O malogrado artista plástico Keith Haring deixou-nos há trinta anos, mas o seu legado visual permanece até hoje. Inspirado pela intervenção urbana e a pop art de nomes importantes da segunda metade do Séc. XX como Warhol e Basquiat, seria ele mesmo, com as suas figuras estilizadas e amplamente políticas e sexualizadas, a definir uma linguagem de intervenção na Nova Iorque dos anos 1980.
The Pedestrian é, dentro da sua própria idiossincrasia, um filho conceptual da intervenção de Hering, de forma consciente ou inconsciente.
Vender a ideia de The Pedestrian num elevator pitch (que até pode ser passado dentro de uma das cenas do jogo) é simples: conduzimos o ou a titular pedestre através de uma jornada bidimensional por placas de trânsito, informativas, ecrãs de cristal líquido, entre muitas outras superfícies.
Esta aventura pelas placas e avisos que circundam o nosso dia-a-dia acontecem em primeiro plano, com a cidade como pano de fundo, desconhecendo o que se vai passando nas reclusas sinaléticas um pouco por cada parede, ou poste.
É irónico que um dos jogos cujo centro é mais simples, e desenvolvido com elementos infográficos hiper-simples próprio da sinalética, acabe por ser um dos mais maravilhosos exemplos de uma direcção artística cuidada, com uma abrangência quasi-realista.
É talvez no contexto e enquadramento entre aquilo que é cada puzzle bidimensional inserido no ambiente que o rodeia que existe um dos pontos de genialidade de um jogo que é todo ele uma obra de génio. É neste realismo circunstancial que a nossa suspensão da descrença das desventuras do nosso protagonista-símbolo ganham veracidade.
Os puzzles em si mesmo são obras de puro génio, desenvolvidos com uma simplicidade e depuração invejáveis. The Pedestrian é em si mesmo um puzzle platformer com um grande twist: temos de organizar as diversas placas de cada quebra-cabeças, ligando-as através das portas e escadas (que passam a ser contacto entre elas). Mas temos de “ver” o percurso todo antes de movermos o nosso protagonista, já que qualquer alteração à disposição/ligação das placas faz reset a todo o puzzle.
De uma ideia simples, o estúdio Skookum Arts rapidamente nos vai enchendo de adições mecânicas, quer sejam aquelas que ficam unicamente dentro do espaço das placas bidimensionais, como carregar e empurrar caixas, apanhar chaves, activar interruptores, até àquelas que envolvem uma interligação com o mundo real, como conectar fios eléctricos entre placas ou usá-las como fichas em tomadas, ou interagir com controladores de portas e botões de elevadores. Tudo isto para conduzir o nosso protagonista na sua peregrinação pela cidade, num enredo subtil contado em sub-texto pelos próprios puzzles.
O posicionamento das placas importam para a interacção entre elas. Para que uma escada entre duas placas funcione, a parte de cima tem de estar obrigatoriamente sobre a placa que contém a parte de baixo. Para que duas portas se liguem, elas têm que estar conectadas fazendo sentido, ou seja, uma porta posicionada numa aresta direita tem que estar “de frente” para outra placa que tenha uma porta na aresta esquerda.
As imposições mecânicas são físicas, lógicas, e demonstram a miríade de pequenos grandes detalhes de um jogo que parece ser desprovido de qualquer falha. Ideias e minúcias difíceis de explicar mas que são instantaneamente apreendidas quando temos o rato ou o comando na mão.
Janeiro de 2020 fecha já portas com um dos melhores e mais criativos puzzle games que já jogámos. Coeso, inventivo, brilhante nos seus desafios e enquadramento, The Pedestrian é mais do que um mero gimmick com sinalética: é o Portal desta década. Em ano de lançamento de novas consolas e com muitos bons jogos na calha, poucas razões manterão The Pedestrian afastado do meu top de melhores jogos do ano, e possivelmente de muitas listas de encerramento de 2020. E com todo o mérito, admita-se.