O horror e o sobrenatural são vertentes que sempre nos fascinaram. Desde tempos idos que estas realidades têm sido exploradas com diferentes propósitos em várias formas de arte, da pintura ao conto, passando pelo cinema e agora com um novo reflexo nos jogos.
Call of Cthulhu, Until Dawn, Resident Evil, Silent Hill e Bloodborne são alguns títulos sonantes no domínio dos videojogos. Dread, Alien, Vampire: The Masquerade, Kult: Divinity Lost e Cthulhu Dark são as respectivas referências no domínio dos jogos narrativos. A estes, junta-se agora Perdidos.
Perdidos é um jogo narrativo Powered by The Apocalypse da autoria de Marcelo Paschoalin com forte inspiração em Bloodborne e Dark Souls. Aqui, os jogadores vestem a pele de um perdido, uma pessoa num limbo, com apenas restos de memórias da sua vida passada e com um forte elo de ligação a Valum, a sombria cidade que as alberga.
Face ao sistema que suporta a premissa (bastante familiar aos fãs de Apocalyse World), todo o jogo tem um grande foco na narração e na imersão. Os célebres moves (movimentos) são claros no seu propósito, na sua descrição e execução, sendo usados para avançar com a acção, resolver problemas e despoletar conflitos. Contudo, está mais que assente no texto de jogo que o objectivo do mesmo não é matar e pilhar. Valum é um mundo perigoso que não pode ser subestimado, punindo severamente quem o ousar fazer.
Há toda uma série de arquétipos, com características (e moves) distintas, à escolha no processo da criação de personagem. Aqui, definem-se também os resquícios de memória já referidos e outros elos de ligação com o mundo, dando-lhe vida, sentido e valor. Com o avançar das sessões de jogo, o peso acabará por sobrecarregar a personagem, deteriorando-a e consumindo-a, podendo muito bem quebrar qualquer ligação, qualquer sentido, com a sua vida passada. Perante isto, perante a incapacidade de lidar com a faceta desta realidade, pior que a própria morte somente tornar-se numa criatura perdida e selvagem. Uma nova adição aos perigos de Valum para novos visitantes.
Valum é inóspito, e belo à sua própria maneira, tudo qualidades que o Mestre de Jogo pode explorar. Independentemente da sua experiência, Perdidos tem as ferramentas necessárias para auxiliar na criação do ambiente necessário. Desde de tabelas para criação de perigos, de descrição de ambientes e de memórias, passando por parágrafos descritivos, não é difícil ter um mapa de jogo e uma série de sessões preparadas com o simples rolar de dados.
Ainda assim, existe uma consciencialização para os horrores que vão ser apresentados aos jogadores. Como é de um jogo que se trata e, consequentemente, de um escape que todos procuram para se divertirem em conjunto, é importante garantir que nada de desconfortável ou de incomodativo será apresentado. Para isto, dá-se ênfase à chamada sessão 0, onde se discutem as expectativas e os temas que podem ou não ser abordados. Inclusive são dadas sugestões e ferramentas para superar um momento constrangedor sem comprometer a integridade do grupo de jogadores nem da narrativa.
Não é difícil, de todo, olhar para as descrições de Perdidos e imaginar as ruas decrépitas de Yarnham, a Capela de Oedon e o Castelo de Cainhurst (a fantástica arte que decora as páginas do livro dá um excelente contributo). Aos caçadores que aqui saciaram a sua sede por presas, há um novo desafio no horizonte. Tão ou mais perigoso.
Um caçador deve sempre caçar, e há valor na caça, ao ponto mesmo de restar somente ela. Os que se acham capazes, que peguem então nas ferramentas da sua arte, e explorem uma nova realidade.
Lembrem-se apenas que podem reencontrar o que perderam, mas nunca o que abandonaram.