Era uma vez um miúdo chamado Cobalt, nascido em Castelia City. Um dia o seu Tio, Steven Stone, traz-lhe um ovo de Aron. Passado uns tempos um maremoto arranca a cidade à sua plataforma continental e nos dois anos seguintes esta afunda, à deriva pelo oceano. Mas não sem antes Steven ter liderado uma equipa para criar uma redoma à volta do outrora centro tecnológico de Unova.

Nada do que leram vos será familiar. Foi algo que comecei a escrever em 2017, sem título, mas pretendia ser o alicerce de um mundo em torno de Pokémon a fim de criar o meu próprio jogo. O que eu queria era um jogo em que a narrativa fosse algo de épico, nunca antes visto na série…

Ah é verdade: Pokémon Sword e Shield chegaram por estes dias às prateleiras. Mas este artigo não é sobre isso.

Pokémon Brown, o primeiro ‘hack rom’ a atingir grande notoriedade na Internet.

Este artigo quer-vos é convencer porque é que o ser humano devia deixar a Terra. Ou porque é que dois dos três dragões de Daenerys Targaryen eram mais pequenos que o irmão. Ou ainda porque razão se compra roupa nova às crianças.

Já ouviram falar de Pokémon Brown? Ou Pokémon Prism? Pokémon Light Platinum? Pokémon Glazed? Pokémon Uranium? Pode ser que não tenham ouvido – há um bom motivo para isso. São jogos fan made. Ou Hack ROMs, como lhes vamos chamar neste texto.

Estávamos ainda a ressacar do golo do Charisteas na final do Euro 2004 quando alguém que dá pelo nome de utilizador Koolboyman lançou Pokémon Brown. Era o Pokémon Vermelho, mas com uma história e mapas totalmente novos. Foi a era dourada da emulação e daí surgiram alguns dos títulos mais célebres deste canto da Internet – Light Platinum, Glazed, Flora Sky. O método mais popular é pegar numa ROM de um jogo existente – coisa ilegal, entenda-se – e daí dar aso à imaginação.

Pokémon Reborn, baseado no RPG Maker com inspirações pós-apocalípticas. Há inclusive cenas de violência para com os Pokémons.

Ao nível técnico, o paradigma actual de edição completa (mapas, história, personagens, lista de Pokémon, etc.) está nos títulos de GameBoy Advance, que se cifram em algumas centenas. A partir da Nintendo DS há alguns projectos ambiciosos, mas pela dificuldade acrescida apresentam normalmente aumentos de dificuldade, diferentes Pokémon ou algumas edições de texto. Existem ainda jogos feitos de raiz através do RPG Maker, dos quais o que atingiu mais notoriedade foi Pokémon Uranium.

Tanto me perguntava porquê que decidi experimentar. Claro que não passei de escrever 1/10 de uma epopeia pokemaníaca, quanto mais criar o jogo. A conclusão a que chego é que certos media atingem níveis tais de popularidade que motivam projectos de fãs centrados num universo ou enquadramento semelhante. Na escrita é muito comum e chamamos-lhe fan fictionHarry Potter, Naruto ou Twilight costumam ser escolhas populares. Tantas ideias existem, que o José Machado dos Santos até já nos levou a descobrir um interessante grupo no Reddit.

Já as várias motivações que encontro convergem num sentimento em que as pessoas procuram criar uma experiência Pokémon que ainda não foi explorada em títulos oficiais. Há jogos que criam experiências semelhantes à linha principal com uma história diferente, passando pelos que recriam momentos do anime até aos títulos mais violentos e até pós-apocalípticos. E claro, a lenda do Pokémon Negro, um dos meus preferidos.

O alegado cartucho ‘bootleg‘ do Pokémon Negro, sobre o qual reza a lenda que se disserem o seu nome três vezes em frente a um GameBoy, ele aparece…

Aumentos de dificuldade são outro dos motivos mais citados. Aquilo que Pokémon Amarelo era a partir do quinto ginásio comparativamente à Versão Vermelha, lembram-se? Criar mais facilmente Pokémon competitivos, ou mesmo fakemons, é outro. Ou quando nostalgicamente nos lembramos de uma era com menos Internet em que ficámos de boca aberta ao descobrir uma segunda região à nossa espera depois de concluída a primeira em Pokémon Gold e Silver e só conseguimos pensar “e se houvesse um jogo com TODAS as regiões“?

No final do dia, Hack ROMs podem até ser uma forma de preservar jogos antigos para a posteridade, tornando-os 100% digitais e open sourced. Há até largas centenas de jogos fan made da franquia e até já existem ferramentas para que um leigo informático com imaginação os possa fazer sem grande dificuldade. E é também por isso que acima vos escrevi sobre a migração da Humanidade para outro planeta ou sobre roupa para miúdos.

O que penso é que os jogos de Pokémon já cresceram muito para lá de si próprios.

Pokémon Uranium, feito por uma americana e um brasileiro no RPG Maker. Tem ‘fakemons’

Se forem à procura entre os títulos mais populares da Nintendo, nenhum outro se aproxima do fenómeno. Zelda? Umas dezenas. Mario? Pouco mais e Super Mario Maker resolve grande parte do problema. É inegável que Pokémon nos trouxe alguns jogos fantásticos ao longo dos anos, mas experiências de ficar de boca aberta à la Breath of the Wild, Grand Theft Auto ou Mass Effect? Esta comunidade prova que os fãs querem muito mais.

Claro que ninguém espera que a Nintendo crie um Pokémon em que as criaturas morrem mesmo, ou encha de violência ou linguagem madura (*bate na madeira*). Certas coisas ficarão sempre no prisma da imaginação. O que para mim é óbvio é que há demasiadas hipóteses com demasiado potencial que foram demasiado ignoradas até aqui. Ao ritmo actual de diversidade entre títulos, arriscamo-nos a olhar daqui a 50 anos para X/Y, Sun/Moon ou Black/White como já olhamos para Mozart, Bethoven ou Bach.

Ah, é tudo música clássica“.