Durante largos meses no ano de 2001 passei tanto tempo em Athkatla, que devia ter dupla nacionalidade, infelizmente os serviços do SEF de Amn são piores que cá e eu não tinha direito a vistos gold. Eu conhecia todos os recantos da cidade e arredores, quase todas as pessoas que lá habitavam, as guildas, os negócios ilícitos e até os mais recomendáveis, conhecia inclusive algumas criaturas mágicas apesar de ser ilegal o uso de feitiços. Athkatla era como uma segunda casa e Baldur’s Gate II: Shadows of Amn é ainda hoje sem sombra de dúvida um dos melhores jogos de Role Play baseado em Dungeons and Dragons de sempre. Se não for dos melhores jogos de sempre. Ponto final. Por isso, quando me veio parar nas mãos Baldur’s Gate and Baldur’s Gate II: Enhanced Editions para a XBox One a minha sensação foi um misto de desejo nostálgico e reticência. Não há muitas coisas em que seja puritano, mas no que diz respeito a RPGs clássicos isométricos tal como nos first person shooters, acho que rato e teclado são a forma para que foram feitos contudo o port de Baldur’s Gate fez-me ponderar o meu fundamentalismo.
Quando peguei em Baldur’s Gate II pela primeira vez, já tinha rodado Baldur’s Gate e Icewind Dale, portanto as suas mecânicas não me eram estranhas, já conhecia de raiz o trabalho que a Bioware tinha feito até ali portanto quando avancei na aventura tudo se mexia com a naturalidade de um pianista com milhares de horas de prática a tocar a sua melodia favorita. Conseguia manobrar a minha party pelos combates com as estratégias mais complexas e eficazes possíveis. Anos mais tarde, muitos anos mais tarde, tentei jogar de novo através do seu port para Android, mas aí os comandos por touch screen eram não fluídos como tentar fazer uma cirurgia com luvas para a neve vestidas. Daí a minha surpresa nesta adaptação para consola quando me aproximei dela exageradamente cauteloso e com apreensão antecipada.
As minhas dúvidas foram apaziguadas ao fim de alguns minutos quando me apercebi da simplificação dos comandos no jogo sem remover conteúdos. Os gatilhos chamam ao ecrã rodas de opções em que podemos a partir daí aceder a menus de inventário, journal, settings de um lado e com o outro podemos ver os dos personagens individuais ou da party. Nas palavras de Fernando Pessoa que vou descaradamente alterar: primeiro estranha-se um pouco, mas rapidamente entranha-se e torna-se natural. Mesmo com algumas pequenas dificuldades mas de pouca monta.
Talvez a melhor opção de adaptação de todas tenha sido dar ao jogador a possibilidade de mover um ou mais personagens diretamente com o cursor esquerdo em vez do clássico (e muito demorado) apontar cursor e confirmar comando. Para facilitar este modo, ao aproximarmo-nos de algo que pode ser usado ou visto, o jogo dá-nos automaticamente um highlight de acção tornando tudo mais natural. A única questão que levantava neste é que ao fazer isso com os sprites dos personagens feitos há quase 20 anos tornam os movimentos pouco naturais como se se estivessem a mover em fast forward. Podia dizer que a jogabilidade neste caso é secundária porque o core de Baldur’s Gate I e II é a sua história mas sem poder manobrar o “livro virtual” que é este jogo perderíamos muito da sua magia.
Um romance melhor que muitos romances nas listas de best sellers mundiais. BG tem romance, na verdade podemos dizer que foi aqui que nasceu a dinâmica aplicada anos mais tarde em Knights of the Old Republic, Dragon Age ou Mass Effect, foi ali que começou a ser desbravado o caminho que depois foi também negligenciado, porque enquanto quase todos os jogos que usam hoje esta particularidade limitam-se a recriar diálogos entre personagens bidimensionais na melhor das hipóteses. Em ambos os jogos de Baldur’s Gate temos personagens com várias facetas de personalidade, algumas vezes influenciadas por nós, outras que nos influenciam. Mas não é só nos diálogos belissimamente escritos que encontramos isto: é nas descrições das situações e aventuras que rivalizam a do Ramalhete, é nos tomos, pergaminhos ou outros que encontramos e lemos e em toda a história que foi escrita para ambas as aventuras massivas, mesmo com as suas diferenças.
Enquanto no primeiro jogo a aventura é mais expansiva guardando até quase ao seu final a revelação das origens do nosso personagem, o segundo é consideravelmente mais intimista e introspectivo, usando Jon Irenicus como pivot e ponto fulcral da nossa missão. É em Jon Irenicus na profundidade do seu ser que vemos a melhor mestria de escrita da BioWare que criaram um dos melhores vilões de sempre dos videojogos, Irenicus é um personagem com sentido, ele não quer destruir o mundo porque sim, os seu objectivos têm razão de ser, são calculados e foram causados pelo seu historial de vida. E tal como Jon Irenicus, todos os personagens que encontramos são igualmente trabalhados e talvez metade do prazer deste jogo é explorar esses personagens e as suas relações.
Baldur’s Gate e Baldur’s Gate II já tinham bastante conteúdo original, e estas versões incluem todas as suas expansões dando-nos centenas de horas de jogo antes de sequer pensar em acabar um deles. A inclusão de um story mode em que os personagens não morrem e o jogador pode seguir a sua aventura sem pressões pode ser polémica para alguns jogadores mais hardcore mas este não é um jogo desafiante por ser difícil, é desafiante porque quando nos entregamos a ele, dificilmente vamos querer sair do seu abraço. Lembro-me que nos loading screens originais do jogo recebíamos a mensagem “Os personagens do jogo não precisam comer, mas tu sim. Faz uma pausa ocasionalmente”. Tal como um bom livro que recusamos parar de ler mesmo com as pálpebras teimosamente a fechar, ambos os Baldur’s Gate forçam-nos a continuar até chegar ao fim pela sua história brilhante.
Ou só para ouvir Minsc gritar para o seu hamster “The eyes, Boo! Go for the eyes!” mais uma vez. Apesar do custo de quase €50 poder ser considerado alto para um jogo com 20 anos, a quantidade de conteúdo e qualidade neste port feito pela Beamdog tornam-no uma compra para lá de recomendável. É quase tão obrigatória como alguns dos melhores exclusivos deste ano.