Death Stranding é o primeiro jogo de Hideo Kojima como produtor independente, após a sua polémica saída da Konami, levando ao abandono da sua série Metal Gear Solid e outros projetos relacionados com Sillent Hill, onde estava envolvido com mediático ator Norman Reedus e o cineasta Guillerme del Toro. Nomes que transitaram para a sua nova obra, no meio de um elenco de luxo, sobretudo ao nível de cameos.

Diga-se de passagem que este jogo vai dividir opiniões, sobretudo aqueles que esperariam um qualquer tipo de sucessor espiritual do universo de Metal Gear Solid, ainda que Kojima tenha explicado desde o primeiro dia que este seria um título experimental, com uma forte componente social. Ou como o próprio referiu, um novo género chamado Strand Game, ou seja, baseia-se numa forte componente social, mas não é um jogo online, nem sequer verdadeiramente de pura ação, nem tampouco um título de ação furtiva, ainda que esses componentes estejam presentes. Confusos? É normal, Death Stranding está longe de ser um jogo convencional.

Mas o que sempre deixou a comunidade de fãs intrigada e confusa dizia respeito à narrativa, com as amostras a serem alvo de escrutínio, no meio de belíssimas cut scenes dos trailers, ainda que fossem completamente mind fuckers. E diga-se de passagem, Death Stranding apresenta-se como um dos jogos visualmente mais bonitos desta geração, sobretudo ao nível da captura dos atores, muito devendo-se à tecnologia da Guerrilla Games de Horizon Zero Dawn, com o seu motor gráfico Decima, fruto do cheque em branco que a Sony passou ao lendário produtor nipónico.

Antes de mais, deixem-me partilhar que esta deve ter sido a review mais difícil de fazer. Não pela sua longevidade, já agora, 56 horas segundo o ficheiro de save, obviamente com muitas coisas que ainda se podem fazer. Mas pelo exercício que é tentar separar a história cinematográfica repleta de reviravoltas e elementos de fazer queimar a ervilha; da própria estrutura de gameplay, porque isto no fundo ainda é um jogo; e por fim as mensagens sociais que Hideo Kojima quis passar com este jogo de autor. E quando um jogo nos faz pensar nele quando é desligado, então é porque existe algo nele verdadeiramente especial. E sim, goste-se ou odeie-se Death Stranding, este título é de elevada importância para a indústria dos videojogos.

Em primeiro lugar, Death Stranding é um jogo baseado num mundo completamente aberto à exploração, neste caso todo o território dos Estados Unidos. Podem ignorar tudo o que vos pedem e partir para a exploração, ou pelo menos tentar, porque estamos perante um jogo com um mapa massivo e com uma escala gigantesca. O seu terreno é acidentado, repleto de rios e montanhas que se tornam inimigos naturais da personagem. E sem o equipamento que vai sendo desbloqueado ao longo da aventura, é perigoso afastarem-se.

Como é sabido, o jogador controla a personagem Sam Porter Bridges, interpretado por Norman Reedus, e este é basicamente um estafeta. Não pensem que se trata do tipo herói acidental, aquele entregador do Uber Eats que vai salvar o dia, ou qualquer coisa. Não, desde o primeiro minuto que a personagem se revela especial neste mundo que foi invadido pela corrente da morte, ou seja, partes do mundo têm a presença de seres invisíveis cuja presença tem de se lidar com muito cuidado. É necessário parar para os sentir e evitá-los a todo o custo.

Isso faz com que os Estados Unidos fiquem totalmente fragmentados, com os sobreviventes a dispersarem-se pelo território. O jogo lida com questões de vida e de morte, assim como o purgatório ligado ao Death Stranding. Mas não pensem que eu vos vou fazer a papa de explicar o que se passa, trata-se de uma das mais complexas narrativas que Kojima já realizou e nem depois de rolarem os créditos se safam de tentar compreender a história.

O que precisam saber é que Sam tem especificações biológicas que podem ser utilizadas para combater a Death Strading, mas o seu propósito é ligar todos os acampamentos de pessoas que vivem espalhados pelo país. E para tal, é preciso fazer entregas, dezenas, e centenas de entregas, até Sam quase literalmente cair para o lado.

Death Strading é completamente diferente de qualquer outro jogo open world. E seria fácil para Kojima despejar atividades pelo mundo, e isso não vão encontrar. O desafio, e acreditem que muito difícil, é percorrer os caminhos de A a B para fazer as entregas. Há no entanto entregas ligadas à história, e outras secundárias, aos pontos mais inóspitos dos Estados Unidos, seja no alto de uma montanha ou em grutas localizadas em ravinas. A personagem percorre o caminho sob sol, furiosas tempestades de neve e vento e o mais perigoso inimigo: a chuva do tempo. Esta chuva literalmente envelhece tudo o que toca, incluindo a carga transportada, e a carga é sagrada, que devem salvaguardar a todo o custo.

Mas já devem estar a perguntar, se fazer apenas entregas não se vai tornar repetitivo. Sim, Death Stranding é repetitivo, e considero que o Kojima esticou um pouco da corda para viagens que podem demorar mais de uma hora, com um caminho que deve ser planeado no mapa geral, tentando contornar montanhas, rios com fortes correntezas, mas também obviamente a presença da Death Stranding e ainda os ladrões chamados mulas. E neste mundo um cadáver gera uma necrose, o que neste jogo é uma autêntica bomba nuclear, como irão compreender nos primeiros momentos da aventura. Por isso não podem utilizar armas de fogo nestes inimigos, mas há outras armas não letais para lidar com os humanos.

E acreditem, quando se tem dezenas e centenas de quilos às costas, que se empilham, com cada contentor com a sua própria física, levando à necessidade de controlar o equilíbrio de Sam, é realmente difícil escalar uma montanha e evitar ser arrastado pelas correntes do rio. E há mesmo algumas encomendas que têm tempo limite para serem entregues, o que aumenta o stress e a probabilidade de cometerem erros de percurso.

E claro que com o avançar, com a ligação dos vários pontos da América, os postos recompensam o jogador com novas invenções que podem ser depois impressas na impressora 3D com materiais recolhidos no mapa, ou reciclando coisas que não precisam. Uma escada será útil a trepar montanhas ou atravessar rios, uma corda para os descer. Mas como bom jogo de Kojima terão de lidar com o desgaste do calçado, encontrando botas, assim como exoesqueletos para as pernas, que ajudam a caminhar, e claro, veículos como motas e camiões, todos eles elétricos, que necessitam ser carregados, seja em locais próprios ou podem sempre deixar ao sol que lentamente carregam.

Há dezenas de itens para ajudar, mecânicas especiais para descobrirem, mas falta falar na alma do jogo: a componente social, ou a mecânica trend. A forma mais fácil de explicar é imaginarem a componente multijogador passiva de Dark Souls. Ou seja, cada ação do jogador no seu mundo tem impacto na nossa campanha e vice-versa. Todas as partidas estão interligadas e ainda que não vejamos nenhum jogador da nossa rede, as suas ações modificam o nosso mundo. E é aqui que Death Strading se torna brilhante, ao podermos encontrar cargas e encomendas perdidas de outros jogadores e ir entregá-las em troca de likes, que funcionam aqui como pontos de experiência, que desbloqueiam melhorias como capacidade de carregar mais peso ou ter maior equilíbrio, etc.

Mas imaginem que um jogador utiliza uma escada no jogo deles, esta irá aparecer no nosso jogo, como ajudas comunitárias, os quais podemos deixar o like, e vice-versa. E as coisas vão mais longe no tal plano de reconstruir e reconectar a América. Lembram-se de eu falar nos obstáculos físicos, da própria natureza? Juntos os jogadores podem superar, construindo autoestradas elétricas ao longo de todo o mapa, adicionando a quantidade que quiser de matérias-primas, que são muitas, e produzir pontes para os riachos, terminais para carregar veículos, protetores de chuva do tempo, que revitaliza a mercadoria, contentores de correio, torres de vigilância e até bases onde se pode dormir ou fabricar itens. Há mesmo depósitos comunitários onde podem depositar ou levantar materiais à descrição. Acredito que na versão final vamos ver muito do impacto dos jogadores no mapa, e como o seu trabalho conjunto vai contribuir para tornar o mapa mais fácil e divertido de explorar.

E até podemos levantar e utilizar veículos de outros jogadores da garagem ou encontrar abandonados no mapa. Tantas vezes que vão agradecer a alma generosa que deixou ali aquele veículo. É essa componente social, de todos trabalharem no mesmo propósito que torna este jogo especial, o que me leva às inspirações e à crítica social que o próprio Kojima insere no jogo que diz respeito ao isolamento, às pessoas comunicarem por hologramas, evitando o contacto físico.

Esse incentivo reflete-se mesmo na origem desta produção, quando a Sony estendeu a mão ao produtor quando este saiu da Konami com as mãos a abanar, e deu-lhe todas as ferramentas e investimento que necessitou para produzir o jogo. E mais os amigos que o rodearam para participar como actores, não só o protagonista Norman Reedus, como Guillermo del Toro, o brilhante Mads Mikkelsen, o velho conhecido Troy Baker, Tommie Earl Jenkins e o cineasta Nicolas Winding Refn que dá provas de ator, já para não mencionar cameos deliciosos de Conan Obrian, Geoff Keighley e até Hermen Hulst que é o patrão da Guerrilla Games, apenas para referir alguns. Isto é a prova de que a união faz a força e que os amigos estão presentes para as ocasiões. Não esquecer, claro que o jogo encontra-se dobrado em português, com o protagonista a ser interpretado por Pêpê Rapazote.

Há obviamente outras mensagens que podem retirar, o advento das conexões 5G em que médicos podem ajudar a dar à luz remotamente, o futuro dos veículos elétricos, a comunicação por hologramas, e outras representações subliminares, sempre à interpretação de cada um. Veja-se no entanto as marcas das mãos no corpo de Sam, representando a sua ligação com a Death Strading, mas com uma mensagem que o Kojima tem tentado passar, não apenas no jogo, como a morte do planeta na vida real, devido às questões climáticas, salientando a metáfora que o futuro está nas nossas mãos.

A esta altura ainda devem estar a perguntar, mas então e o bebé que Sam carrega? Bom, este é mais uma kojimice, porque na história o BB, como é chamado, é um bebé criado geneticamente como uma ferramenta, ligada a um radar para detetar a presença do Death Strading. Para onde está o radar a apontar, é a direção onde estes estão. Para os ver, em breves silhuetas, Sam necessita suster a respiração. Se é possível matar estas criaturas? Sim, mas faz parte da história, que mais uma vez vou deixar para explorarem. De salientar que o bebé tem uma barra de stress, pelo que se forem agarrados pelos braços do além, este começa a chorar, e caso fique sem energia, o radar deixa de funcionar.

Na verdade o BB é um dos pontos fulcrais da narrativa, que liga as ações da personagem a outras, e no fundo é o catalisador das motivações de Sam. E mais não digo.

Como disse, há armas no jogo, mas são muitas poucas vezes que irão de facto utilizar. Há algumas sequências concretas, que já foram mostradas nos trailers da personagem de Mads Mikkelsen em diferentes palcos de guerra. Estes são os únicos segmentos mais próximos de Metal Gear Solid, em que de facto utilizamos espingardas, caçadeiras e metralhadoras, assim como o uso de granadas. E é pena de serem muito breves, porque como seria de esperar a ação está muito refinada. Há ainda combates mais táticos e furtivos contra os elementos da Death Stranding, abrindo algumas sequências espetaculares contra mini-bosses. Mas há outras surpresas no que diz respeito à ação que deixarei para descobrirem.

Ainda no que diz respeito ao grafismo, as paisagens são de luxo, com as condições meteorológicas a afetarem a ação, assim como o comportamento dos veículos. A personagem procura o equilíbrio, numa luta constante contra o peso da mercadoria, e por muito que sintam a tentação de ser sucateiros e recolher a carga perdida, isso só vai dificultar a velocidade da personagem, que pode tropeçar, cair e espalhar tudo pelo chão danificando-se. Felizmente irão aceder a atrelados e utilizar as carrinhas para levar mais encomendas aos destinatários. E quando derem conta até terão uma rede de robots autónomos a fazer o trabalho de estafeta pelo jogador, mais uma vez, podemos ler a mensagem de como as máquinas vão roubar os empregos às pessoas no futuro.

Felizmente Sam tem um mapa detalhado, onde está registado os locais de entregas, os itens espalhados pelo mapa e as estruturas construídas pelos jogadores, o que permite fazer um planeamento cuidadoso das rotas a seguir, porque raramente traçar um percurso de A para B resulta. E o mapa é utilizado através de umas algemas, que vigiam constantemente o jogador, cá está, mais uma crítica a esta sociedade onde impera a supervigilância dos cidadãos. Apesar de ser enorme e conter um sistema muito próprio de fast travel, este só transporta a personagem e não a carga, o que obriga sempre a andar a pé com as encomendas.

Não há dúvida que no meio das mecânicas de jogo, a história é complicada, mas apresentada de uma forma cinematográfica, desde a introdução, a utilização de flashbacks para complementar a narrativa, e até os créditos rolarem, tudo transpira a cinema. E até a banda sonora foi escolhida a dedo, com os temas licenciados a serem disparados em viagens, contrastando com a solidão da personagem. De realçar o excelente trabalho dos atores, os textos e a representação, salientando o valor do elenco, suportado por dois realizadores de renome. Se há um jogo que realça a barreira ténue entre um jogo e cinema será este Death Stranding, mantendo aquilo que Kojima tem feito em anteriores jogos.

A Death Strading, ou a corrente da morte, é vista como algo que tem vindo a ceifar a humanidade, mas os jogadores mais atentos vão observar que o chão pisado pelo manto negro torna-se fértil e nascem plantas e que elas morrem de imediato. São questões correntes que o jogo irá explicar, mas que nos coloca em constante pensamento filosófico.

Num mundo onde a presença nas redes sociais tem uma grande relevância na vida das pessoas, e onde aquele like, daquela pessoa, é uma espécie de troféu da sociedade, o jogo brinca com isso, transformando os likes numa mecânica de evolução da personagem. Quantos mais likes, mais atributos a personagem vai ter. E o jogo até introduz um som característico do like que vai ficar na memória dos que jogaram!

De forma geral, Death Stranding é tecnicamente irrepreensível, com uma história complexa que vai ficar ao escrutínio de cada um. Mas como mensagem social, os temas abordados, as tais paredes invisíveis que as pessoas criaram atrás das redes sociais, tudo isso é abordado nesta obra, muito difícil de digerir. Para aqueles que estão à espera de mais um jogo de ação com elementos furtivos vão ficar desiludidos, pois o jogo repete-se em loop na entrega das encomendas. A vertente multijogador social é provavelmente o melhor aspeto deste título, que certamente será inspirador para o que for feito no futuro.