Há tantos anos que defendemos um dos pontos mais altos que os videojgoos – enquanto manifestação cultural – têm: a capacidade de escapismo quase incomparável com qualquer outro medium. Muito debate discorreria desta minha afirmação, com a literatura, a música, o cinema, o teatro e todas as outras a afirmarem as suas capacidades de escapismo. E são bem verdade. Mas dentro dos dias tempestuosos de uma pandemia, há uma pequena fogueira de calor virtual que todos ansiavam.
Animal Crossing: New Horizons é o jogo que todos precisamos. Uma fuga mental e emocional para um mundo onde tudo é calmaria, onde cada segundo é lentamente saboreado ao nosso ritmo, sem pressas, como se o mundo lá (cá fora) não existisse. Mas ele existe. E é assustador. Perdoem-nos o refúgio constante numa ilha onde os vizinhos sorriem e ficam felizes de se verem, onde passeamos para colher flores e ver o azul do mar. Perdoem-nos que essas viagens virtuais esgotem a bateria da consola por terem passado algumas horas que cheiraram a menos do que isso, num local onde a mente se esconde para fingir que a realidade não existe.
(bem tinhas razão, Céline.
Loin, loin, c’était certain
Comme une immense faim, un animal instinct
Oh partir, partir et filer plus loin
Tout laisser, quitter tout, rejoindre un destin (…))
Antes do meu auto-isolamento na semana passada, já contava com pelo menos duas dezenas de horas de Animal Crossing: New Horizons. Apesar de ter depenicado do prato adocicado da série noutras gerações, o meu verdadeiro mergulho num Animal Crossing foi com este título. Sinto-me, em todos os aspectos, a experimentar algo pela primeira vez.
Começamos numa ilha remota, com flora própria, e com a missão de nos aventurarmos a apanhar madeira, flores, fruta e pescar. O que fazemos é decisão nossa. Quando o fazemos também. O elenco de personagens bem conhecidos da série vão aos poucos chegando à nossa ilha e mostrando-nos que o controlo quase total do seu desenvolvimento é nosso.
Seja escolher os lotes de construção dos edifícios, contribuir com os materiais e o dinheiro (bells) para o seu desenvolvimento, nesta comuna semi-anárquica que é a nossa ilha (a minha apelidada de Rubberinia por razões óbvias) é um local onde as pessoas vivem felizes. Mas acima de tudo vivem. Despreocupadas, com os olhos postos no horizonte. Sem prazos, sem pressões, sem tensões. Em Animal Crossing a vida está sorridentemente suspensa. No nosso mundo dos dias de hoje a suspensão está no outro ponto: ensombrada pelo medo e pelo desconhecido.
Cada upgrade à nossa casa é acompanhada de um empréstimo bancário que, literalmente, pagamos quando quisermos e pudermos. Animal Crossing é a apologia do anarco-sindicalismo simpático e inverosímil, onde o poder é equitativamente distribuído. Ou é inexistente.
A velocidade com que a nossa ilha se desenvolve depende do tempo e do investimento que lhe imprimimos. Comparando com outras pessoas que tinham tido acesso antecipado ao jogo para análise, percebi que as duas dezenas de horas dedicadas nos primeiros quatro dias tinham-me conduzido a ter desbloqueado mais do que o jogo tinha para oferecer.
Mas Animal Crossing tem esta democraticidade: podemos jogar por breves instantes ou perdermo-nos uma tarde inteira. Os objectivos são a longo prazo, num life simulator interligado com o calendário real, onde as construções demoram dias (verdadeiros) a serem terminadas e onde cada novo dia pode trazer surpresas: novos habitantes, novos personagens, novos estados do tempo.
Para um coleccionista este jogo é uma empreitada de anos. Com dezenas (centenas?) de insectos e aracnídeos, peixes e fósseis para encontrar e doar ao museu, para além de uma lista quase infinita de roupas, acessórios, mobílias e receitas DIY para encontrarmos, comprarmos ou construirmos. E os muitos achievements que nos dão Nook Miles, alguns demorados, outros diários e curtos, sempre a impelirem-nos a fazer coisas diferentes.
Animal Crossing: New Horizons não é, garantidamente, um jogo para todos. Nem é isento de erros, apesar de ser verdadeiramente brilhante, especialmente porque toda a vibrância e simpatia deste mundo e dos seus personagens ganhar um novo corpo em alta resolução.
O primeiro dos problemas deste New Horizons prende-se com a sua câmara e o seu pouco controlo neste mundo esférico em que a curva é acentuada. Já muitas vezes deixei peixes escaparem porque a câmara não me permitia ver o local onde o meu isco estava, já que no mundo aberto podemos apenas subir ou descer ligeiramente o ponto de vista. Se tivermos uma árvore ou casa à frente, dificilmente vemos o que está atrás.
O outro problema, e compreendo que é uma decisão mecânica do jogo, é o quão facilmente as ferramentas se partem. Acredito já estar a contar com umas 35 horas de jogo, e continuo a ter disponíveis para utilizar apenas utensílios que duram poucas utilizações antes de se quebrarem, obrigando-nos a ter de ir apanhar materiais para construir novos.
Como a maioria das componentes online só ficaram disponíveis hoje, decidi esperar para poder experimentá-las. Animal Crossing coloca na nossa ilha um número limitado de recursos: frutas e flores, e impele-nos a viajar a ilhas vizinhas para obtermos o que não temos. Ao longo destas semanas tínhamos apenas a possibilidade de viajar para ilhas aleatórias, que podiam ou não ter recursos que nos faltavam, e onde podíamos conhecer outros animais e convidá-los para virem viver para a nossa ilha.
Mas hoje, poucas horas antes de me sentar a escrever este artigo, fui visitado pelo meu amigo André Henriques, ao qual dei cerejas para ele plantar, de bom grado, e aproveitei para visitar a sua ilha, e colher umas laranjas que me faltavam. O sistema online abre as portas de Animal Crossing para outro patamar, com mecânicas de segurança que permitem apenas a quem indicamos como melhores amigos a possibilidade de alterarem e levarem consigo algo da nossa ilha.
Animal Crossing: New Horizons era, para mim, um jogo obrigatório para relaxar, para o ambiente familiar, muito antes do nosso mundo caótico ter-se tornado silencioso por uma vaga pandémica que nos deixou sem chão. Mas na situação em que vivemos, Animal Crossing: New Horizons pode ser para muita gente aquilo que tem sido para mim: um refúgio mental, uma abstracção emocional num mundo onde o medo, a doença, o contágio e a morte não existem. Apenas a vivência pacífica e descomprometida dos dias a passarem.