Uma das conversas mais difíceis que tive enquanto pai foi a resposta à dúvida derradeira do meu filho, que é igualmente a de toda a Humanidade: afinal o que nos acontece depois de morrermos? Uma pergunta que chegou cedo demais, tinha ele ainda 4 anos, sem que eu estivesse preparado sabendo na realidade que nunca estaria, nem naquele momento, nem em qualquer outro. Do pragmatismo do meu ateísmo respondi simplesmente: “eu e a mãe acreditamos que não acontece nada, que a vida biológica termina. Quem morre fica na memória de quem vive, e essa é a vida após a morte. Mas não temos certezas. Aliás, ninguém as tem”. Sem qualquer proselitismo ateu da minha parte, que até soa agnóstico na incerteza, a realidade é que este debate é tão antigo quanto a racionalidade, e entre os argumentos que o meu filho levou para o recreio sobre um tema tão pesado e tão inevitável, a verdade é que ninguém sabe o que se esconde para lá do toque da Morte. Quem sabe se o apostolado de Kojima através do seu Death Stranding seja uma resposta possível? Ou provável.

Falando em Kojima, e em jeito de nota prévia, admito o meu desconforto com o afamado autor japonês. Joguei Metal Gear 1 e 2 e Metal Gear Solid, para além de Policenauts. Mas a aura de auteur que resvalava a prepotência (fosse ela alimentada por Kojima ou criada e alimentada pelos seus muitos milhares de fãs), a realidade é que sempre tive alguma ideia do designer ser, de certa forma, overrated. Um autor que se sobrepõe em excesso às suas próprias criações e que por vezes parece não as deixar respirar. Death Stranding prenunciava-se como o pináculo do Kojima-auteur, na pior acepção da expressão.

Parte da justiça de se escrever uma análise isenta passa por reconhecermos as nossas pré-concepções (que existem sempre, quer admitamos ou não) e eu tinha-as não só com Kojima, mas também com os dois primeiros trailers de Death Stranding. A minha estranheza para com a nova obra de Kojima devia ser semelhante a de milhões de pessoas pelo mundo todo que recebia com sobrolho franzido Norman Reedus com um bebé, e um mundo do qual pouco se sabia. Admitir que estamos errados não é difícil, e no meu caso estava totalmente errado com Death Stranding.

Quem mergulhar em Death Stranding à espera de um jogo de acção, rapidamente perceberá que conceptual e mecanicamente Kojima pensou neste seu novo jogo para nos lembrar que não somos super-humanos, e que procurarmos activamente o confronto e a morte num jogo em que ela está por todo o lado é uma péssima ideia. 

Mais do que conceitos e ideias de vida, morte e a inevitabilidade do que está pelo meio, Death Stranding é um jogo sobre percursos. A alegoria constante entre as agruras do caminho trilhado por Sam, o protagonista, é ela mesma o paralelismo entre as dificuldades constantes que encontramos na nossa vida, sempre com a Morte à espreita. Aliás, o grande paralelismo de cada nova viagem, cada nova entrega e cada nova exploração de Sam é o símbolo da perseverança, num mundo em que a própria morte, ou aspectos conceptuais dela, assombram algumas zonas, e nos querem levar consigo.

Dizer que Death Stranding é um jogo sobre fazer entregas entre dois pontos é reduzi-lo à sua essência primordial, e ser-lhe injusto na descrição. Cada entrega acarreta uma dificuldade mecânica, a de conseguir suportar o peso nos nossos ombros, e de conseguirmos manter a carga intacta perante as adversidades ambientais e geográficas. O mundo, é desolado. Ouvi alguns colegas queixarem-se desse vazio de cenário, quando na realidade, o realismo visual e a ínfima atenção ao pormenor a cada acidente geográfico, cada pedra e cada porção de grãos de areia existe como obstáculo à nossa missão. O sistema de Física de equilíbrio de Sam e da sua carga, de termos de balançar o peso do que carregamos às costas com os passos que damos, a influência dos declives e dos possíveis tropeções, são um elemento de tensão, de sacrifício, de opressão emocional e física nas tarefas do protagonista, que muitas vezes parecem em vão.

O Diabo está nos pormenores, e nos intervalos destes está o olhar sardónico de Kojima. A ligação entre as mecânicas de Física, ímpeto, equilíbrio e as correlações com os controlos são simples, à primeira vista, mas brilhantes. Ao final do dia, não é só o trajecto que conta, mas a materialização da responsabilidade nas cargas que levamos. Os inimigos humanos querem-nas, são viciados em entregas, e ignoram-nos se não levarmos nada connosco. Os BTs, as entidades espectrais invisíveis que nos assombram causam-nos dano, mas é a sua matérias negra que danifica predominantemente a nossa carga. É a chuva, denominada timefall, ou a queda de neve, que envelhecem tudo o que tocam e que danificam estruturas, veículos e carga. Sam é primordial na sua missão, mas a sua carga é vital para a sobrevivência das povoações humanas, os sobrevivente do titular Death Stranding que estão escondidos algures, e que nos contactam apenas via hologramas.

Penso que nunca senti tensão como a que vivi em Death Stranding. Há uma diferença entre o terror puro, e a pressão que a hostilidade deste mundo acarretam. Vejamos o caso dos BTs: as entidades invisíveis (conseguimos apenas vislumbrar a sua silhueta se permanecermos imóveis) que surgem em algumas zonas do mundo. A tensão que o choro do BB nos causa ao ouvirmos o seu medo a ser proferido pelas colunas do nosso comando. Tudo isto em zonas que não só temos de carregar o fardo que trazemos às costas, como andar lentamente, e se possível prender a respiração. Quando somos avistados pelos BTs a tensão aumenta ainda mais com o lodo que lhes é característico a rodear os nossos pés e muitas criaturas a tentarem deitar-nos ao chão. 

Há uma diferença tremenda entre o medo de vermos uma criatura aterradora a perseguir-nos, como tantos jogos fazem tão bem, e a tensão dos BTs em Death Stranding. É que eles são o expoente de um mundo que é ele mesmo uma tensão constante, polvilhado com momentos de melancolia pelo isolamento civilizacional. Aqueles momentos em que sentimos o poder do motor Decima, em que escalamos uma montanha e vemos à nossa volta uma cordilheira realista, isolada, inóspita, num mundo desolado.

O próprio mundo, as suas mecânicas que se vão abrindo à medida que avançamos na história, nos demonstram que Sam não é um guerreiro, ainda que tenha capacidade para se defender. Enfrentar tanto humanos como BTs como um soldado rapidamente nos lembra que o que somos na realidade é um transportador, e um sobrevivente. E que esses substantivos, apesar da nossa ligeira eficácia em combate, não se coadunam com a de um guerreiro. Admito que quase sempre evitei os perigos, não só porque isso me faz sentido para a construção e índole do protagonista e do mundo, como era a solução menos arriscada. Traçar um arco de caminhada infinitamente maior para evitar o confronto com os perigos humanos e sobrenaturais parecia-me o mais sensato. Isto não quer dizer que não tenha derrotado todos os inimigos sobrenaturais que enfrentei, evitando assim voidouts (os quais nunca tive algum, e que só soube da existência mecânica por contacto com outros reviewers): um evento que acontece quando somos devorados por criaturas específicas ou quando matamos um humano e não o cremamos até que a necrose tome conta dele, e que resulta numa explosão massiva que deixa uma cratera no nosso mundo, destruindo todas as construções que lá estiverem. Uma cratera que só a timefall consegue curar. Mais um indicativo do mundo das consequências de procurarmos o confronto. A imortalidade de Sam não é desculpa para o confronto, visto o impacto negativo que isso pode ter num mundo que activamente tentamos reconstruir dos escombros.

Como devem ter percebido, este artigo surge dias depois do embargo mundial ter sido levantado e a maior parte das análises terem sido lançadas. O atraso, entenda-se, foi intencional, e não constitui em si mesmo um real “atraso”. Um jogo como Death Stranding não deve ser apressado, como acredito que muitos colegas fizeram (como o meu grande amigo Rui Parreira admitiu). Apressar na ânsia de “o despachar” é sorver um prato exímio de gastronomia num ápice, sem o saborear. Death Stranding é magistral na forma como conta a sua história.

Death Stranding tem dois pontos altos: o mundo, hostil na sua geografia, realista na sua definição, e a história. Revelar qualquer ponto da história é estragar-vos uma maravilha narrativa, levantar-vos o véu sobre os nós que atam as muitas pontas soltas do jogo é roubar-vos um prazer que deve ser vosso. Posso, no entanto, dizer-vos dois pontos objectivos do enredo. O primeiro é que o ritmo como a história se desenrola é de uma mestria de storytelling. A exploração e componentes mecânicas do jogo são pautadas com o avanço da história e interligados com ela. A segunda é que a história em si é deliciosa, complexa, e altamente satisfatória desde o seu início, desenrolar, e conclusão. 

Apressar o jogo faz olhar apenas de soslaio outro dos seus momentos de genialidade a interligação mecânico de uma componente social complexa. Imaginemos que cada cópia de Death Stranding é uma dimensão de um multiverso de dimensões paralelas, em que cada jogador tem a sua versão unidimensional do mundo. O jogo interliga cada uma destas dimensões pessoais como um nódulo de dimensões que se interligam, em que as construções que fazemos em jogo (sejam elas pontes, cordas, escadas, casas privadas, zip-lines) aparecem nas dezenas de mundos dos jogadores que o sistema uniu ao nosso. E vice-versa, ou seja, ao voltarmos a uma zona onde passámos podemos ver construções feitas por outros jogadores, ou avisos (similares aos de Dark Souls) e que contribuem para a nossa travessia.

Logo ao terceiro dia de jogo decidi parar o avanço das missões de história e contribuir para algo que iria melhorar a minha travessia, mas a de todos os jogadores que a mim estavam ligados: recolher materiais para ir progressivamente imprimindo troços de uma auto estrada que atravessava a América. Foram dias dedicados a recolher materiais e a ir aumentando a estrada, facilitando a locomoção com veículos, até que senti que deveria avançar. Foi delicioso ver os jogadores a quem estava ligado a contribuírem com materiais para essa estrada, e noutras construções que criei, e que se materializavam num sistema de likes (com os devidos comentários à nossa vida virtual social dos dias de hoje). Mas, apesar de não nos cruzarmos com nenhum jogador, era curioso sentir que eu, e tantos outros, estávamos a povoar o mundo. A “paragem”seguinte foi na cordilheira a norte, onde a neve e as nevascas imperam, e onde a locomoção é dificultada. Com o acesso à construção de zip-lines, decidi passar 4 dias de jogo apenas a construir uma rede de pseudo-teleféricos que atravessavam toda a cordilheira, colocando os seus pilares no topo de montanhas. O planeamento da rede que criei permitiu-me uma 15 horas de jogo mais tarde, atravessar toda a cordilheira e todos os seus pontos de interesse em minutos, sem quaisquer riscos. Quando voltava ao jogo esboçava um sorriso via que outros jogadores tinham percebido a minha intenção e tinham eles próprios estendido a minha rede, facilitando o transporte numa zona tão difícil quanto esta. No entanto, o efeito do tempo também actua sobre estas construções, e acredito que em 1 semana, se ninguém fizer manutenção a toda esta rede, a passagem do tempo vai-se abater.

A representação do elenco de luxo, é ela mesma, um dos contributos cinematográficos de Death Stranding. Das componentes técnicas: lip sync e motion capture de um avanço tecnológico impressionante e que nos elevam a suspensão da descrença para uma aura de uma boa série de ficção especulativa.

Os personagens, todos eles memoráveis seguem a tónica de Kojima, de desenvolver figuras emblemáticas, bizarras, muitas vezes, que se evidenciam de muitos clichés de género. Há aqui uma grande influência de construção de personagens hollywoodescas na maioria deles, com personagens como Deadman, Heartman e Die Hardman a serem possivelmente dos mais destacados entre tantos outros. Os contributos de representação de actores e realizadores engrandecem o jogo, mas as interpretações de Mad Mikkelsen, Léa Seydoux, Lindsay Wagner e Margaret Qualley elevam-se acima de tantas outras de excelência.

A melancolia e solidão de Death Stranding sente-se na forma como Kojima pautou alguns momentos de deambulação e peregrinação como triggers de algumas músicas, compostas especificamente para o jogo, e devidamente identificadas no ecrã. Uma banda-sonora tremenda, memorável, que é apenas um dos pontos mais elevados de uma obra completa, em todas as suas partes.

Nunca esperei que um título cuja ausência pessoal de expectativas eu próprio desdenhava pudesse surtir um efeito tão avassalador em mim, como podem ouvir no episódio do Split-Chicken desta semana. Um jogo que mesmo tantas horas depois de o terminar ainda me leva a diálogos aqui em casa, e cujos pormenores e desenlaces ainda povoam a minha mente. Uma obra de autor, na acepção positiva da expressão, inovadora e distinta de qualquer outra, com uma mestria de storytelling que serve de masterclass nesta passagem que tantos títulos desta geração na PS4 têm sentido com um pé na expressão cinematográfica da sua própria arte. Death Stranding utiliza na perfeição as potencialidades do motor Decima para criar o mundo mais realista e mais fascinante na beleza do seu próprio isolamento. A história, brilhante, de uma carga emocional que se estende das mecânicas ao enredo, fica para quem o terminar. 

Para mim, resta-me um vénia merecida a um autor que eu considerava sobrevalorizado, mas que construiu aqui não só o que é o definitivo jogo de 2019, mas um dos mais emblemáticos da décadas. Cumpriu-se Kojima, para mim, na construção de uma obra obrigatória dos videojogos, dura nas suas mecânicas e no mundo que o circunda, onde a Morte é mais que a pergunta que nos sobrevoa: é uma espécie de resposta proferida em surdina na neblina de um mundo que quase não parece virtual.