Há anos que me referia à quasi-eterna promessa de um remake de Final Fantasy VII como uma espécie de “botão de pânico” da Square Enix, e por extensão, da Sony. A influência deste jogo da então Square, dirigido por Yoshinori Kitase no mercado é mais do que apenas História, mas uma realidade que muitos de nós vivemos, e ainda hoje lembramos de forma marcante.

Com um investimento de algumas dezenas de milhões – algo inédito até então num RPG – e depois de um volte-face da Square de virar costas a uma relação de tantos anos com a Nintendo (a que se seguiria a Enix com Dragon Quest), levando a um abraço à Sony que viria definitivamente a ser o ponto de charneira nessa batalha fratricida da geração de consolas.

Final Fantasy VII foi um risco tremendo. A opção dos seus autores de abraçarem uma experiência narrativa ainda mais complexa, com uma abordagem próxima do cinema, com FMVs que representaram pequenas fortunas a serem desenvolvidas, para além de ser a primeira verdadeira aventura da série fora da bidimensionalidade que a marcou. A priori, todos os ingredientes de Final Fantasy VII eram de um risco tremendo, coadunado com a própria aposta dos seus administradores em abraçarem um novo player como a Sony PlayStation em detrimento da gigante Nintendo.

Este foi um risco que como sabemos, compensou. Mas não apenas para a então Square e a sua subsidiária Squaresoft, cujo investimento colossal poderia significar um buraco de onde não conseguiriam recuperar, mas para a própria Sony PlayStation, ao receber na sua plataforma aquela que é a maior killer app da geração. 

Muitos analistas indicam o lançamento de Final Fantasy VII como o maior boost de vendas da PlayStation, o que justifica as dezenas de milhões em marketing que a Sony investiu para promover o jogo.

Para todos nós, consumidores, aquele era um ponto de mudança. O mundo era deslumbrante, e era-o pela extrema inteligência técnico-artística de como aproveitar as potencialidades da consola. A direcção artística, com os personagens disformes poligonais a lembrarem-nos de alguma forma o traço de E. C. Segar e os demais artistas que trabalharam Popeye desde 1929 era a visão dos seus autores para uma empreitada tão arriscada. Uma direcção artística distinta que se mesclava na perfeição com os cenários, e com uma visão cinematógrafa dos pontos-de-vista fixos da nossa deambulação pelos muitos mapas.

O que me aconteceu deve ter tido um espelho por milhões de pessoas pelo mundo todo, que descobriram ali os JRPGs, e potencialmente os próprios RPGs. Volvidos 23 anos e ainda existirão casos anedóticos de jogadores que têm gostos de consumo diametralmente opostos ao ritmo compassado de um JRPG mas que abrem excepções única e exclusivamente para Final Fantasy.

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Final Fantasy VII ensinou-me a amar JRPGs. Ensinou-me a olhar para os videojogos como uma fonte dinâmica e profunda de emoção. Se as aventuras-gráficas me tinham ensinado um par de anos antes que a qualidade das narrativas dos videojogos estavam a par dos livros e dos filmes que consumíamos lá em casa, foi mesmo o Final Fantasy VII o primeiro a mostrar-me que é possível um videojogo penetrar na nossa alma e fazer-nos chorar.

Há uma certa validação histórica de vermos um jogo que poderia ter sido um ribombante canto-do-cisne mas que foi uma flamejante fénix rejuvenescida. Um jogo que poderia ser a derrocada de uma empresa e de centenas de trabalhadores, mas que acabou por lhe dar um tremendo crescimento e de cimentar a história e o sucesso da PlayStation como a conhecemos hoje.

Já por diversas vezes vimos a promessa de um remake de Final Fantasy VII, um anúncio que achávamos que nunca viria a ser materializado na realidade, como uma espécie de Atlântida que ficaria circunscrita ao campo das possibilidades, e não da existência palpável. Perceber que o remake chegaria, finalmente, apesar de forma parcelar, foi uma verdadeira surpresa.

Final Fantasy VII Remake é deslumbrante. É ao mesmo tempo a revisita de um local que nos marcou e algo mais. Desde os primeiros segundos de cinema, desculpem, de introdução do jogo que ficamos com essa sensação. Ao mesmo tempo um mundo e um elenco que reconhecemos mas uma materialização hiper-realista do nosso imaginário. 

A sensação é estranha, mas passa rápido, entre deslumbramento e nostalgia. As figuras estilizadas que conhecemos agora são quase palpáveis, realistas, fruto de mais de vinte anos de avanço tecnológico que tornam visível aquilo que muitos imaginávamos.

Porque convenhamos: existe um espaço em que a nossa mente e a nossa memória constroem uma realidade diferente. Se pensarmos nos jogos tridimensionais de meados da década de 1990, é fácil que a nossa mente os imagine bem mais detalhados e “actuais” do que são. Final Fantasy VII Remake é esse exercício, mas disponibilizado para todos e adquirível.

Sabíamos de antemão que existiam diferenças, não meramente estéticas. A primeira é que sabíamos que dada a empreitada e a vontade de equipa de desenvolvimento de repensar este jogo incluindo o alargamento do universo posterior a 1997, que inclui spin offs e animações, iria obrigar a um lançamento parcelar do jogo. 

Os mais cínicos – um grupo no qual eu na grande maioria das vezes me insiro – sentia que esta decisão era meramente económica. Um remake do Final Fantasy VII vai à partida gerar muito dinheiro. Um remake do Final Fantasy VII dividido às partes e cada uma delas a custar o jogo de uma full-release vai gerar muito mais. 

Mas depois de mergulhar 15 horas no jogo, de saber de antemão onde os autores decidiram terminar esta primeira parte, é reconhecível que teve sucesso o exercício criativo de transformar um corte do jogo de 1997 e multiplicar várias vezes o seu conteúdo de forma orgânico.

As diferenças mecânicas também já eram reconhecidas. O JRPG por turnos clássico deu lugar a um sistema híbrido que a Square Enix experimentou na última iteração da série. Um sistema em tempo real em que temos também uma barra de pontos de acção, que se vai enchendo de forma passiva mas que pode acelerar quanto mais vezes atacamos. 

É com este sistema de pontos de acção que podemos “agir” com os personagens que temos no nosso controlo (ou os restantes da party), fazendo-os lançarem magias, habilidades, utilizarem itens ou os memoráveis Limit Breaks. Esta gestão das acções da nossa party podem ser activadas sem trocarmos de personagem, desacelerando o tempo quando carregamos nos botões de atalho do menu.

O desafio que o sistema de combate traz tem-me garantido (e ao meu filho, com quem tenho estado a passar este FF VII Remake) alguns combates duros-de-roer que nos têm conduzido às conhecidas TPKs. Ironicamente, são alguns dos combates com não-bosses que nos têm dado dores-de-cabeça. E com a ausência de random encounters e o (muitas vezes) abençoado grind, temos mesmo de contar com um conhecimento aprofundado dos nossos inimigos, e aproveitar os seus sistemas de fraqueza para podermos deixá-los staggered e termos bonificação ao dano infligido. Mas ainda assim, comparando os dois, há algo de simples e de brilhante no sistema de combate original que parece perder-se nesta tradução, vinte anos depois.

Dada a extensão de conteúdo de Final Fantasy VII Remake, os personagens que tão bem conhecemos estão de regresso com todos os seus maneirismos, mas ao mesmo tempo sentimos que o tempo que só esta primeira parte tem permitiu uma evolução ainda maior deles. É como adorar um filme de culto e de repente ele ser reinterpretado numa série, bem-escrita, fazendo jus ao universo original. Pensem na genial série Hannibal, que está para o universo com o mesmo nível de qualidade e de extensão do material original que este Remake para com o jogo original.

Foram perto de vinte anos de promessas de podermos ver um dos jogos mais importantes e marcantes da História a ser reimaginado, e ele chega, num dos períodos mais negros da Humanidade, que todos estamos infelizmente a viver. Admito que esse estado de espírito para abrir os braços a algo que esperámos tanto para ver acaba por ter um sabor agridoce. No meu caso é esse conflito de emoções, entre a falta de disponibilidade mental, mas também logística, estando em tele-trabalho com toda a família em casa (felizmente, em segurança) que não existe o tempo nem a vontade de encerrar-me em Midgar e sair de lá apenas quando o conteúdo desta primeira parte tiver terminado. 

Sei, ou calculo, que estou a meio de uma experiência ansiada que pensava eu ia ser tragada de sofreguidão, não fossem as circunstâncias de hoje inimagináveis por qualquer um de nós. Tem um lado bom, porém. Num ano atípico, assustador, poder ter na minha posse uma experiência com este patamar de qualidade, à velocidade que o estou a consumir, é como um bom Porto, reserva, que se vai saboreando com todo o tempo do mundo. 

O tempo, esse que é o grande juiz de tudo e de todos, acaba por confirmar aquilo que todos sabíamos: que aquele mundo criado em exclusivo para a PS1 é uma peça de arte da Humanidade. O que faz deste Final Fantasy VII Remake um elemento obrigatório para todos os possuidores da PS4. E que deve ser saboreado ou devorado. Quem somos nós para dizer como devem aproveitar a vida, em qualquer altura, especialmente numa fase em que ela parece suspensa, lá fora, nas incertezas de uma pandemia.