Devia ter 5 anos quando a morte me confrontou pela primeira vez. Um dos três bisavós paternos que ainda era vivo na minha infância tinha morrido, já perto dos 90 anos. Naquela altura já tinha lido referências à morte, tantas vezes uma figura presente nas minhas duas paixões da época: a mitologia clássica e a paleontologia. Mas há uma diferença gigante entre um conceito abstracto como a “morte” lido por uma mente com 5 anos, que independentemente da maturidade ou falta dela, ainda era algo diferente de compreender.
Existe uma correlação entre a forma como vemos a morte com a própria religiosidade, ou não fossem as inúmeras religiões criadas desde tempos imemoriais uma forma de nos permitir com temas complexos. E diria que não há tema mais complexo do que a morte. Ironicamente, a única inevitabilidade da nossa vida, e a sua única certeza.
Lá em casa, entre o catolicismo “suave” da minha avó e o agnosticismo do meu avô, reinou sempre o pragmatismo. As crianças nasciam fruto da união de células masculinas e femininas (seria nesse Natal que receberia de prenda um livro sobre anatomia e que a explicação se tornou ainda mais evidente) e não de cegonhas, o Pai Natal não existia, e a compreensão das dificuldades económicas da família sempre me fizeram agradecer o esforço para receber prendas, dentro ou fora de celebrações, e obviamente, a morte não era romanceada: era o fim de um caminho biológico em que o organismo deixava de funcionar, e se “desligava”.
Se a explicação biológica existia, onde ficava a outra dimensão: a emocional? Posturas diferentes entre o meu avô com o seu estoicismo quase omnipresente, e a minha avó que, apesar das lágrimas que vertia, tentava sempre manter a sobriedade de quem tem 7 filhos e outros tantos netos para confortar emocionalmente, ainda que naquele caso deveria ser ela a confortada, já que tinha acabado de perder o pai.
A pergunta difícil que se coloca neste assunto: e o que acontece depois? Entre a certeza titubeante da minha avó na existência de algo mais no pós-vida, e o agnosticismo do meu avô de sentir que existir algo depois da morte é indiferente, porque não temos como saber, ecoava o catolicismo mais fervoroso do meu pai e de algumas das minhas tias, em contraste com os seus pais (os meus avós). Ali existia a crença fiel de que um dia todos se reencontrarão no pós-vida, num conforto emocional que só a religião pode dar.
Duas décadas se passaram e o meu contacto com a morte, como a de qualquer outro humano, foi progressivo, familiares e amigos que foram morrendo, de formas naturais e suicídios – demasiados suicídios olhando agora para trás – mas seria apenas em 2009 que essa ideia de aceitação da morte, ou não, seria um verdadeiro e desesperadamente doloroso teste. A minha avó, que me criou, e que será sempre a minha figura materna, morreu. E foi aí que percebi o vazio emocional que o meu ateísmo me responde: onde o meu pai e as minhas tias, pelo meio da dor, conseguiram encontrar um suave conforto na esperança católica do pós-vida, e eu e o meu avô, a olhar para esse mesmo sentimento à nossa volta com uma certa inveja, na procura de algo que reconfortasse a nossa falta de aceitação da morte para além do mero fim biológico.
Já se passaram 11 anos, e acredito que na realidade, nós nunca aprendemos a aceitar a morte. Podemos sentir a dor a diminuir na memória, a habituação pragmática de já não vermos o espaço previamente ocupado por aqueles que amamos, mas nunca aprenderemos a aceitar a morte. Muitos artigos referem que é essa auto-consciência da nossa mortalidade e daqueles que amamos que nos separar dos restantes animais. Não sei se assim é, nem sei se algum saberemos. Mas afirmá-lo é quase querer assumir que não é dor o sofrimento dos animais ao serem confrontados com a morte daqueles que os rodeiam. E assumir no nosso antropocentrismo que só nós temos a superioridade emocional para sofrer com a morte. Quando a aceitação da dor da morte é tudo menos racional e intelectual.
Tantos poetas, cineastas, artistas plásticos, escritores se debruçaram sobre a nossa relação com a morte, desde o abraço do Romantismo à febre da vida e do movimento dos Futuristas. Mas cada vez mais acho que nenhum meio consegue pôr-nos o peso dessa reflexão como os videojogos conseguem. E neste caso, o diálogo profundamente pesado que Spiritfarer me conseguiu promover com uma imagem de doçura.
À primeira vista, é nessa doçura que Spiritfarer nos apanha vulneráveis. Quando mergulhamos nele vamos imbuídos de uma vontade de relaxar – que virá, agarrada a muito mais – num jogo com uma direcção artística brilhante, sólida, representativa do que de melhor a animação contemporânea consegue produzir.
Aqui vivemos o papel de Stella, que acompanhada do seu gato Daffodil toma o papel de Caronte, que a deixa como a nova Spiritfarer, a conduzir os espíritos ao descanso final, após cumprido o seu derradeiro desejo.
Na sua essência é um management game onde a nossa barca vai sendo evoluída, e onde teremos de gerir progressivamente os recursos para novos upgrades, responder a novas quests, e conseguir chegar a zonas do mapa onde previamente o nosso barco não consegue chegar.
Esta é a explicação simplista. Resumir Spiritfarer aos seus elementos mecânicos é falhar por quilómetros o que faz dele, para mim, um dos melhores jogos do ano.
Na nossa viagem pelos mares do pós-vida, vamos encontrando passageiros para a nossa barca. Entidades espirituais antropomórficas com desejos, anseios, frustrações, mas sobretudo com arrependimentos do que não resolveram durante a sua vida. Um conjunto de personagens relacionáveis que, de uma forma ou outra, têm ligação à vida de Stella, que foi uma enfermeira de Cuidados Intensivos.
Parte da beleza dos múltiplos enredos que vamos descortinando neste Spiritfarer é o de perceber não só as relações dos personagens com Stella durante a vida, mas também todas as dores que os impedem de querer atravessar o portão final, e terminar a sua existência. E estas histórias, ainda que lida nas entrelinhas, leva-nos sempre por momentos de sofrimento, da mulher de meia-idade que revive no pós-vida toda a sua vaidade, esse momento perdido numa luta contra um cancro da mama. Ou a criança que conhecemos e que, apesar de nunca ser explicitamente demonstrado que quer no pós-vida viver todo o tempo que injustamente não teve, depois de um cancro o ter ceifado cedo demais.
As quests em Spiritfarer não são mais do que passos dados por Stella para ajudar cada uns dos personagens a aceitarem a morte. E vêmo-los a disfarçarem os seus medos com o desaparecimento final, a encontrar todas as justificações possíveis para prolongarem o mais possível a sua viagem, para nos acompanharem durante mais tempo e adiarem o momento final em que terão de aceitar a sua morte e seguir em frente, para o que quer que esteja para lá do Evergate.
A candura da viagem transparece uma ideia de normalidade perante o tema. A morte deixa de projectar uma sombra assustadora para ser o ponto de partida e o ponto final de uma viagem que todos terão de percorrer.
Pelos seus elementos de sandbox bidimensional, do tempo que cada viagem demora e das próprias características de um management game, sinto que a maioria dos jogadores mergulhará no oceano de Spiritfarer em pequenas incursões. E talvez seja essa a forma ideal de usufruir dele pelo seu loop mecânico potencialmente monótono. No meu caso foi um mergulho quase ininterrupto, sorver este mundo com a sofreguidão de quem vem à tona apenas para respirar, e voltar a mergulhar nestas histórias tão palpáveis. Procurar todos os personagens opcionais, resolver as suas storylines e só depois – apesar de há muito disponível – resolver o próprio pós-vida de Stella. Parar apenas quando os desejos de todos os personagens e o próprio mundo de Spiritfarer estivesse cumprido.
Spiritfarer, mais do que uma viagem doce pelo pós-morte com um elenco de personagens altamente memorável, é sobretudo uma obra metafórica sobre a morte e a sua aceitação. Sem qualquer religiosidade anexa, Spiritfarer é um debate interno com a nossa postura perante a morte. E apesar de o tom final ser sempre agridoce, e de ter muitas vezes relativizado o tema, a realidade é que apesar de toda esta reflexão, termino o brilhante Spiritfarer com a mesma certeza que tive antes de o começar a jogar: nós nunca aprenderemos a aceitar a morte, apesar da sua inevitabilidade. Nunca o faremos precisamente porque o amor que sentimos é mais forte que isso, até com a necessidade de aceitar que a morte levou parte de nós. E é possível que no dia em que aceitarmos a morte por completo percamos muito daquilo que faz de nós humanos, e que não sintamos qualquer coisa que se assemelhe sequer a amor. E se isso acontecer, então já estaremos mortos muito antes da própria morte chegar.