenas a avançar para um pixel identificado como uma nova região, mas que já está há muito representado na drawing distance da consola. A outra prende-se com a alteração de vulnerabilidade de um dos mini-bosses, o recorrente Armos Knight, que na versão original tinha outros pontos de fraqueza que ou ficaram mal definidos nesta nova versão, ou simplesmente foram alterados pelos game designers, tornando o puzzle da luta em algo estranho.

Link’s Awakening, dentro de uma série repleta de diversas leituras filosóficas, sempre foi de forma dissimulada um dos seus maiores exemplos da importância conceptual do subtexto. As verdadeiras motivações e explicações para o naufrágio de Link que correm nos minutos iniciais têm um desfecho interessante, e que tem repercussões ainda pouco exploradas na sua flutuante cronologia.

O aspecto doce deste novo Link’s Awakening vai ser, porém, enganador para muitos dos jogadores. É como um cachorrinho com ar terno que afinal é arraçado de Dobermann e nos arranca uma perna. Este jogo não era fácil com a minha imaturidade normal da idade, e tendo em conta a imaturidade do próprio mercado, como ainda não o é hoje. Mesmo com um hilariante sistema de dicas internas com recurso a uma linha telefónica existente na ilha de Koholint, há muita pista para desvendar, muitos segredos para descobrir, e muitas pedras, literalmente, por revirar. O que não é decerto habitual para a grande maioria dos jogadores.

Quando olhamos para os pormenores de game e level design de Link’s Awakening percebemos que o jogo é brilhante. Quando olhamos para o quadro completo e finalizado de sequências e flow de game e level design de Link’s Awakening reconhecemos que é um dos jogos mais importantes das últimas três décadas. 

Cada dungeon, pensadas sala a sala, numa sequência que faz sentido como um puzzle progressivamente complexo que vai testando o nosso raciocínio como tantos outros jogos têm imitado. Pelo meio da minha semi-desilusão (ou o não-amor total) por Breath of the Wild estão as Shrines e as Dungeons que ainda bebem do mindset de títulos como Link’s Awakening, em momentos de verdadeiro brilhantismo conceptual que por vezes tendemos a acreditar estarem disponíveis apenas a um grupo limitado de criadores, como muitos dos que compõem a Nintendo há décadas.

Quem jogou o jogo original vai ter muitos momentos de salutar déja vu, polvilhando a memória com lampejos de lembranças dos que fazer. Admito aqui, como admiti no nosso podcast desta semana, que uma vez apenas decidi ceder à tentação de ir tirar uma dúvida à internet sobre onde ir. Pelo meio do meu “pecado” relembro que já o tinha passado em criança, ao longo de semanas de perseverança, mas que hoje, a minha paciência para percorrer o mapa inteiro três vezes à procura do que precisava de encontrar fez-me procurar uma resposta mais imediata pelas internets. Não pensem menos de mim por isso, mas pensem mais de Link’s Awakening em contraste com a realidade do mercado contemporâneo. Não há nos dias de hoje jogos AAA que exijam o nível de investimento, investigação e perseverança como Link’s Awakening nos pede. E ao contrário do que acreditam, nem mesmo Breath of the Wild, que em momento algum teve o arrojo (ou a inventividade) de criar sequências de game e level design que se equiparassem ao desafio que Tezuka, Miyamoto e companhia teceram para aquele aparentemente pequeno jogo de Game Boy.

Link’s Awakening vai frustrar muita gente, e muitas destas vão encostar o jogo a um canto pelo seu mindset reflectir, a tout court, o pensamento de concepção de videojogos que vigorava há 25 anos, e que se diluiu, em grande parte, na evolução da indústria.

Para quem já o jogou é o momento obrigatório de revisitar um dos gigantes esquecidos de uma das séries mais influentes da indústria de videojogos, com ligeiras diferenças como a introdução de Dambé’s Shack e o seu “Zelda dungeon maker“, que substituiu a cabana do fotógrafo no jogo original. Revisitar um jogo e um mundo brilhantes como se da primeira vez se tratasse, com uma direcção artística distinta de qualquer outro título, e que conhecendo o enredo de uma ponta à outra encaixa na perfeição. Para quem jogou, tem aqui a sua oportunidade de o revisitar. Aliás, tem aqui a sua obrigação. Numa consola que está repleta de excelentes jogos e de ports de jogos da história da Nintendo, o remake de Link’s Awakening é, para mim, o Zelda obrigatório para se jogar na Switch. Reconheço a incredulidade que muitos terão ao ler isto, reconhecendo que a minha afirmação não apaga de forma alguma o brilhantismo de Breath of the Wild, nem a aura emblemática e as influências que este bebeu e que soube recriar em si mesmo. Mas Link’s Awakening é outra fibra. É um pedaço de História dos videojogos e da cultura, uma peça de cerâmica que se partida em cacos constituirá o corpo de inúmeras peças que lhe seguiram. 

Pergunto-me se um remake pode ser um dos jogos do ano, ainda que a sua essência esteja praticamente toda imaculada. A resposta parece-me simples e vem com outra pergunta acoplada. Como é que não se pode olhar para o remake de um dos jogos fundamentais da indústria dos videojogos como um dos jogos do ano?