O que é que acontece quando um developer não é dono da propriedade intelectual que criou para uma franquia de videojogos? Arrisca-se a ver o seu bebé retirado das suas mãos ou a não ter grande palavra a dizer no rumo que é dado ao material propriedade normalmente de uma editora com fins comerciais. Pode bem acontecer o inverso do que a Ágata queria em Comunhão de Bens – o developer até pode ficar com as jóias (a ideia), o carro (as mecânicas) e a casa (a estética), mas não fica com o IP (o que interessa). Hoje o vosso humilde redactor convida-vos a conhecer três exemplos de developers que mandaram tudo com o c***lho e seguiram os seus sonhos. Ou como Adam Sandler em Não te Metas com o Zohan, esse exímio espião israelita que só queira ser cabeleireiro.
Shouzou Kaga e a inesperada virtude da inocência
Ainda outro dia vos falei de Shouzou Kaga. Podem reler a primeira metade para não vos maçar outra vez (neste meu Universo em que os leitores do Rubber consomem avidamente todos os artigos em continuidade). O que não vos contei é que a sua história…deu-me pena. Kaga inventou Fire Emblem, a franquia mais icónica do género de RPG de estratégia. Praticamente tudo o que conhecem com um mapa em grelha e personagens à porrada com os maus através de turnos foi inspirado por Fire Emblem.
Seria de esperar que o próprio tivesse perfeita noção de que deixar a Intelligent Systems seria deixar Fire Emblem para trás. Mas não. Quando Kaga fundou o seu estúdio Tirnarog, o seu sucessor espiritual à franquia que criou, Tear Ring Saga, chamava-se na verdade Emblem Saga. Kaga chegou a adiantar em entrevistas durante o desenvolvimento que os eventos do jogo se desenrolariam no universo do jogo original, em jeito de spin-off.
Como eventualmente a Tirnarog mudou o nome de Emblem Saga para Tear Ring Saga, só teve de pagar uns ienes à Nintendo e o jogo acabou por permanecer à venda, não há muito mais escrito sobre o que iria na cabeça de Kaga. Pese a ingenuidade, deu-me pena saber que o criador não percebeu logo que ia ficar sem o seu bebé, quando decidiu demitir-se da Intelligent Systems. O certo é que o caso criou precedente legal no Japão para os dois senhores que vamos ver de seguida.
Keiji Inafune e a magnífica estagnação do mercado japonês
Keiji Inafune é o pai de Mega Man. Um bocado como o Dr. White, mas o próprio diz que só concluiu o design conceptual já iniciado pelo seu antecessor na Capcom, Akira Kitamura. Não teve uma saída tão contenciosa da Capcom como Kaga da Intelligent Systems ou Igarashi da Konami, como vão ler a seguir, mas ainda assim em protesto.
Entre o trio, é aquele com mais trabalho feito depois de deixar a casa que o tornou célebre. No estúdio Comcept, por si fundado, tem no currículo Mighty No. 9, o sucessor espiritual de Mega Man: é um andróide, tem de dar cabo de seis bosses, ficar-lhe com os poderes e mandar tiros num ambiente de side-scroll 2D. Teve ainda o apoio no desenvolvimento da Inti Crates, estúdio que – que se as empresas de videojogos fossem…videojogos – poderia ser chamada de um spin-off da Capcom, já que foi fundada por ex-colaboradores da anterior e tem no currículo a saga Azure Gunvolt. O nosso sucessor líder espiritual não morreu de amores pelo jogo.
E porque deixou Inafune a Capcom? Segundo o próprio, a indústria das grandes editoras estagnou no Japão, onde orçamentos e equipas de desenvolvimento desmesurados não fazem necessariamente os melhores jogos, ele que diz ter desenvolvido Dead Rising (Xbox 360) com menos de dez pessoas – e a verdade é que o jogo foi um sucesso em 2006, vendendo mais de um milhão de cópias só nesse ano. Inafune quis provar que a estagnação da massa crítica japonesa nos videojogos estava – na altura, em 2010 – a prejudicar toda a indústria no seu país. Diz fazer parte de uma geração que se acomodou ao sucesso.
Koji Igarashi – empreendedor, cowboy-vampiro e Jesus Cristo japonês
A história de Koji Igarashi é um pouco diferente. Não é como se ele tivesse criado Castlevania. Aliás, aquele a quem chamam “Jesus Cristo japonês” juntou-se à Konami já a franquia tinha dez anos. Teve parte muito relevante em Symphony of the Night e acabou por adotar Castlevania como sua – tanto que a sua chefia da franquia que a Konami lhe deu coincidiu com o seu maior período de sucesso.
Igarashi, dos três criadores aqui referidos, é talvez aquele mais facilmente reconhecido como a face visível de Castlevania – esguio, cabelos escuros compridos e uma aura vampiresca, sem esquecer o chapéu de cowboy. Acontece que como qualquer artista respeitável, quis desafiar-se e reinventar-se. Se os tradicionais Castlevanias – ou como a indústria carinhosamente os apelidou, Igavanias – tiveram grande sucesso, a franquia nas suas iterações 3D não foi tão bem recebida.
Iga acabou por deixar a Konami a meio da década passada, bateu à porta de dezenas de editoras na tentativa de reviver as Igavanias – ou o género “gótico”, como o próprio o apelidou -, mas sem sucesso. Foi no Kickstarter que Igarashi conseguiu uns impressionantes 5,5 milhões de dólares, após uma curiosa video pitch gravada no Castello di Amorosa na Califórnia, e todo o apoio que precisava para o seu sucessor espiritual de Castlevania – o aclamado Bloodstained: Ritual of the Night, que mereceu as exigentes vénias do Miguel Cruz e do Rui Parreira aqui no Rubber. Bloodstained: RotN, pela mão de Igarashi, foi o mais bem sucedido dos sucessores espirituais aqui detalhados.
http://https://www.youtube.com/watch?v=KWrD0QMZc_s&ab_channel=Bloodstained%3ARitualoftheNight
Onde está afinal a sucessora espiritual da Ágata?
Epá, não faço ideia. Só gostei do gancho. Mas ela é capaz de existir. Isto dava um excelente tema para o Split-Chicken.
Não acho que valha a pena desenvolver muito aquilo que penso sobre os sucessores espirituais nos videojogos. Saliento apenas que Kaga, Inafune e Igarashi deixaram voluntariamente o conforto financeiro das grandes editoras e começaram os seus próprios projetos. Não creio que o tenham feito por serem especialmente empreendedores, antes para terem liberdade criativa sem as grilhetas do apelo comercial ou da censura corporativa.
Todos estes autores quiseram trazer a sua visão daquilo a que as suas próprias criações deveriam ser em tempos modernos, uma vez perdido o seu encanto na casa-mãe. Mas sem a propriedade intelectual.