Parte dois aqui.
O caso português seguirá muito provavelmente as pisadas dos demais congéneres europeus. Tivemos certamente os jogos trazidos pelos romanos. Na Idade Média, Afonso X, na vizinha Espanha, Publicou O Libro de los juegos onde tipificou e demonstrou os jogos mais comuns da altura: Xadrez e demais problemas, Gamão, Nine Men’s Morris tal como jogos de dados. É sem dúvida um dos mais importantes documentos para perceber o que foram os jogos de tabuleiro.
Segundo o britânico Nigel Pennick muita da arquitectura medieval tem a origem das suas praças baseada em jogos de tabuleiro. Sendo que existem precedentes que parecem corroborar esta teoria, como por exemplo na China antiga (na capital real de Chou), onde é possível observar a existência de um espaço sagrado dividido em 64 quadrados; não será difícil imaginar que as praças poderão ter sido um meio de as pessoas na idade média passarem o tempo em comunidade. Aliás os jogos desde Senet no Antigo Egipto tinham uma componente tão espiritual quanto lúdica.
Um exemplo, a que fui chamado à atenção poderá ser o do Claustro da Micha em Tomar. Antigamente os mosteiros eram verdadeiros aglutinadores de população. Não é por acaso que o desenvolvimento populacional das nossas cidades após a Idade das Trevas e durante a Reconquista, se terá desenvolvido em torno do poder monástico. Nine Men’s Morris, poderá, no Claustro da Micha em Tomar, ter sido usado para jogar em ocasiões festivas quando a comunidade se juntava. Claro que é meramente uma teoria mas não é difícil imaginar que o desenho do pavimento poderá ter sido base para uma versão rudimentar de Nine Men’s Morris (um jogos com origens nos romanos) usados pela comunidade. Agradeço ao André Marrucate a sua chamada de atenção pois parece-me bastante plausível.
No Renascimento e através da dinastia Filipina, chega a Portugal o Jogo do Ganso, ou Jogo da Glória como é conhecido entre nós. Dado o simbolismo em representar a vida e de certa maneira o karma da mesma tornou-se um jogo muito apreciado pela realeza, mais uma vez, pela carga simbológico-lúdica que acarreta. Cada casa está carregada de simbolismo e o jogo em si pretende ser um roleplay do percurso que cada um de nós tem na e em vida. Em tempos a falecida editora Quipu imprimiu um fac-simile do Jogo da Glória da família Real Portuguesa (a que foi para o Brasil) original que data do século XIX. Não será muito diferente do exemplar abaixo indicado.
Em 1939, com a Segunda Guerra Mundial e algum desenvolvimento económico é criada a Majora num meio social onde os jogos de cartas e damas são a regra. O Xadrez e o Gamão pela sua maior componente estratégica possivelmente terão estado restringidos às classes mais educadas. A Majora, fundada por Mário (MA) José (JO) Oliveira (RA) trouxe inovação na medida em que para além de ter reeditado o já conhecido Jogo da Glória para o grande público, ainda trouxe outros que acabaram por se tornar clássicos como por exemplo o Sabichão.
Com os anos 1980 a produção de jogos atingiu uma pequena época dourada. Portugal era à altura uma pequena China. A nossa indústria de plásticos e do papel aliada a um baixo custo de produção permitiu um florescimento de uma actividade virtualmente inexistente, a produção de jogos. Não obstante a marca deixada pelos jogos iniciais e clássicos da Majora viria a marcar todo o panorama lúdico português. Se não veja-se o caso de o Jornalinho (de 1984 a 1987) da RTP que dado o seu sucesso teve direito a um Jogo baseado em Nine Men Morris, vulgo o Jogo do Disco (tive um).
A excepcionalidade Portuguesa no contexto ibérico
Chegavam a Portugal, através, de emigrantes, jogos da Avalon Hill e da GMT que introduziram os jogadores aos seus primeiros jogos realmente estratégicos e complexos. Poderão ter nascido aqui os primeiros núcleos de amigos que se tornaram os verdadeiros primeiros gamers ‘ardecore‘ de jogos de tabuleiro. Tais jogos sempre foram produtos de nicho vendidos com preços altamente inflacionados dados os custos de importação/transporte e a famigerada taxa de luxo que no caso de jogos originais para Spectrum chegava aos 30%.
Se Portugal era conhecido por ser uma pequena China no que diz respeito à produção de jogos, também o foi na produção de componentes eletrónicos. Foi igualmente em Portugal que a empresa de Sir Clive Sinclair produziu o Timex para exportação mundial. Tal facto não passou despercebido ao incipiente mundo de jogadores de jogos de tabuleiro português que até então à data ousaram ir além de jogos como Monopólio.
Anos19 80
*interlúdio musical para melhor absorver as vibes da época*
https://www.youtube.com/watch?v=t6ALM5GI9IM
Graças à ajuda de Miguel Cruz aqui da Rubber Chicken e Tiago Tempera a quem estou muito agradecido, dou então a conhecer o que poderá ser um caso muito raro de um crossover em que os jogos de tabuleiro se cruzaram com os de Spectrum. Se bem que a nível mundial o Videopac Quest for the Rings para a consola Odissey tenha sido um dos exemplos mais memoráveis, Portugal através de Paulo Vítor Balão publica em 1988, O Empresário. O jogo se bem que aparenta ser um clone de Monopólio consegue subverter a lógica do mesmo por o tornar um bom pedaço mais complexo.
Em O Empresário cada jogador é um produtor de bens que os comercializa no mercado da exportação (qualquer semelhança com a realidade dos anos 1980 é mera coincidência). O livro de regras chega ao ponto (bastante inovador para a realidade dos jogos de tabuleiro portugueses) sugerir regras simplificadas e mais complexas para aqueles jogadores que desenvolveriam um mais-à-vontade com a mecânica de jogo. O computador trata de manter um registo atualizado das finanças dos jogadores e de determinar de modo aleatório os problemas que os mesmos poderão encontrar no estabelecimento do seu negócio. O número de espaços a andar no tabuleiro não é determinado por dado (d6) mas sim por computador.
Temos a possibilidade de comerciar internamente e externamente. Para tal poderemos segurar ou não (push your luck) a carga a exportar maritimamente. Existe igualmente a possibilidade de fazer e criar operações na bolsa, permitindo obter ações dos outros jogadores podendo então passar a receber uma percentagem sobre o lucro destes. Dada a possibilidade de criarem-se variantes mais complexas de jogo, a capacidade de computação do Spectrum é plenamente justificada para que não se perca tempo a saber o quanto se deve ou se tem a haver.
De facto e para a época O Empresário foi um dos jogos mais ignorados e inovadores do seu tempo, se não veja-se que, por exemplo, no mundo dos jogos de tabuleiro, só muito recentemente se começaram a usar em massa as apps e as tablets para retirar aspectos mais técnicos e enfadonhos da experiência de jogo. E a resolução de problemas típicos do Monopólio (quando afinal acaba o jogo) é facilmente resolvida pela primeira pergunta ainda antes de se jogar o jogo. Bom trabalho Sr. Paulo Vítor Balão. O chapéu é tirado em sua honra.
Anos 1990
*interlúdio musical para ficarmos com o cheirinho a anos 90*
(Os noventas… a nossa pequena idade das trevas da criação nacional)…
Os anos 1990 foram marcados pelo desaparecimento e esquecimento dos jogos tradicionais tipo Majora. O tecido criativo nacional desapareceu e o panorama, fora do que era comum, passou sobretudo pela adopção dos jogos importados da MB (Quem é quem), Hasbro (Cluedo) e Parker (Risco). A própria Majora que possui uma imagem muito forte no colectivo português, dos anos 1990 para 2013, estagnou completamente tendo como único propósito a redição em português do jogo Monopólio. Certamente e completamente alheada ao fenómeno que decorria em paralelo no resto da Europa a Majora decaiu até quase uma posição de esquecimento. Para o declínio dos jogos de tabuleiro contribuiu também em muito o aparecimento das consolas. (Só porque falei momentaneamente em consolas tenho que pôr aqui isto… O momento em que todos os dias da semana depois das aulas a rapaziada se sentava frente à televisão para ver as consolas. Ver vídeo…).
Nota: Saltar para o minuto 3:30 onde podemos ver Cristina ̶M̶u̶l̶a̶ Möhler nos anos 90… Não cliquem no nome dela seus tarados! Afastem-se ela é minha, TODA MINHA!
O Presente…
Tivemos que esperar até à primeira década do novo milénio em 2009 para que Gil D’Orey em conjunto com a Majora editasse em 2009, Aljubarrota, o primeiro jogo fora do catálogo de jogos tradicionais da Majora a considerar-se moderno em todo o sentido da palavra. Vital Lacerda, também em 2009 publica na web Age of Steam Expansion: Portugal. Gil D’Orey em conjunto com Paulo Soledade e Nuno Bizarro Sentieiro viriam depois a criar o muito bem sucedido Panamax.
Na senda de Vital Lacerda e Gil D’Orey com a sua editora própria, o panorama independente português explodiu tornando-se nos últimos anos bem sucedido chegando naturalmente e por via dos tamanhos relativos dos mercados a ser bastante conhecido dos públicos internacionais. Não é incomum termos um jogo desenhado por portugueses a ser avaliado em pé de igualdade com o melhor que se faz na europa e Estados Unidos. Não obstante a produtora com mais capital emocional adquirido (a Majora) continua estagnada e com uma posição autista relativamente à cena mundial de um indústria que em kickstarters já junta mais dinheiro que os jogos em formato digital. Aliás a estratégia de expansão das restantes editoras portuguesas passa por aliar a distribuição de sucesso garantidos das grandes editoras internacionais a apostas nacionais. Também existe dinheiro na distribuição mas infelizmente e como mostra esta entrevista há gente que tem nozes mas não tem dentes.
Vital Lacerda aqui… a voz da razão, calma e sabedoria acumulada… versus… o fundo de investimento financeiro
O cringe e autismo é tão flagrante que temo pelo futuro da Majora uma marca que está na memória de todos os portugueses… dói ouvir a estratégia comercial. Não duvido que não funcione… mas até quando? Até quando um público mal informado irá cair no mesmo truque? Dona Catarina Jervell aposto que o relatório trimestral está muito bem feito e os investidores do fundo de investimento estão muito contentes… mas você algumas vez apareceu num encontro de jogos de tabuleiro? Já jogou alguma coisa nova ultimamente? GOSTA DE JOGOS DE TABULEIRO SEQUER? Cringe meu… cringe…. Dado o fracasso do que é conhecido pelo meu grupo de boardgamers como o #theneverendiggame acredito que não tenham muita vontade nem coragem de tentar coisas novas… mas porra então façam o que vos deu para sobreviver durante anos… distribuam.
E claro o nosso grupo de criadores de jogos, talvez por culturalmente sermos abertos e receptivos ao que vem de fora, sabe pegar no que é bom, e usar a nossa tradição e cultura como inspiração criativa para inovar e dar a conhecer através de um suporte lúdico o que é este cantinho à beira-mar plantado. Ao contrário de por exemplo Espanha… que acredito que tenha uma cena muito criativa no entanto a única reverência é Topoum que não me surpreendeu muito… Sim, não ficamos nada atrás de Espanha; sabemos fazer o que fazemos e fazemo-lo bem. Por isso hoje e sempre viva Portugal e os jogos de tabuleiro Portugueses!