“Todas as novas gerações se riem das modas do passado, mas seguem religiosamente as modas do presente”.

Ora aqui está uma forma de regressar ao Rubber Chicken que pode parecer no mínimo pedante, arrancando com uma citação de Thoreau (ler com o sotaque de Ricardo Araújo Pereira do tipo Javardola, menos quando fala Francês). 

Porém também foi descrito por Orwell que “cada geração se imagina mais inteligente que a anterior e mais esperta em relação às futuras”, logo posso eu próprio estar a cometer o impropério (palavra cara usada à espertalhão no meio do texto) de cair na armadilha de achar a minha geração de 1970 mais especial do que as mais recentes. A verdade é que somos todas e todos iguais. Repare-se por exemplo que Thoreau era americano e não francês, por isso já me espalhava no polígrafo e com direito a meme.

Existe contudo algo que as gerações anteriores não tinham e que as novas sim: caixas de comentários online. Sim, todos tínhamos opiniões parvas constantemente mas estávamos habituados a mediar constantemente entre o que nos ia na cabeça e o que saia pela boca, pela bitola mais funcional à nossa disposição: a possibilidade de levar um estaladão na cara. 

No meu tempo chamava-se o Rocha e piava tudo fininho

Continuando até irritar com as citações (prometo que é a última), Steven Spielberg concluiu que “apenas uma geração de leitores poderá dar origem a uma geração de escritores”, o que pode ser transformado nos nossos dias para: “apenas uma geração de gamers poderá dar origem a uma geração de comentadores online”. Admito, estou a torcer as citações ao meu jeito (nunca confiem na minha geração), e a adaptação mais correcta deveria ser: “apenas uma geração de gamers poderá dar origem a uma geração de criadores”. Já lá vamos. Primeiro, fiquemos mais um pouco pelas caixas de comentários.

Com uma nova geração de consolas à porta, anda tudo a bater no ceguinho em cada publicação que vai aparecendo. Até aqui tudo normal, “life finds a way” (eu disse para não confiarem), mas o que é importante salientar é o regresso em força de uma tendência: quem vai perder esta nova geração? “Xbox Series X mais potente que a PlayStation 5”. A PS5 já perdeu. “SSD da PS5 mais rápido que o da Series X”. A X foi-se. “Microsoft adquire a Bethesda”. Lá morreu mais uma. “Estúdios da Sony anunciam dezenas de exclusivos para o próximo ano”. Agora faleceu a outra. “Expansão de 1Tb da Series S/X custa 200 euros”. Bandeiras azuis de vitória no ar. “Primeiras drives internas de 1Tb anunciadas para a nova PS5 rondam os 200 euros”. Bandeiras verdes agitam-se ao vento. E podíamos aqui ficar um artigo inteiro só nisto. 

Não servem, no entanto, este exemplos para definir ou traçar uma linha entre fãs de uma ou de outra consola. Não servem também para oscilar ou dar importância a um ou outro lado das linhas de guerra. Os fãs vão sempre existir e vão sempre defender a ferros o porquê de terem a razão. Como exercício fui ao Facebook do Blossom Blast Saga, um jogo mobile aparentemente para pessoas à procura de momentos de calma e descontração, e encontrei: “Não estou contente! Cheguei a um nível que não consigo passar. ZANGADA!”. Adorei as maiúsculas. O gato da senhora ainda deve estar escondido debaixo do cadeirão. Os exemplos que citei servem apenas de fio condutor para algo que nunca aparece escrito no meio destas disputas: Ninguém vai perder esta geração

Aquele momento em que estás à espera de vidas no Disney Tsum Tsum

Um pequeno passeio pelos números esquecidos dentro das caixas

Vamos então por um momento esquecer exclusivos, drives, ray-tracing, ou andar a debater quem a tem maior e mais comprida. Vamos concentrar-nos apenas nos números da indústria de videojogos. Até Setembro de 2020, a Xbox One tinha vendido cerca de 48 milhões de unidades. Os últimos dados da PS4 são de Agosto deste ano com cerca de 113 milhões de unidades vendidas. À primeira vista, a Xbox está em maus lençóis. Mas vamos escaranfunchar mais os números.

Em 2018, entre consolas e serviços, a Xbox totalizou um lucro de 13 mil milhões de dólares. No ano seguinte caiu ligeiramente para um lucro de 11,5 mil milhões. Em 2020 contudo, face ao número de pessoas que ficaram confinadas em casa, disparou para os 38 mil milhões, com um aumento de 65% de vendas nos serviços e de 49% no hardware, ainda com 3 meses para contabilizar antes do final do ano. Pelo seu lado, a Sony espera fechar este ano com aproximadamente 28 mil milhões de dólares em lucro, mesmo que a sua base de hardware seja mais do dobro da “concorrente”. Antes que pensem que isto é uma comparação para quem vai perder, stay with me, porque temos aqui mais dados interessantes.

Em Setembro de 2020 a PlayStation atingiu os 50 milhões de assinantes do serviço PS Plus. Não temos dados recentes de assinantes do PS Now, mas podemos fazer previsões. Os últimos números que temos são de Maio deste ano, com 2,2 milhões de subscritores, quando o primeiro milhão tinha sido atingido em Novembro de 2019. Se em 6 meses cresceu um milhão e meio, então deveríamos estar acima dos 3 milhões neste momento. No entanto já se provou que a pandemia fez disparar tudo o que são serviços de subscrição daí que os números actuais de assinantes do PS Now devem ser muito maiores.

Passemos para a Xbox. As assinaturas de Xbox Live já ultrapassaram os 90 milhões (aqui percebem porque mesmo com menos consolas vendidas nesta geração a marca consegue fazer mais dinheiro na base de jogadores desta e de outras gerações). Mas o dado mais curioso é que nos últimos 6 meses as subscrições de Game Pass cresceram 50% para um total de 15 milhões de assinantes. Mesmo calculando os valores por baixo a 9.99 euros por mês (teríamos que contabilizar uma média mais alta se tivéssemos em conta quem assina o tier mais caro do Ultimate), chegamos a um total de 150 milhões de euros todos os meses. Mesmo descontando o que a Sony e a Microsoft têm de pagar às editoras, é muito dinheiro só em subscrições. 

Mas não fiquemos por aqui e espreitemos a galinha do vizinho. A Nintendo está a quebrar todos os recordes nos Estados Unidos, com a Switch a manter-se a consola mais vendida de todas durante 22 meses consecutivos. Já que fomos espreitar o vizinho, vamos alargar horizontes para o bairro e para a cidade. A Microsoft não faz só consolas. A Sony não faz só jogos. A Sony por exemplo viu este ano o seu volume de negócios disparar pelo menos em três outras áreas: dispositivos de imagem como lentes e sensores para máquinas próprias e de outros fabricantes; semicondutores para um ecossistema gigante de outras empresas; e um aumento gigante de royalties nas áreas de música, TV e cinema (Sony Music e Sony Pictures), derivada pelo crescimento exponencial que os serviços de streaming tiveram nestes meses de pandemia. 

Calma que isto ainda não acabou. Não vamos saltar etapas.

Querem mais? A malta fornece. Se tivermos em consideração todos os ramos de actividade de cada marca, estes são os valores de vendas até Setembro deste ano: Microsoft – 138,6 mil milhões de dólares; Sony – 79,2 mil milhões; Nintendo – 11,2 mil milhões. Mas o ecossistema é maior certo? O mobile existe, e cada consumidor acaba por eventualmente gastar dinheiro com jogos. Vendas totais da Apple – 267,7 mil milhões; Samsung – 197,6 mil milhões (e só estamos a contar com duas marcas). Vamos à chinesa Tencent que para além de deter ações em companhias AAA acaba por ter o seu maior rendimento no mercado free-to-play mobile: 54,6 mil milhões. Até a Valve cujo modelo de negócio provém maioritariamente do seu papel de intermediário aproxima-se dos 4 mil milhões. Não admira que a Epic se possa dar ao luxo de oferecer bons jogos todas as semanas.

Onde é que eu estou a querer chegar depois deste débito de informação digna de provocar espasmos de prazer a um contabilista no Excel? À dimensão do mercado e da indústria de videojogos. Temos neste momento cerca de 2,7 mil milhões de jogadoras e jogadores que vão gastar uma estimativa de 160 mil milhões de dólares este ano para se divertirem (cerca de 77 no mobile; 45 nas consolas; 36 no PC). A indústria prevê que este gasto anual ultrapasse os 200 mil milhões em 2023. Um último dado só para fechar esta dissertação numérica: a PS5 vendeu mais nas 12 primeiras horas de pré-encomendas do que nas 12 primeiras semanas de lançamento da PS4. Se compararmos os mesmos números entre a Series X e a Xbox One, a diferença é ainda mais abismal.

A conclusão é muito simples. Ninguém vai perder, nem ninguém vai morrer. A pergunta é ao contrário: quem vai fazer mais dinheiro? Muito mais. Alguém porventura fará menos, mas todos vão fazer rios infindáveis de capital.

Então se ninguém pode perder quem é que ganha afinal?

Nós. As jogadoras e os jogadores. Uma nova geração não é uma questão de gráficos. Uma nova geração é essencialmente uma questão de aumento de capacidade de processamento. Mas não é o maior processamento que permite melhores gráficos? Claro que sim. Mas uma maior capacidade de processamento permite toda uma miríade de novas tecnologias que ajudam não só o visual mas principalmente a jogabilidade e a narrativa. Temos sim reflexos mais bonitos, mas também temos velocidades de disco que permitem carregar cenários a uma velocidade instantânea (Ratchet and Clank); temos sim volumetria da luz quase foto-realista, mas temos também capacidade de machine learning e inteligência artificial para alimentar o comportamento de NPCs, sejam eles o inimigo num shooter, um carro numa pista ou os jogadores num campo de futebol. Temos a capacidade de ver os nossos jogos em 4K e correr os mesmos em framerates maiores, mas também temos tecnologias que permitem uma interação entre as animações dos personagens e o ambiente de forma adaptativa e dinâmica, sem que tudo tenha que estar pre-scripted

O mais curioso é que temos isso num espectro que vai do Battle Royale até ao indie, passando por, nas palavras do meu pai (geração de 1950), “o jogo das bolinhas” que ele tem no smartphone. O aumento gigante do número de jogadores ao longo dos últimos anos permitiu um aumento gigante de criadores com uma base enorme de potenciais clientes (eu disse que já voltávamos ao Spielberg). Permitiu às grandes editoras criar jogos cada vez maiores em dimensão e realismo (Assassin’s Creed Odyssey); às médias criar experiências de suster a respiração (Control), e às mais independentes utilizar o processamento para potenciar uma narrativa (A Plague Tale: Innocence). Até os mais pequenos dos mais pequenos podem chegar a milhões hoje em dia (Fall Guys; Among Us).

Uma nova geração de consolas, uma nova RTX ou RX, uma Switch Pro, um novo iPhone/Samsung/Huawei/etc, não só avançam a capacidade de nos envolver cada vez mais no universo de um jogo como alargam a base de futuros jogadores todos os dias. E mais uma vez, relembro, o mercado tornou-se demasiado grande para falhar. Em vez de andarmos à traulitada verbal no virtual deveríamos acender uma velinha a Nossa Senhora da Aparição do Novo Brinquedo. As minhas meninas estão já a caminho (o Ricardo já avisou que isto soa muito mal). Vão fazer companhia à minha 2080ti, à minha Switch e aos meus devices mobile iOS e Android. Porque para mim o que conta são os jogos, estejam eles onde estiverem. Era isso que devia sempre contar, e nunca deveríamos olhar para o futuro a desejar o presente.

Perdoem-me por vos estar constantemente a mentir, mas tenho mesmo que terminar com mais uma citação:

“Haters gonna hate”.