Acabei o jogo há precisamente uma semana, pelo que julgo estar com o distanciamento emocional suficiente para poder escrever sobre ele de forma racional, sem que soe a um qualquer rant adolescente e imaturo, absolutamente impróprio para alguém da minha idade. Afinal, The Last of Us 2 e a minha “filha” merecem que eu seja a mais analítica e justa possível, até porque merecem todo o mérito de terem conseguido arrancar-me do estupor de imobilidade de escrita em que vivi nos últimos 2 anos.

Dividirei esta análise em 4 partes, pois não consigo mesmo, por mais que tente, resumir tudo o que quero dizer sobre este jogo. Falarei sobre Joel, Ellie, Abby e por último, a minha experiência enquanto jogadora. Escusado será dizer, mas deixo na mesma o alerta: SPOILERS!

Acho que todos concordamos se eu disser que vivemos momentos absolutamente ímpares na história da Humanidade, onde o desejo de polarização é tão grande que passamos a grande maioria do tempo a tentar descobrir o que nos afasta em vez de repararmos no óbvio que nos une. Um Mundo que acha que “Banir” é o mesmo que “Respeitar”, onde um ponto de vista diferente tem que ser meticulosamente explicado, sob pena de ser imediatamente radicalizado num dos extremos onde o mundo teima hoje em viver. Um Mundo de julgamentos morais absolutos, duas cores únicas, bipolaridade de pensamento e a necessidade tribal de pertença a um grupo, onde se demoniza o grupo oposto. Um Mundo que me deprime a cada dia que passa e onde faço o meu melhor para continuar a viver e a lutar pelo que acredito.

Sei que esta parece uma intro completamente desajustada e desnecessária, mas não é. Sinto que hoje em dia tudo necessita de um Disclaimer e é fundamental que entendam que tudo o que vou escrever abaixo não tem por base qualquer pensamento homofóbico (julgo que nunca tive um pensamento fóbico seja do que for na minha vida… bom, a não ser de aranhas), nem tem por base a minha dificuldade a lidar com a morte de personagens que amávamos, nem com os temas mais “negros” que o jogo teima em mostrar. Esta é a opinião de quem jogou, de quem Amou o primeiro jogo, e de quem se afeiçoou a “Ellie” projetando nela, a filha que nunca teve.

Não falarei de toda a vergonha que envolveu a produção e lançamento deste jogo, desde a suposta colaboração de Neil Druckman com Anita Sarkeesian, no despedimento/demissão de Amy Hennig, na possível “agenda” de Neil, nos constantes leaks de partes fundamentais do jogo, da manipulação clara de expectativas dos jogadores com imagens falsas nos trailers, nas declarações mentirosas de Neil Druckman ao garantir que Ellie seria a única personagem jogável neste novo capítulo, nas inúmeras notícias de abuso por parte da Naughty Dog aos seus funcionários nem das quasi-ditatoriais demonstrações de poder da Sony, exercendo a sua potência de lei de Copyright abuse a todo e qualquer youtuber que insistisse em mostrar alguma imagem que tivesse saído cá para fora, levando mesmo ao encerramento de alguns canais. Também não vou falar da suposta e alegada compra de Reviews feita pela Sony, nem do review bombing de jogadores no dia do seu lançamento. Tudo isto são pontos cheios de interesse e que requerem cada um deles uma pesquisa minuciosa e imparcial com artigos únicos dedicados a si – que espero conseguir escrever.

Mas nada disto influencia o meu ponto de vista e o que senti enquanto jogadora. Para descrever o que senti, terei que fazer uma anatomia da história em secções e analisar personagem a personagem, pondo cada um no meu “divã”, com o olhar de quem amou o primeiro e tenta entender o segundo.

Comecemos pela personagem que, curiosamente, é a mais injustamente tratada neste jogo, mas ao mesmo tempo aquela cujo retrato é o mais fiel e mais coerentemente escrito com aquilo que sempre conhecemos. Sabem de quem falo certo?

JOEL: O Princípio do Fim!

Conhecemos Joel nos primeiros segundos de The Last of Us de 2013. Vemos Joel aos olhos da sua filha Sarah. O que ficamos a saber daquela pequena e deliciosa interacção é que Joel é um pai solteiro, que luta por cada trabalho que tem para conseguir providenciar a melhor vida possível à sua filha. Tem uma relação de devoção a Sarah. É um pai divertido e presente. Vemos como Joel carinhosamente lhe chama Baby Girl – o carinho com que a deita na sua cama. Aos olhos de Sarah, vemos o postal que ela escreveu ao pai, a forma amorosa como se refere a ele e a casa que ele construiu para ambos. Nesses primeiros minutos que ficarão para a história do mundo dos videojogos como, provavelmente, a melhor Intro de todos os jogos story driven, vemos o mundo cair à sua volta. Vemos Joel carregar a sua filha nos braços porque ela tem uma perna partida. Vemos um soldado relutantemente mas cegamente cumprir ordens, e vemos Joel perder a sua própria filha no seu abraço. Tudo isto, no dia do seu aniversário.

Vinte anos depois, quando voltamos à história, Joel é uma sombra do homem que foi. Sem ligação emocional a nada que o rodeia, limita-se a sobreviver. Apenas Tommy (o seu irmão) e Tess, a mulher com quem outrora se envolveu, conseguem vislumbrar um resquício da humanidade de Joel. Para os restantes, é um homem emocionalmente morto que teima em sobreviver, mais por hábito que outra coisa. Um mercenário que cumpre contratos. Sabemos que, em 20 anos, já nenhuma barreira moral ficou por ultrapassar. Num mundo cruel e vazio de civilização, Joel ajustou-se e sobreviveu, à custa da alma que perdeu no momento que a sua filha libertou o último suspiro. Joel é um corpo vazio de “alma” – limita-se a acordar todos os dias numa contínua insistência biológica de auto-preservação e sobrevivência.

A organização revolucionária (ou terrorista?) “Fireflies” contrata Joel para que este transporte uma menina de 14 anos através do país, até um Hospital, pois a imunidade desta, poderá representar a cura para a Humanidade – facto que Joel conhece pouco depois de partir na sua missão. Acompanhamos toda a etapa de Joel, todos os perigos dos quais este salva Ellie. Acompanhamos a relação de ambos, todos os momentos em que Joel teimosamente olha para o relógio que Sarah lhe deu, agora estragado, pois é a sua ligação à humanidade. Vemos Joel cruzar-se com Robert, com Sam e Henry, e as suas interacções com estas pessoas mudarem, porque Ellie, lentamente, está a mudá-lo. Todas as mudanças são subtis, dependentes às vezes de diálogos sobre nadar, assobiar ou debater como os Gnomos são adoráveis mas as fadas são “creepy”. Está genialmente escrito.

Estas personagens tornam-se reais aos nossos olhos, e vemos como a sua relação se desenvolve ao ponto de serem ambos, as pessoas mais importante para cada um. São o Mundo um do outro. E isso significa, para Joel, que ele voltou a Amar. A Amar alguém acima de qualquer vontade de sobrevivência. Ellie tornou-se o seu Mundo, voltou a ter a filha que o destino lhe roubou.

Quando nos deparamos com o último capítulo do jogo, o Mundo dá a Joel uma escolha impossível: “Deixa que Ellie morra – deixa que quem amas como tua filha morra e salva (potencialmente – não era seguro) o Mundo” ou, “Salva quem amas, mas condena o mundo a continuar como está”.

Lamento desapontar quem adora ser “rápido no gatilho” do julgamento, mas esta é uma escolha absolutamente Impossível!

O julgamento moral de psicólogos de “sofá” e bastonários da ética de beira de estrada, que adoram chamar a Joel o vilão da história, é idiota na mesma medida que é hipócrita. Para ele, ela é sua filha. É o seu Mundo. Para quê salvar o Mundo, quando o seu próprio Mundo, ruiria, literalmente, naquele momento, outra vez? Desafio qualquer pai ou mãe a dizer-me que tomaria outra atitude – genuinamente.

Joel escolheu de forma egoísta? Talvez. Mas o Amor é fundamentalmente egoísta. Para além disso, esquecem-se que nada garantiria que a cura fosse uma realidade – seria, quando muito, uma hipótese.

Não tenho qualquer pudor em admitir: Joel escolheu o que eu escolheria. Eu fiz essa escolha em 0.0005 segundos. Quando estava a jogar e entrei na sala de operações na pele de Joel, imediatamente disparei para ambos os médicos e enfermeira na sala. Nem sequer pensei ou me preocupei se haveria outra hipótese. Na minha cabeça só existia uma única realidade e opção: salvar a personagem que também eu, através dos olhos de Joel, passei a ver como “filha”. Eu entendo Joel e não o julgo – principalmente porque a sua escolha não é verdadeiramente escolha, é o único caminho de quem quer salvar quem ama. Sim, ele mente a Ellie no final, um momento que nos choca um pouco a todos e nos deixa num dos melhores finais de sempre em qualquer obra do género (inclui filmes e livros). Mas mais uma vez….É o único caminho possível na altura. Ele não se pode arriscar a desapontá-la ou perdê-la. Mais uma vez: Egoísta? Sim. Mas lamento desapontar-vos…. O Amor é, muitas vezes, assim.

Avancemos para o jogo de 2020, e encontramos Joel a falar com Tommy. A contar-lhe tudo o que aconteceu. Porque tomou a decisão que tomou. Tommy escuta-o e não discorda – ele também entende. Vemos Joel ensinar Ellie a tocar guitarra e a cantar para ela, uma canção cuja letra diz Tudo. Uma declaração de amor e pedido de desculpas eterno. O legado de devoção incondicional a Ellie. Não temos oportunidade de jogar com Joel – nunca vestimos a sua pele neste novo jogo. Este jogo não foi feito para deixar que o jogador se despedisse de Joel ou para poder sequer dar um final digno à personagem que todos aprendemos a amar – mesmo com todos os seus defeitos.

Este é um jogo no feminino – não podemos jogar na personagem de um homem que tão cruelmente é castigado pelos escritores da Naughty Dog, disfarçados de um “Karma is a Bitch” distorcido e moralmente corrupto, como todos os julgamentos morais absolutos o são. Joel é morto às mãos de uma nova personagem (falarei dela mais tarde), que minutos antes o jogador estava a controlar. Uma personagem que Joel salva da morte certa, sendo a primeira vez que o vemos agir de forma completamente altruísta. Ellie mudou-o e lentamente, transformou-o num melhor ser humano. Ironia que essa mudança dite a sua morte.

Mas como estava a dizer, esta é uma personagem que, minutos antes, o jogador tinha “incorporado”. Isso – leram bem. Os developers quiseram, propositadamente, que conhecêssemos e quiçá empatizássemos, com a personagem que brutalmente assassina aquele cuja pele vestimos durante mais de 20 horas num jogo anterior. Uma personagem que salvámos. E eu até diria que este detalhe é genial, não estivesse tão mal e desesperadamente executado como está (falarei disso noutro artigo). Deixem-me apenas que refira que, Tommy e Joel, são sobreviventes do apocalipse de há mais de 20 anos. Perante um novo grupo, desconhecido e armado “até aos dentes”, Tommy não hesita em revelar a sua real identidade e a de Joel em menos de 1 minuto, sem qualquer precaução. Como se fosse uma reunião de Tupperware e não um encontro num mundo que milhentas vezes já provou, é de “mata ou morre”. Isto não é “Off character” e má escrita?

Com isto, a Naughty Dog, em vez de provocar o meu pensamento e me fazer sentir conflituosa, o que conseguiu fazer foi que eu, enquanto jogadora, sentisse que tudo o que aconteceu foi forçado e desprovido de sentido, ao mesmo tempo com que fez que eu odiasse a tal personagem de forma imediata. Ao longo de todo o jogo, fiz um esforço enorme para poder entender o seu ponto de vista, quando, tivesse Neil Druckman e a sua equipa, executado melhor este gigantesco detalhe de argumento e escrita, e eu estaria em absoluta discórdia e luta emocional comigo mesma (que julgo teria sido esse o objectivo). Em vez de jogar em “esforço” teria jogado em “conflito” – uma diferença brutal!

De Joel, não tivemos tempo de nos despedir. Vemo-lo ainda em cutscenes e memórias de Ellie. Vemos a celebração do aniversário da Ellie. O amor incondicional nos seus olhos, quando, ao dar a Ellie o seu presente, lhe pergunta: “portei-me bem?”. Vemos o jeito brincalhão e afectuoso com que a trata, o homem carinhoso e dedicado que conhecemos nos primeiros minutos do jogo de 2013. Uma sombra do homem que poderia ter sempre sido, se o Mundo não o tivesse roubado do seu amor mais primordial. Confesso que, durante todo este segmento, que jogamos na pele de Ellie, desejei mais que tudo que existisse um botão que me permitisse abraçar Joel. Desejei despedir-me dele – abraçá-lo e dizer que o entendo. Que lhe perdoo a sua escolha e o amo assim mesmo. Chorei todo o segmento e odiei a Naughty Dog por não permitirem alguma dignidade na hora da despedida.

Nestes segmentos de flashback, nem tudo é felicidade. Vemos também o distanciamento de Ellie, à medida que esta desconfia e descobre a verdade do que aconteceu. O homem que sofre com o separação do que mais ama. Mais importante que tudo isto, vemos Joel dizer-lhe que, voltasse atrás àquele momento fatídico,  teria feito exactamente o mesmo. O Amor dele Inabalável.

Joel é a única personagem coerente e que defende verdadeiramente o que Ama até ao fim. E nós, enquanto jogadores, somos forçados a observar complacentemente o julgamento moral de uma nova era em que apenas há 0 ou 1 (como se os humanos fossem códigos sem incoerência), de um escritor/developer que julga que chocar e ser depressivamente surpreendente é o mesmo que ser “Profundo”. Foi o seu momento Red Wedding, sem uma sombra de brilhantismo que George RR Martin exibe em toda a construção de história e personagens que definem esse infame momento. Dou a Neil o mérito de, efectivamente, me ter conseguido chocar. Mas apenas pela má escrita e total impossibilidade de me deixar despedir de uma personagem que tanto amei. Estava totalmente preparada para a morte de Joel – mas não estava preparada para a palhaçada adolescente de pornografia Gore (e eu adoro Gore) e exposição que observei.

Karma is a Bitch”? – Parece-me que castigar Joel daquela maneira porque escolheu salvar quem amava, é uma noção de Karma tão infantil como desprovida de significado. Alguém que julga estar a citar Nietzsche, mas no fundo está a citar Bolsonaro.

Resta-me a consolação de observar que, nem mesmo à beira da sua morte, Joel nega ou desculpabiliza o que fez. Tomou a decisão que acreditou ser a melhor e é com esta convicção inabalável que se mantém até ao fim. Dou crédito aqui a Neil – que não distorceu o seu carácter nem o tornou numa “pessoa” irreconhecível. O mesmo não posso dizer daquela que vi como minha “filha”. Mas dela falaremos na PARte 2 – por agora fico com a memória do que foi Joel e, na minha própria imaginação, despeço-me do homem que tão bem entendo.