O Tribunal Regional de Paris decidiu contra a Valve no seguimento de uma queixa da organização francesa de direitos do consumidor UFC Que Choisir, decretando que esta deve permitir que os seus utilizadores revendam os jogos por eles comprados na Steam. Caso o apelo da companhia não reverta a decisão, isto poderá ter impacto em toda a União Europeia.

Ora, pessoalmente, já fui chamado de profeta da desgraça quando alertei para o facto de termos cada vez menos controlo dos nossos jogos na sua progressão para o digital. Não compramos jogos, subscrevemos licenças não-exclusivas, intransferíveis e pessoais de utilização do Software. Uma licença que termina com a rescisão do acordo ou da subscrição que inclui a licença. O conteúdo e serviços são licenciados, não vendidos.

E foi esta mesma a defesa da Valve. Que é apenas um serviço de subscrição. Que os utilizadores não têm direitos pessoais sobre nada.

A noção de subscrição aqui é muito duvidosa, como concorda o tribunal. A não ser que nos deixemos levar por questões semânticas impostas por empresas, pagar para ter acesso teoricamente ilimitado no tempo a um produto, através de um pagamento individual para cada título, com o mesmo preço da aquisição física, é muito semelhante a uma compra. E se é para pagar para não ter, pelo menos espera-se preços razoáveis, e não o mesmo que é cobrado pela versão física.

“Carrinho de licenças não soava tão bem?”

Mas a questão das licenças parece não incomodar muita gente.

-“Sempre foi assim, até no formato físico.”

Verdade. Chaves de produto com limite de instalações ou vínculo do jogo a contas pessoais já são standard no mundo dos computadores há décadas, mesmo para produtos comprados em formato físico. Nas consolas apesar de o mercado em segunda mão existir sem quaisquer problemas, estes avisos estão nas costas da caixa do produto.

Mas felizmente, estas mensagens passivo-agressivas podem ser ignoradas graças a legislação que nos protege e que se sobrepõe a termos de utilização. No digital, pelo menos para já, estamos à mercê das plataformas.

No entanto, os produtos digitais são um bicho diferente, muitos defensores da Valve argumentam. Um jogo digital usado não tem marcas de uso ou qualquer depreciação. É igual ao original. Vai competir no mercado em pé de igualdade com o produto novo.

Não posso eu vender um quadro artístico comprado, lá porque não o desgastei fisicamente quando dele fiz uso olhando para ele?

E não competem já com o original os discos em formato físico revendidos? O que estamos a comprar não é propriamente a caixa que possa ter algum dano visível. É o produto digital que o disco põe a correr. E não esperamos nada menos que ele faça esse trabalho na perfeição. Caso contrário a venda é indiscutivelmente revogável. A cópia continua igual ao original.

Ahem… Mas na caixa diz que…

O argumento que apela à sensibilidade é o que se refere aos criadores, que verão mais cópias a circular das quais não viram a sua parte. Para as grandes companhias pode ser um incentivo para aumentar as microtransações, DLCs e modos online. Para além de mais um prego no caixão dos jogos single-player, para criadores mais pequenos pode ser uma perda de fundos muito significativa.

Mas podemos defender a sobrevivência de um negócio às custas dos direitos do consumidor? Qualquer indústria sonharia com a oportunidade de negar ao privado a revenda dos seus bens, mantendo a exclusividade das vendas. Fábricas, carpintarias, escritores ou qualquer vendedor teriam maiores lucros assim. Não faz sentido a exceção apenas porque é o status quo, e que abrange uma indústria que nos é querida.

Ou estarão as nossas noções de propriedade desatualizadas, e como prevê o autor Kevin Kelly, até “shoeing” se tornará eventualmente um verbo nalguma futura aplicação de subscrição de sapatos. Serão os verdadeiros modelos de subscrição o único futuro sustentável para os videojogos?

O que é certo é que, a abrir-se este precedente, as coisas irão mudar, seja para melhor ou para pior.