Segundo o achievement em progressão, já lá vão 75 dias de jogo ininterrupto de Animal Crossing: New Horizons. Não sei se vou desenvolver um reflexo pavloviano com este jogo, que é possivelmente um dos meus jogos do ano, e interligá-lo para sempre na minha memória como sinónimo do que passei (e estou a passar na pandemia). Até pode ser que esta ligação mnemónica venha a ser injusta para com um jogo que tanto apoio emocional me deu num período mentalmente tão difícil, mas a psique tem destas coisas.

E com 150 horas de jogo de Animal Crossing: New Horizons comecei a dar atenção ao que está por trás do cortinado e a ver, qual Stepford Wives, que uma ilha cheia de felicidade e alegria está na realidade cheia de momentos politicamente questionáveis. Este é um artigo de humor, obviamente, e nem acredito que o tenho de avisar previamente. Mas estamos em 2020, no meio de uma pandemia, e a internet é um sítio perigoso. Até o outro diz que o seu aconselhamento de beber lixívia era sarcasmo, portanto…

Quanto à sacanice de Animal Crossing… só não vê quem não quer.

O Tom Nook é um agiota

Esta é mais do que óbvia. O Tom Nook está para o Animal Crossing como um dealer estava para o Casal Ventoso: a primeira é de borla, e a partir daí a ideia é agarrar-te de maneira a que fiques preso a ele para sempre.

Para quem não jogou Animal Crossing, a explicação é simples: Tom Nook, o tanuki que nos recebe em todos os jogos, permite-nos montar arraiais de borla na ilha. Mas sempre que queremos melhorar a nossa casa ele prontifica-se a fazê-lo, e espeta-nos logo com uma dívida em cima. O pior, e que não faz sentido, é que a cada nova melhoria o preço aumenta. Quem é que está a fazer estas renovações, o Gustavo Santos? Estamos a pagar um imposto exponencial de life coaching da treta a cada novo upgrade?

É que este exponencial não faz sentido. Imaginem que compram uma casa e ela custa x. Se adicionar um quarto apenas significar x vezes 2 significa que alguém anda a fazer especulação imobiliária e a meter muito dinheiro ao bolso. O que em Animal Crossing não é difícil, já que Tom Nook é simultaneamente constructor e autarca. E achavam vocês que o Avelino, o Isaltino e a Fátima é que estavam mal.

E até podem dizer: mas ele não cobra juros e deixa-te pagar quando quiseres. Mas isto é errado. O exponencial do valor que ficamos a dever já tem juros de mora incluídos. E só não o podemos provar porque não há factura de nada disto.

O Timmy, o Tommy e a Mabel são xenófobos

Não sei quem são vocês que me lêem, mas preciso de vos dar algum contexto: nasci nos 1980s e até há 10 anos vivi nos Olivais, um dos bairros mais pobres de Lisboa, com mais tensões sociais e problemas de toxicodependência até à viragem do milénio. Vi e sofri os meandros da criminalidade, e sabia bem o que era ir com amigos a lojas dos centros comerciais e ter os lojistas a seguirem-nos com medo que fossemos roubar.

Vinte e tal anos depois de viver isso no mundo real, tenho de aturar algo semelhante no Animal Crossing? É que o Timmy, o Tommy e a Mabel, nas suas respectivas lojas comportam-se da mesma forma. E sabem porquê? Porque eu sou de uma espécie diferente deles. 

Não preciso de os ter como amigos nas redes para perceber que eles apoiam o Chega, basta perceber o nível de preconceito que têm com o único habitante humano que existe na ilha. Já por diversas vezes entrei nas lojas, e já lá estavam outros animais, descontraídos, sem estarem a ser seguidos pelos lojistas. Quando eu entrei, lá vieram eles seguir-me a cada passo.

Se isto não for xenofobia, não sei o que é. Só lhes falta porem um sapo à porta. Ou para me afugentarem, basta terem um labrego chegófilo a ler o CM à porta que eu dou logo meia volta e vou embora.

A ilha é uma prova que o comunismo não funciona

Moscow on November 7, 2017. Kirill KUDRYAVTSEV

Não basta atirar à direita, para captar mais inimigos há que fazer spread shot de piadas políticas. 

Sou um socialista democrático, e apesar de achar teoricamente tanto o comunismo como a anarquia umas brilhantes peças de desenho político, percebo que elas simplesmente não conseguiriam ser aplicadas. E a grande razão é que… somos humanos.

Animal Crossing, como um todo, é uma prova em subtexto de que o comunismo não funciona quando aplicado mesmo em micro-comunas. Vejam na nossa ilha, que tem 17 habitantes fixos. Todos vivemos e coabitamos o mesmo espaço, que é de todos, e onde todos somos iguais. Quando queremos fazer melhorias à ilha, como construir pontes e afins, somos informados de que todos vão poder contribuir para acabar de a financiar, mas que grande parte do peso de investimento tem que ser nosso que dos milhares de Bells necessários, os nossos vizinhos vão contribuir apenas com alguns cêntimos.

Então mas expliquem-me lá, se estamos todos a contribuir para melhorar o espaço que é de todos, porque é que eu tenho de contribuir com a quase totalidade do dinheiro, ganho com o meu trabalho, enquanto os outros andam, como o Menino Jesus naquele sketch, ou nas palhas estendidos ou nas palhas deitados?

O Redd é uma piada racista para os trumpistas

Esta é mais uma daquelas que um chegófilo até se espuma da boca a reconhecer. O Redd foi introduzido recentemente na ilha, e é sobretudo uma prova do que muita gente nos anda a dizer com os seus preconceitos: se vem da Ásia ou não é de confiança ou é falsificado.

Não basta a própria Isabelle avisar na manhã em que ele está que anda um tipo shady na ilha, como vemos que aquela raposa com olhos asiáticos acaba por ser um falsificador de obras de arte.

Há milhões de norte-americanos com bonés MAGA que devem achar que este personagem de Animal Crossing é mais realista de todos…

A Isabelle é anti-ecologista

Já vos disse ali atrás que sou dos Olivais, não já? Pois bem, o bairro tem uma particularidade interessante do ponto de vista de planeamento urbanístico e da História da Arquitectura portuguesa: sendo uma das zonas construídas de base durante o século passado na extensão da capital, o pensamento que a rodeia é algo que deveria, no meu entender, nortear a construção em Portugal e no mundo. 

Apesar de ser um combatente ideológico de tudo o que está correlacionado com o Estado Novo, é fácil admitir que o investimento nas Obras Públicas, em especial em Lisboa, é um dos poucos pontos positivos que conseguimos retirar de um dos períodos mais retorcidos da nossa História. Até um relógio estragado, fascista e xenófobo está certo duas vezes por dia.

Ora bem, o planeamento urbanístico dos Olivais pensou a zona como um bairro-jardim, em que os prédios e as moradias não ocupavam uma área maior que os espaços verdes, criando uma das mais arborizadas de Lisboa, em toda a sua extensão. 

Mas para a Isabelle isso não quer dizer nada. Três semanas depois de ter começado a jogar,, preenchi a minha ilha de alto a baixo com árvores de fruto. Avaliação da Isabelle: “há demasiadas árvores, isto fica com um ar rural”. A sério Isabelle? Demasiadas árvores? Num momento em que estamos a tentar, não se sabe se de forma infrutífera, combater o aquecimento global, tu dizes-me que há demasiadas árvores? Que deveria abater mais árvores e distribuir decorações em todo o lado? Indignas-me, Isabelle. Deves ser assalariada das grandes corporações…

Jogar Animal Crossing é como ter um estágio curricular a vida toda

Não sei quanto a vocês, mas eu tenho o meu dia quase todo ocupado com 3 empregos remunerados, mais uns quantos trabalhos associativos e o Rubber Chicken. Para além de ser pai e marido, que é logo o emprego que me leva mais tempo, ainda recebi um novo, um estágio curricular em Animal Crossing, no qual me farto de trabalhar e não recebo nada. A perspectiva, dizem, é ganhar experiência profissional. Mas no outro dia tentei plantar qualquer coisa e percebi que afinal não há nada que eu tenha feito ali que consiga transpor para a realidade. E fiquei com um buraco na varanda. Que é de cimento, entenda-se. Mas retorno financeiro? Nicles. Experiência de vida? Muito menos.

Este jogo é uma prova do Síndrome de Estocolmo

Esta nem precisa de grandes explicações. O Rui Parreira dizia “mas este é um jogo em que não se faz nada” e está quase certo. Mas sabem quando sentimos o efeito do Síndrome de Estocolmo do Animal Crossing? Quando estamos há mês e meio a ter um hábito de jogar o jogo, fazer os achievements diários enquanto tomamos pequeno-almoço, num acto que só é ultrapassado em prioridade com fazer o xixi matinal e dar o pequeno-almoço aos filhos.

Obrigado, Animal Crossing. Não sei quando me vou conseguir emancipar de ti, minha coisa maravilhosa que tem tornado esta pandemia como algo mais tolerável.