Akira Kurosawa é um dos realizadores mais importantes da História do cinema. E o seu marco sólido que permanece até aos dias de hoje não é de todo difícil de explicar: basta analisarmos com os olhos da contemporaneidade muitas das redefinições estéticas que imprimiu aos seus filmes, para perceber que a sua quase totalidade permanece nos audiovisuais até hoje. Uma revolução artística que se sentia sobretudo no ritmo visual, na composição e nas cargas dramáticas que o equilíbrio em plano representam.

Descobri-o ainda na Faculdade, ao seguir o trilho cinematográfico e histórico de algumas obras emblemáticas que eram a referência para muitos dos realizadores dos anos 1970 e 1980 que admiro. Fui seguindo caminho até ao cinema de género, com 3 realizadores nossos contemporâneos que pareciam pegar na estética e ambientes de Kurosawa e emprestar-lhe potencialidades tecnológicas e cénicas contemporâneos, como Ang Lee, Zhang Yimou e Kim Jee-woon, e desde então essa ligação à originalidade do cinema asiático permaneceu sempre comigo. Em especial o grande precursor, Kurosawa, cuja sombra de influência se espraia bem para lá do cinema, até aos dias de hoje.

Não sinto admiração em perceber que os criativos e a cúpula da direcção do estúdio Sucker Punch Productions, de Washington, sintam essa influência esmagadora de Kurosawa, já que milhões de pessoas no mundo celebram ainda hoje as suas criações. Que lhe quisessem escrever uma carta de homenagem respeitosa e sentida sob o formato de Ghost of Tsushima, isso sim, foi uma surpresa.

Há pelo menos 10 anos que vejo pedidos online de público a implorar à Ubisoft para desenvolver um jogo de Assassin’s Creed passado no Japão feudal. Esta mística que colectivamente temos em torno do ambiente e da vida dos samurai e dos seus párias ronin é uma das heranças de Kurosawa, que não só definiu a linguagem como escancarou as portas do Japão ao interesse mundial em torno da sua História. E na prática era isso que tantos jogadores pediam à gigante europeia de videojogos: um Assassin’s Creed que trouxesse a sua abordagem pseudo-histórica para uma linguagem dos filmes de samurai de Kurosawa. Não sei quantos anos demorarão desde o soft reboot que a série levou para lá chegar, mas para muitos dos que imploraram por um Assassin’s Creed: Kurosawa, o jogo já existe. Só não foi desenvolvido pela Ubisoft.

Admito que até começar a jogar a Ghost of Tsushima tinha sérias dúvidas do tom que o jogo teria. Os trailers eram enigmáticos o suficiente para deixar um largo espectro de interpretações, e o historial da própria Sucker Punch indicava-me algo diametralmente oposto do resultado final. Não me compreendam mal: tenho andado a rejogar Sly Cooper (que é uma das três grandes séries de acção/plataformas nascidas na viragem do milénio) e Infamous continua a ter um lugar especial por ter feito o que outros títulos tentaram, mas falharam. Mas este historial fazia-me crer que Ghost of Tsushima teria uma abordagem over-the-top, de exageros e dinamismos clichés de acção. 

Como estava errado.

Ghost of Tsushima é precisamente o inverso, e foi nessa minha surpresa com o tom do jogo que recai o reconhecimento quase imediato de que o ritmo e a serenidade criativa de Kurosawa estão tão presentes. Ghost of Tsushima é um jogo pseudo-histórico, no sentido em que pega num evento histórico: a vontade expansionista do império mongol liderado por Kublai Khan, e a ofensiva na ilha de Tsushima. Mas fá-lo através de alterações à História, à criação de personagens de ambos os lados da ofensiva, no qual o nosso protagonista, Jin Sakai, é um dos exemplos.

Jin é o maior exemplo dessa realização contida que Ghost of Tsushima nos traz. Um personagem com uma linha de narrativa simples, um samurai herdeiro de um clã importante de Tsushima, e sobrinho do senhor feudal que governa a ilha em nome do shogun. Com uma educação rígida sob a égide dura da ética e da moral de um samurai, Jin acaba por ser o único sobrevivente de uma investida falhada dos samurai de Tsushima na primeira tentativa de repelir a invasão mongol. Uma chacina que aconteceu mesmo, e que provocou um avanço das tropas mongóis em direcção à ilha central, Honshu.

Jin reergue-se pelo meio dos mortos com um intuito simples: resgatar o seu tio, raptado pelo líder da invasão, o ficcional familiar de Kublai Khan que serve de antagonista a todo o jogo. Essa seriedade e auto-controlo do personagem principal colocam-no mais próximo de um protagonista de um filme de Kurosawa do que do que esperaria de um videojogo. E é nesse volte-face criativo, de Jin ser pouco opaco em relação ao ambiente em que se movimenta, que existe a sua diferença no mundo dos videojogos. Ele não é efusivamente carismático, nem sofre dos clichés quase obrigatórios dos videojogos. É muitas vezes bidimensional na sua aproximação a um realismo humano, com uma complexidade emocional que lhe é contida e amordaçada pela rigidez da educação e da época. É curioso que é nessa quase ausência de carisma que o considero ao mesmo tempo um dos mais carismáticos protagonistas de videojogos dos últimos anos: por não ter um único ingrediente dos caminhos pré-escritos da maioria dos personagens principais que vamos conhecendo.

Como linha narrativa, Ghost of Tsushima é simples: libertar a ilha do jugo mongol e repelir a invasão. Nesse trajecto vamos conhecendo alguns personagens que recrutamos para a nossa missão quase suicida, e são eles mesmos que vão abrindo linhas de enredo secundárias e opcionais que podemos explorar. São nessas linhas paralelas que conhecemos as multiplicidades pseudo-históricas das tensões políticas das diversas regiões da ilha, das suas gentes e dos clãs que a compõem. Mas depois de dezenas de horas de jogo sinto que, apesar da grande maioria destas linhas opcionais de história serem tão contidas e down to earth quanto a linha principal de história, que o seguimento dado a Lady Masako (uma óbvia inspiração em Hōjō Masako) é possivelmente uma das melhores storylines de todo o jogo. Com tantos consultores históricos, fiquei com a sensação que pequenos picos narrativos como os escritos (e magistralmente ilustrados) por Takehiko Inoue na sua série histórica Vagabond, poderiam ajudar a criar ainda mais momentos de história memoráveis.

Ghost of Tsushima é sobretudo um jogo de exploração, que tenta mudar ligeiramente a forma como mergulhamos num open world. Sendo também verdade que a dispersão quase obsessiva de coleccionáveis o tornam num dos jogos com mais busy work que o género pode oferecer, a realidade é que a Sucker Punch quis que recorrêssemos esses caminhos sem atalhos. Os jogos da série AC, como outros open worlds, têm usualmente pontos estratégicos que identificam pontos de interesse numa determinada região, depois de encontrados ou conquistados. Em Ghost of Tsushima isso não acontece, exceptuando uma ligeira identificação de pontos de interrogação num raio muito próximo dos aldeamentos que libertámos da conquista mongol. Encontrar todos estes pontos é feito através de os encontrarmos pelo mapa, ou de sermos lá levados através de rumores de NPCs ou, depois de evoluída a nossa tech tree, que os ventos nos indiquem o caminho, literalmente.

Sem mini-mapa no seu IU, admito que muitas vezes me senti perdido na navegação de Ghost of Tsushima. O gimmick de orientação implementado é interessante, no qual podemos tocar no touch pad do Dual Shock para fazer soprar o vento na direcção certa (e uma indicação de distância no canto superior esquerdo). Mas passadas muitas horas o imediatismo que queremos encontrar na nossa orientação colide com o gimmick do vento.

Visualmente este Ghost of Tsushima é possivelmente o canto do cisne desta geração de consolas, empurrando para bem longe o limiar tecnológico, e fazendo a minha consola esforçar-se ao máximo com a ventoinha a ser uma constante das minhas horas de jogo. Mas percebe-se porquê. Com uma investigação in loco tão grande pela parte dos criadores da Sucker Punch, a grande jóia da coroa deste título acabou por ser o desenho e criação do seu mundo, com a beleza natural do mundo e dos seus famosos 40 biomas distintos a criarem um dos títulos mais bonitos da geração. 

No entanto, esta diversidade natural não é acompanhada por uma distinção no que concerne a edifícios e povoações. Depois de percorrer as grandes cidades e as pequenas aldeias, apesar de ligeiras alterações, sente-se uma repetição clara dos seus assets. Algo que sentimos também com a falta de diversidade de fauna (que contrasta com uma flora tão vasta) e com a falta de diferenciação de figuras humanas, sejam eles inimigos ou NPCs.

Se afirmo que a recriação da beleza natural de Tsushima é o grande destaque deste jogo, diria que o combate, por sua vez, o equivale num empate técnico. Ghost of Tsushima permite-nos enveredar por várias abordagens em termos de acção: utilizando a furtividade e o assassinato, utilizando as muitas ferramentas (que admito que mal utilizei, por escolha) e abraçar a honra dos samurai, e enfrentar todos os inimigos olhos nos olhos, de espada na mão. Esta última foi a minha escolha, e é possivelmente a mais complicada, mas que cumpre com a educação do personagem, mantendo o código samurai. 

Até conseguir “entrar” no mindset de Ghost of Tsushima morri muitas vezes. E quando digo muitas vezes, digo mesmo muitas. Morria até para as patrulhas que surgiam proceduralmente geradas nas estradas de terra. Mas houve um momento em que percebi o ritmo do jogo, a dança do combate deste jogo, e sinto que ele é um dos mais diversificados e mais desafiantes que já tive acesso. A mudança ao segundo de posturas para aproveitar as fraquezas dos adversários tornam os combates em que estamos rodeados por muitos inimigos algo que nos coloca os nervos em franja, mas a sensação de recompensa do sucesso é tão satisfatória que sentimos como meritório o desafio quase fatal pelo qual passamos, pela espada do protagonista.

Mas a óbvia influência de Kurosawa, decalcada de fotogramas do grande mestre do cinema surge nos duelos, os momentos de esgrima pura em que temos de subjugar o nosso adversário com todo nosso domínio da katana. Os planos, sejam os introdutórios dos dois combatentes, do duelo, seja da própria acção em que a câmara se desloca para trás de Jin, são todos tirados de Akira Kurosawa, e ainda bem. Com as arenas de duelos embelezadas pelas folhagens esvoaçantes ou o embate das ondas, a cinematografia de Ghost of Tsushima é verdadeiramente brilhante.

Decidi jogar com voz em japonês e legendas em inglês, mas tive uma sensação de déja vu inversa da minha infância quando me fartei de ver filmes de acção asiáticos dobrados em inglês, no qual o sincronismo dos lábios, obviamente, falhava. Aqui aconteceu-me o mesmo, mas ao contrário: as vozes em japonês não correspondiam aos movimentos de lábios dos personagens, captados em inglês. Um sinal irónico dos tempos.

Ghost of Tsushima abraçou esse papel cinematográfico a fundo e trouxe-nos uma abordagem visual aos open world, com um discurso contido, a roçar a reinterpretação histórica, num tom terra-a-terra que encaixa na perfeição na serenidade que resvala a frieza que reconhecemos das interpretações asiáticas. Raramente consegue inovar no género, mas isso não representa qualquer problema. Tudo o que faz, fá-lo de forma magnífica, num jogo sólido, coeso, visualmente brilhante e com um combate difícil de mergulhar, mas que demonstra toda a sua vastidão à medida que o dominamos. Ghost of Tsushima é um jogo obrigatório pela carta apaixonada que é à influência do mestre Kurosawa (podemos até ligar o “filtro Kurosawa” para jogar a preto-e-branco com grão), daqueles que qualquer fã da sua filmografia ou que os apaixonados pelo Japão feudal, mas é sobretudo um excelente canto de cisne dos open worlds numa consola que foi palco para alguns dos momentos mais marcantes do género na última década.