Quando um jogo é digital, ainda se julga pela capa?
Todos temos as nossas tendências, os nossos julgamentos imediatos e inconscientes. Talvez 2020 seja o ano em que isso esteve mais claro que nunca. Numa sociedade em que somos confrontados com tanta informação e tantas coisas novas todos os dias, o nosso cérebro usa estas racionalizações superficiais para nos poupar, mas é preciso fazer um esforço para as combater e saber quando ligar ou desligar o filtro. Como alguém que joga maioritariamente indies, muitas vezes encontro-me a julgar um jogo pela key art ou por uns segundos de trailer. Numa indústria gigante e com tantos jogos a sair a toda a hora, há uma tendência para a repetição de mecânicas, de conceitos, de identidade visual ou auditiva, que acaba por cansar e ativar o tal modo de cérebro macaco. O jogo de hoje é um claro exemplo de algo a não julgar pela capa.
Quando me deparei inicialmente com Neoverse da Tinogames Inc., a minha impressão foi Slay the Spire com waifus (para quem não conhece o termo, é usado dentro da comunidade anime para descrever personagens femininas atraentes). Os vídeos e a arte promocional colocavam as três protagonistas no centro da atenção, com ênfase nos seus outfits desbloqueáveis, cada um mais escandaloso do que o anterior. Quando vi um foco tão grande no fanservice fiquei logo de pé atrás, mas, recebendo uma key para análise decidi arriscar, já que tenho estado com disposição para jogar roguelites ultimamente.
Acreditar no coração das cartas
Neoverse é um roguelite deckbuilder RPG. No início de qualquer sessão de jogo, temos de escolher entre três modos: Adventure, Hunter e Challenge. Nesta review falarei de cada um, começando pelo modo Adventure. Após escolher uma de três personagens, somos confrontados com a escolha de um deck inicial de entre três arquétipos específicos a essa personagem, ou um deck diário que oferece um tipo de jogabilidade diferente destacada pelos devs. De seguida, a nossa missão é completar uma sequência de combates sucessivamente mais difíceis enquanto construímos o nosso deck e personagens. Cada personagem tem múltiplos estilos de jogabilidade à sua disposição e todas elas são extremamente diferentes, recompensando estilos de jogabilidade e maneiras de pensar diferentes.
Em cada ronda, podemos escolher um de três combates e é-nos atribuída uma missão extra para completar, de acordo com o combate escolhido. Ao completarmos essa missão, recebemos uma recompensa. Estas recompensas são cruciais para o crescimento do nosso deck e vão desde pontos de habilidade ou dinheiro, até novas cartas ou à evolução e remoção de cartas que já possuímos. Após cada combate, recebemos recompensas de acordo com o nível de dificuldade e somos confrontados com três novas escolhas, podendo desbloquear novas habilidades passivas numa skill tree ou comprar itens/cartas/pontos de habilidade numa loja.
Dentro do combate, o jogo funciona como um RPG por turnos em que as nossas acções correspondem a cada carta usada. Temos uma quantidade de mana limitada e informação sobre as acções que os inimigos vão fazer. Com essa informação, temos de usar cartas de ataque, defesa, constantes (um género de bónus passivo), ou instantâneas, para os derrotar. O sistema de combate é muito profundo, com dezenas de mecânicas que não vou enumerar, pois a análise seria demasiado extensa. Quero apenas deixar claro que a capacidade do sistema de balançar várias mecânicas simultaneamente é impressionante e os combos mais complexos são desafiantes e mas gratificantes. Há, no entanto, a adição de três mecânicas que recompensam o uso inteligente das nossas cartas e que merecem destaque. A mecânica de Combo permite-nos, ao usar cartas de diferentes tipos numa sequência específica, duplicar o valor do nosso próximo ataque. A mecânica de Precision recompensa-nos com dinheiro extra se formos capazes de eliminar os adversários com a quantidade exata de dano para anular o seu HP. Por sua vez, a mecânica Parry permite-nos atordoar um inimigo, impedindo-o de agir, ao bloquearmos a quantidade exata de dano que iríamos receber. Estas três mecânicas permitem aos jogadores mais experientes não só sobreviver, como prosperar.
O modo Adventure e a personagem Naya são as únicas opções disponíveis aos jogadores inicialmente, mas a cada run sucessiva desbloqueamos as restantes personagens e modos de jogo. Além disso, desbloqueamos a opção de jogar com condições negativas, aqui intituladas Transcended Universe, que vão até +15 e nos permitem aumentar a dificuldade das seguintes runs, acedendo a bosses secretos mais difíceis. Ao concluir uma run, podemos também utilizar troféus adquiridos no modo Adventure para comprar equipamento permanente para as nossas personagens. Este equipamento é a única maneira de progressão permanente no jogo, pois os decks construídos em cada run são específicos e limitados a essa mesma. A excepção a esta regra acontece no modo Challenge. Neste modo, podemos utilizar decks que construímos em runs anteriores do modo Adventure para enfrentar 10 níveis de bosses extremamente difíceis e ganhar muitos mais troféus, se formos suficientemente capazes.
A completar a tríade de modos, temos o modo Hunter. Neste modo, são-nos oferecidas seis escolhas de cartas e construímos o nosso deck a partir daí. Um modo draft bem familiar para quem está habituado ao género, do estilo Arena mode do Hearthstone. A partir daí, temos 20 níveis de combate sem missões extra, apenas podendo recorrer às recompensas monetárias oferecidas por cada inimigo para fazer o nosso deck mais forte.
Profundeza mecânica, escondida por uma fachada superficial
Como mencionado anteriormente, Neoverse surpreendeu-me pela positiva, talvez por causa das minhas baixas expectativas. Em mais de 30 horas ainda não tive nenhuma run parecida nem cheguei perto de desbloquear tudo o que o jogo oferece. Há uma profundidade enorme no combate e sinto que a curva de dificuldade é mais simpática do que em Slay The Spire, onde um erro mínimo na construção do deck ou nas acções tomadas muitas vezes leva ao fim de uma run. Os modos oferecidos complementam-se muito bem, havendo sempre um modo que se encaixava nos diferentes estados de espírito que senti ao longo do meu tempo com o jogo. Dito isto, existem vários pontos a melhorar. A componente narrativa do jogo é praticamente inexistente e onde existe é de fraca qualidade. Em vez de termos eventos entre os diferentes desafios, que adicionam um contexto à narrativa e criam a sensação de um mundo vivo, temos apenas as missões, que embora mecanicamente sirvam bem o seu propósito, não acrescentam nenhuma personalidade ao jogo. As animações são pouco inspiradas e repetitivas e o design dos modelos dos inimigos é pejado de tropes e bastante genérico. No entanto, se conseguirem ultrapassar estas falhas, assim como a supersexualização das três personagens principais, há muito conteúdo de qualidade a disfrutar por um preço razoável (16,79€ na Steam) ou no Gamepass. Se procuram um deckbuilder mais polido, pesquisem Monster Train. Normalmente é mais caro, mas encontra-se neste momento em promoção na Steam por 14,69€!