O dia 31 de Dezembro de 2020 irá marcar o final de vida do Flash Player em praticamente todos os browsers que usamos. A injecção letal deve adiar os seus inevitáveis efeitos até meados de Janeiro, quando o Windows fizer o mesmo e o software se torne inutilizável.
E porque querem vocês saber disto? A comunidade do Rubber pode ser madura mas gosta de estar na vanguarda da técnica, pelo que uma aplicação para a qual já quase não existe conteúdo suportado e tem problemas de segurança não interessa a ninguém. Mas essa mesma comunidade gosta dos seus jogos de sempre, uns na plataforma original, outros migrados para a modernidade, mas quando a última hipótese não é possível, devemos homenagear o moribundo Flash Player como se de um idoso se tratasse: pode já nem se lembrar de nós, precisar de nós para todo o seu quotidiano e só nos dar chatice, mas algures no tempo passámos momentos de qualidade com ele e merece o nosso respeito.
No meu caso, esses momentos de qualidade significam revisitar Lego Bionicle: Mata Nui Online Game 1 e 2.
Esta minha homenagem àquele que creio ser o maior legado do Flash Player para os videojogos requer que vos conte duas histórias: uma desinteressante, sobre mim; e outra, prefaciada pela anterior, sobre uma experiência que estes dias recordei e que até ser dada a conhecer ao mundo, valia um documentário (que de certa forma existe, e vos deixo abaixo).
Se nasceram antes dos anos 1990 e tiveram acesso a videojogos na vossa infância, provavelmente a vossa introdução não foi como a minha, através do Game Boy (que só tive em 2000), N64 e PS1 dos amigos. Mas no que toca à Internet, vivendo em Portugal, a introdução massiva da maioria de nós (especialmente longe das metrópoles) foi na viragem do milénio. Nesses tempos sentia a web como um bebé sente o solo no qual começa a caminhar, cada recanto desse mundo uma aventura fascinante. No fundo, o melhor open world que já joguei – quando a publicidade não abundava, liam-se artigos sem perder horas a folhear livros e as piadas chegavam por e-mail ou chat, em vez do Whatsapp e outras redes sociais.
Acho que foi nas piadas que conheci (sem me aperceber) o Flash. Clipes animados dos brasileiros do Charges.com a satirizar políticos, por meio de divertidas animações. A relação evoluiu para a descoberta do Miniclip, esse agora avô do free to play, com muito do conteúdo feito em Flash. E já que falamos em avós, não é através destas e de outras figuras mentoras que vamos conhecendo o mundo?
Um dos meus avós, mestre vidreiro, ensinou-me valiosas lições. Dos confins da sua oficina – a qual, como homem do seu tempo, tinha adornada com calendários de voluptuosas senhoras – pelo menos uma delas (as lições, não as senhoras) trouxe comigo para outros importantes momentos da vida:
“Óscar, como é que distingues as que têm vergonha das que não têm?“, perguntava o meu avô.
“Não sei avô. E o que é vergonha?“, perguntava eu de volta, numa idade em que essa palavra ainda não entrava no meu léxico infantil.
“Então, esta tem vergonha“, esclarecia, enquanto apontava para uma senhora de lingerie. “Já esta, não tem“, rematava, ao mesmo tempo que o indicador apontava para uma outra senhora, mas de seios e/ou derrière desnudos.

“Vamos lá forjar esses calendários…sem vergonha!”
Como um jogo representou a forma como comecei a explorar a Internet
Posso-vos garantir que não tropecei em Mata Nui Online Game a meio de uma sessão de pornografia. Mas tal como o meu avô me incutiu o gosto por seios – assim vamos conhecendo o mundo, lá está -, foi uma amiga que me apresentou já a sequela desta aventura point and click da Templar Games, que a dada altura chegou a ter escritórios no Porto (não consegui confirmar quando).
Mata Nui Online Game chegou à web em 2001 e acabou por sair dela em 2004. O projeto, sem ser a sua intenção, acabou por se tornar a mais notável obra de videojogos da coleção Bionicle da Lego, que perdura nas mentes (e nos servidores) de uma pequena mas dedicada comunidade de jogadores. Se hoje em dia videojogos da Lego nascem nas árvores, em 2001 tínhamos o Lego Rock Raiders e pouco mais.
E porque raio precisou a Lego de enveredar pelos videojogos? Hoje parece óbvio, mas no final dos anos 1990 a empresa dinamarquesa ponderou fechar portas, depois da febre Pokémon ter arrebatado uma grande parte do mercado dos brinquedos que a Lego ocupava. Pikachu e companhia começaram por ser um videojogo, mas entre desenhos animados, cartas e valentes toneladas de merchandise tornaram-se na lucrativa franquia que conhecemos hoje. Franquia – foi isto que a Lego percebeu que precisava de criar. Já existiam colecções de Star Wars desde os episódios I, II e III, mas nenhuma marca Lego nascida na empresa, que existisse por si só. Mas quando Bionicle foi lançado no mercado, estes guerreiros dos elementos (cujas bases foram lançadas por outra série menos desenvolvida, da minha predilecção, os Slizer) que viviam em Mata Nui não eram apenas brinquedos: tinham uma história, personalidades, lore, respetivas séries de animação, filmes, merchandise e até brindes no Happy Meal da McDonald’s. E claro, videojogos.

O cenário inicial, que acabou por ser a cena mais icónica de todo o jogo
Mata Nui Online Game é um jogo de aventura em point and click. Somos um Matoran – no mundo Bionicle os heróis principais são os Toa, os tipos mais baixitos são os Turaga (os anciães) ou os Matoran (o povo) – que tem de reunir os heróis das várias partes de Mata Nui, onde recolhemos alguns itens que nos permitem progredir pelo mapa, enquando enfrentamos uma ameaça à paz nesta ilha.
Quase 20 anos depois, ainda fiquei surpreendido com o bom aspecto que MNOG tem em Flash. Animações simples mas muito inteligentes, seja em sequências de acção ou mais contemplativas, criam uma natural fluidez deste mundo meio tribal, meio místico. Pese a longevidade alcançada, nada de transcendente, pois é esse o objectivo das animações. O que me deixou espantado foi o quão extenso esse mapa se revelou num jogo que se termina em pouco mais de três horas. Clicar até à próxima estrada, aldeia, montanha ou atalho, pese ser bastante rápido (reconheço que não era tanto com as velocidades de Internet da altura), conseguiu sempre deixar-me imerso na colorida e pitoresca geografia de Mata Nui – a sensação de escala é tremenda.

Com a cascata a correr, uma das mais deslumbrantes cenas de Mata Nui
Já joguei MNOG na sua versão completa, algures em 2003, mas o lançamento original foi feito em nove capítulos disponibilizados ao longo de 2001. Completo, MNOG dá-nos alguma liberdade de escolha nas nossas primeiras acções, mas na altura era bastante linear. Há até uma secção de Mata Nui que, através de um telescópio, nos permitia olhar para a evolução das estrelas e antecipar quando sairia o próximo capítulo. Com o jogo completo esta parte da ilha torna-se mecanicamente obsoleta, mas continua a encaixar-se perfeitamente no lore do jogo.

Os painéis onde após uma observação astrológica, nos davam pistas da data de lançamento e do conteúdo do capítulo seguinte
Este desfasamento das várias partes do jogo acabaria por influenciar a história contada até ao final. Quando foi lançado em Janeiro de 2001, MNOG foi pensado apenas como aperitivo para o grande título Bionicle (Lego Bionicle: The Legend of Mata Nui) que existiria a partir de Setembro, para PC e Gamecube, com um orçamento AAA e foco no ganha-pão da franquia, a aventura dos guerreiros Toa. Com o cancelamento a acontecer em Outubro, a equipa da Templar Games, ainda em processo de finalizar os três últimos capítulos, tinha a oportunidade de criar uma história mais impactante já que nada mais havia de videojogos Bionicle para saciar a comunidade.
Esta oportunidade foi acentuada pela tragédia do 11 de Setembro: os estúdios da Templar em Nova Iorque eram relativamente próximos do World Trade Center e a equipa admitiu que a nova visão do mundo que sucedeu aos atentados influenciou a escrita daí para a frente. Com algum crunch à mistura, o arco narrativo ficou gradualmente mais sombrio e o conflito de Mata Nui, que já se adivinhava, adquiriu contornos mais ambíguos. Makuta, inicialmente pensado como vilão (não nos esqueçamos que Bionicle tinha um público juvenil como alvo e ambiguidade é um tema complicado de explicar aos mais novos), foi promovido a antagonista, por meio das dicotomias da Criação e Destruição como forças motrizes de Mata Nui, em equilíbrio, em vez do clássico Bem e Mal. O que estava previsto ser o triunfo dos guerreiros Toa, visto dos bastidores pelo nosso personagem Matoran, passou a ser este último a salvar os primeiros da desgraça, com a ajuda de outros heróis improváveis, descritos não como os braços direitos dos chefes de cada aldeia, os Turaga, mas como os braços esquerdos, tal não eram as poucas expectativas que existiam para eles.

Faz-se Mata Nui de uma ponta à outra em 3 minutos, mas mesmo assim há um mapa para fast travel
Em paralelo com a jornada instrospectiva de Mata Nui, a Templar até soube deixar umas tiradas bem dispostas a cada personagem, ou alguns easter eggs contemporâneos como o Turaga que nos diz “vai e cria uma Irmandade!“. Tinham ainda o desafio de contar a história deste conflito sem depender da violência, por indicação expressa da Lego, que quis continuar a manter a sua imagem de marca familiar. Não importa que os Bionicle tenham espadas flamejantes ou lanças afiadas – vamos dizer que eles têm ferramentas, que são parte integrante de cada indivíduo, disse a Lego. Este pacto de não agressão é visível nas animações mais discretas, por vezes esquivas, em que está meramente implícito o que se está a passar.

Uma incrível sensação de escala
Deixemos o Flash Player morrer, mas não as suas memórias
E no meio de tudo isto, como me foi possível jogar MNOG nos dias de hoje, estando descontinuado desde 2004? Graças ao BioMedia Project, todo o acervo de multimédia Bionicle descontinuados foi disponibilizado online, numa iniciativa louvável de preservação por parte da comunidade. Até o cancelado Lego Bionicle: The Legend of Mata Nui, teve direito a uma build jogável que pode ser aqui descarregada. Como a Lego já não comercializa a maioria do material, imagino que nunca tenha sentido necessidade de defender a sua propriedade intelectual por via judicial (a franquia como um todo foi descontinuada em 2010, tendo apenas um esporádico regresso em 2015 e 2016). Se hoje ninguém questiona a dimensão da Lego não só nos brinquedos mas no entretenimento no geral, é inegável a influência que Bionicle teve nas bases deste sucesso.

O Toa Lewa e sua máscara dourada a antecipar os LEnGOtes de ouro
Por ora, não sei o que acontecerá às versões de MNOG e MNOG2 que ainda é possível jogar online ou descarregar no BioMedia Project. Se as versões online deixarão de ser executáveis pelos browsers que utilizamos, as versões desktop poderão necessitar de uma adaptação para outra aplicação contemporânea. Pela estética muito actual do jogo e a sua vertente contemplativa, senti-me estes dias a percorrer os corredores de um museu de Flash, enquanto saboreei cada pintura.
A Adobe anunciou o fim de vida do Flash Player, entre outros dos motivos que já citei, para dar lugar a “tecnologias de uso mais eficiente de energia“. Isto obriga-me a colocar em paralelo a realidade agridoce de transitarmos de uma frota automóvel movida a combustíveis fósseis para uma outra mais sustentável para o planeta. Mas então e aquelas banheiras americanas que bebem 30L/100km? Não teremos um uso responsável desses pedaços de história e nostalgia para muita gente? O Flash Player é praticamente inexistente na web dos nossos dias e ninguém vai sentir falta dele, desde que as memórias que nos proporcionou estejam disponíveis noutra qualquer plataforma. Também ninguém ama a gasolina em si (se bem que aquele aroma…), mas as experiências que ela proporcionou ao mundo ninguém quer perder.

Num museu da história dos videojogos, era bom que MNOG fosse relembrado em nome de todos os títulos que corriam em Flash