Permitam-me começar com o mesmo cross-selling que fiz durante a apresentação do jogo Careto, da Matilde Albuquerque, um dos finalistas dos PlayStation Talents 2020. Se aí falei do documentário que me elucidou para esta maravilhosa realidade do folclore português, o filme Máscaras de Noémia Delgado, mas também falei deste jogo de tabuleiro tão português lançado pela Mebo. A coincidência de termos na mesma altura dois objectos – um jogo de tabuleiro e um videojogo – a traduzirem mecanicamente esta tradição portuguesa é um daqueles felizes acasos irrepetíveis.

Antes de mergulhar nas ideias mecânicas de Caretos, tenho de dar os parabéns ao autor, Paulo Pereira, por ir buscar outras referências do folclore nacional. É que nas nossas mãos não está o controlo dessas figuras que são hoje Património Imaterial da Humanidade, mas sim o de outros monstros tão portugueses que parecem estar a desaparecer com a modernidade. São esses monstros a Moira Encantada, a Maria Gancha ou a Alma Penada, entre outros monstros que também figuram numa grande obra literária lançada há poucos anos: o Bestiário Tradicional Português de Nuno Matos Valente e Natacha Costa Pereira. 

Como dizia, apesar dos Caretos serem as figuras-título deste jogo, e de serem elementos que não controlamos (salvo algumas excepções), cada jogador controla outras criaturas do imaginário português, com habilidades muito específicas.

A primeira sessão de jogo que tive foi apenas com o meu filho mais velho de sete anos, que rapidamente compreendeu o jogo. Apesar de ele já conhecer mecânicas assimétricas, parece-me que para quem queira encontrar um jogo acessível que introduza conceitos de assimetria, Caretos é uma excelente hipótese, ainda que o resto das mecânicas possam não ser as mais fáceis de passar para jogadores estreantes no mundo dos jogos de tabuleiro.

Cada jogador escolhe dois monstros, recebe os seus cartões explicativos dos diversos poderes e os dois standees acrílicos. Estes standees com impressão sobre a transparência do acrílico que os monstros e os caretos têm como avatares no tabuleiro são um dos elementos visuais mais interessantes e originais deste jogo. A direcção de arte, com as ilustrações de Matteo Piana, são um dos elementos que tornam este jogo apelativo, e basta-nos olhar para a caixa para que as originais ilustrações das figuras dos caretos nos captem a atenção.

Mas voltemos ao tabuleiro, e a um jogo onde o objectivo é capturar o maior número de incautos aldeões possível. A competir por essa aterrorização da noite transmontana com outros monstros e com os caretos, humanos possuídos por demónios que existem nas encruzilhadas. 

Os humanos demonstram ao longo do jogo que a força está nos números. Sempre que dois ou mais aldeões se encontram no mesmo ponto, coloca-se um símbolo de fogueira. Se um monstro (ou os caretos) se aproximarem de um grupo numa fogueira, não conseguirão apanhá-los, mas assustam-nos o suficiente para que cada um dos aldeões fujam em direcção a um dos sentidos. O nosso objectivo é conseguirmos apanhar cada um deles sozinhos na estrada e capturá-los. Ao dispersar um grupo de aldeões, temos a possibilidade de recolher o token de fogueira, que terá utilizações adicionais a posteriori.

Mas em Caretos os caçadores também são presas. Algumas das cartas que podemos jogar permitem-nos mover as peças dos caretos que estão no tabuleiro, e se os colocarmos no mesmo local onde está um monstro, este é capturado e colocado no Caldeirão. Há 3 maneiras distintas de nos libertarmos, mas só o facto de termos um dos nossos 2 monstros presos e “fora de jogo” já é limitação suficiente do nosso turno. 

É que apesar de termos dois monstros, em cada turno jogamos uma carta noite (com símbolos e cores diferentes) e temos que escolher qual dos nossos monstros vamos querer activar, cumprindo e utilizando os poderes correspondentes da cor da carta que jogámos. Já que vamos empilhando as cartas Noite em turnos subsequentes, se jogarmos duas cartas seguidas com o mesmo símbolo isso permitir-nos-á activar os 2 monstros num só turno.

Os aldeões capturados não são a única fonte de Pontos de Vitória. Pelo meio vamos cumprindo cartas de bónus (o jogador que primeiro cumprir as condições para o resolver recebe a carta), para além de uma carta de bónus final, secreta, que cada jogador obtém no início do jogo.

Depois de algumas playthroughs de Caretos é interessante de sentir a íntima ligação mecânica e temática que este jogo tem. Nada do seu game design parece deixado ao acaso: dos poderes e habilidades únicas dos monstros, que vão da capacidade da Alma Penada de ser a única criatura no jogo que consegue atravessar os caretos, à habilidade de outros monstros de se teleportarem para locais específicos do mapa. A contagem dos passos de movimento de cada “poder” de cada Monstro obriga-nos a pensar bem a nossa jogada, visto qualquer acção nossa fará mexer grupos de aldeões pelo tabuleiro, e se algum deles correr em direcção aos monstros adversários ou a caretos são capturados por eles.

Caretos não é de todo um jogo difícil de explicar, e consegue, como dizia, interligar na perfeição a temática e o game design. O investimento que a Mebo costuma trazer para os seus jogos é aqui bem visível não só nos standees transparentes que dão um excelente look ao jogo, mas também nos meeples customizados que a editora nos quis trazer.

Caretos é um bom jogo, com rejogabilidade e uma boa utilização de assimetrias. Ao contrário de outros temas que podem ficar excessivamente circunscritos a um entendimento local, apresenta o folclore português e “exporta-o”. Muitos jogadores estrangeiros (e até portugueses) que mergulhem neste Caretos vão conhecer de forma tangencial algumas criaturas interessantes, e perceber como é que um bom trabalho criativo conseguiu traduzir este folclore para o tabuleiro de jogo.