How Long have I been Here?
Como apreciador de e pessoa que escreve sobre videojogos, existe sempre uma dualidade interior presente quando jogo. De um lado temos o Nuno, que joga para se divertir, para aprender, pensar e contactar com novas perspectivas. Do outro está o crítico que tenta atribuir um valor objectivo a um bem transacionável e defender esse valor com base em argumentos quantificáveis. Na minha opinião, a magia da escrita de uma análise encontra-se, entre muitas outras coisas, na maneira como se equilibra o peso destas duas facetas no valor final atribuído. Num meio tão pejado de nuance e subjectivismo, os aspectos mecânicos e artísticos misturam-se tão imperscrutavelmente, que é muito difícil extrapolar dos nossos sentimentos uma ideia clara e exata do que contribui, positiva ou negativamente, para a experiência final.
Alguns jogos surgem como exemplo perfeito de uma experiência divertida, baseada na mestria de mecânicas, apresentando um contexto audiovisual e narrativo secundário que serve apenas como cenário para atrair e reter jogadores menos dados a tal experiência. Outros centram o peso do seu valor na exploração de temas ou estéticas, procurando fixar o jogador no destrinçar do significado de um desenlace narrativo, ou no apreciar da execução perfeita de um certo estilo. Há até, muito raramente, jogos que procuram oferecer a melhor experiência a todos os níveis anteriormente mencionados, interligando-os e fortalecendo-os numa relação simbiótica. A maneira como o jogo se apresenta (o seu foco e objectivo) é em si mesma mais um contexto que, como jogador/crítico, posso ou não utilizar como escudo da minha preferência pessoal. Isto é particularmente importante em jogos que utilizam mecânicas que num contexto seriam consideradas negativas, de maneira a intensificar as emoções do jogador e melhorar a experiência final (Death Stranding, QWOP).
O jogo do qual vou falar hoje é um exemplo perfeito dum desequilíbrio entre os dois Nunos e causou muita discussão interna e dúvidas, por isso peço-vos que perdoem qualquer hipocrisia ou desconexão aparente com a racionalidade e objectividade com que costumo escrever.
It never ends.
Dusky Rivers é uma pequena cidade no meio da natureza. A economia gira à volta da serração local, estando todos os serviços ou lojas existentes dependentes dos trabalhadores da mesma para sobreviver. Existe uma verdadeira sensação de comunidade nesta representação idílica do interior americano. Tudo isto seria verdade, não fosse pelo facto de obeliscos multicoloridos de estática televisiva terem aparecido de repente. Com eles, uma doença começou a instaurar-se lentamente nos habitantes. Uma corrupção, uma apatia, uma fixação pela estática que leva a que, eventualmente, os residentes comecem a ser atraídos e consumidos pelos obeliscos. Quando Sarah desaparece num destes obeliscos, Bree, a sua irmã, decide resolver o mistério do que está a acontecer em Dusky Rivers. Ao tocar num dos curiosos monólitos, Bree começa a ver através da perspectiva de Sarah, que parece estar num mundo alternativo surreal. É este cenário que Boreal Tenebrae nos apresenta muito brevemente na sua introdução.
The conveyor belt towards infinity.
Boreal Tenebrae é um thriller/jogo de aventura na terceira pessoa, esteticamente muito parecido com Resident Evil ou Silent Hill. A maior parte do jogo é uma caça a itens espalhados pelo cenário para progredir a história, com algumas secções de perseguição e puzzles. O jogo processa-se inteiramente em perspectiva fixa, funcionando muito bem com a atmosfera arrepiante apresentada. O uso de FMVs pixelizados também é particularmente agradável, com animações de qualidade e uma estética única que encaixa perfeitamente no tema de tecnologia velha e estática. Os modelos das personagens têm formas muito orgânicas e deformáveis, o que resulta em personagens muito estilizadas e expressivas.
O loop de gameplay é bastante básico: Encontramos uma nova área, falamos com os NPC presentes, somos confrontados com uma cinemática e/ou um puzzle e temos de explorar o cenário para encontrar a solução. Por sua vez, esta solução permite-nos progredir na área ou encontrar discos, que desbloqueiam novas áreas e nos permitem “vestir a pele” de diferentes personagens. Para introduzir alguma variedade, podemos utilizar uma câmara fotográfica para visualizar o nosso ambiente em primeira pessoa e procurar glifos ou cassetes. Estes itens opcionais desbloqueiam cutscenes ou clipes de áudio que enriquecem a história, contextualizando relações ou eventos do passado. Os discos e cassetes são utilizados na casa de Bree, onde também podemos obter pistas acerca do nosso objectivo seguinte ao falar com o seu pai. Os glifos podem ser usados no mundo alternativo de Sarah.
Day In. Day Out.
O ponto forte de Boreal Tenebrae não é a jogabilidade, principalmente porque o jogo não é extremamente polido. Eu literalmente passei o tutorial à frente porque carreguei numa tecla qualquer demasiado rápido. Os menus são difíceis de ler e os controlos nem sempre funcionam como esperado. Existem momentos no meio de sequências nas quais fiz aparecer um menu sem saber bem como e quase crashei o jogo. Quando a câmara muda de perspectiva, os nossos controlos não acompanham esta mudança, levando ao tradicional “vai-não-vai” em que nos encontramos a sair e entrar no mesmo ecrã várias vezes. Os limites físicos de colisão também não são os melhores, tendo saído da área de jogo pretendida por mais de uma vez. Algumas músicas e sequências têm o volume elevado, enquanto outras são inaudíveis. A estrutura não linear do jogo obriga-nos a andar de uma área para a outra repetidamente e, embora o jogo nos dê ferramentas para o fazer, os tempos de espera e as várias tentativas falhadas de descobrir o que fazer a seguir começam a cansar. Tudo isto é exacerbado pela falta de um mapa, ou uma maneira de saber que áreas estão interligadas.
A atmosfera incrível de Boreal Tenebrae (da qual vou falar a seguir) é manchada por um jogo sem dificuldade ou risco, não havendo grandes probabilidades de ocorrer único game over em todo o tempo de jogo. Os puzzles existentes são básicos e imediatos assim que recebemos a pista ou eureka necessária para os transpor. Pior do que isto, Boreal Tenebrae ainda não está terminado, sendo nos oferecido um to be continued ao fim de aproximadamente três horas, quando parecíamos estar a atingir um clímax na história.
Depois deste parágrafo, não censuro quem pense: “Onde está a dúvida?? O jogo parece ser frustrante e repetitivo!” e de facto é. No entanto, o que o jogo oferece em termos de temas e atmosfera mais do que compensa todos estes problemas. Comecemos então pela atmosfera.
I Give them Everything.
Nos momentos iniciais do jogo, percebemos que temos algo especial nas mãos. Aliás, quando vi os clips publicitários deste jogo na Steam, fiquei logo interessado. A palete dessaturada da realidade contrasta com as cores fortes e sombras carregadas da realidade alternativa. Os ângulos fixos foram escolhidos a dedo, havendo cenas que possuem a qualidade cinematográfica de um Blade Runner 2049. A banda sonora é adequadamente pesada e alienígena, criando sempre um ligeiro desconforto no jogador. A estética da estática funciona não só no nosso subconsciente (não foi Poltergeist que tornou white noise numa coisa arrepiante), mas também tematicamente, pois a cidade de Dusky Rivers encontra-se estática, parada, numa apatia constante. O mundo de Boreal Tenebrae exsuda uma sensação de velhice, de decaimento, de algo que já passou o seu ponto alto, mas que se tenta agarrar à relevância. O uso de tecnologia antiga como cassetes e DVDs amplifica esta ideia de Dusky Rivers estar gasta, para lá do prazo de validade. Os constantes anacronismos e mudanças de perspectiva criam uma sensação de desconexão com a realidade, como se estivéssemos num episódio de Twilight Zone ou numa produção de David Lynch. Este jogo é ESTRANHO. Parece que estamos a ver um acontecimento de fora para dentro e que a realidade foi quebrada em mil pedaços, sendo refeita pela nossa participação na história. O estilo do jogo faz muito com pouco, tanto usando o detalhe e densidade dos cenários para oferecer narrativa contextual como recorrendo ao uso de espaço negativo para fomentar a imaginação e medos do jogador. O diálogo é intencionalmente vago, mas frequentemente acutilante, desenvolvendo múltiplos fios narrativos e temas simultaneamente. A verdadeira narrativa esconde-se atrás de metáforas e alusões enigmáticas ao passado de Dusky Rivers, o que alicia o jogador a destrinçar as pistas escondidas em cada cenário ou NPC.
How long will I work here?
No que toca à exploração temática, Boreal Tenebrae aproveita o facto de ser um jogo de terror sobrenatural para criar um truque de prestidigitação fascinante: Ele faz-nos esperar horrores irreais que nos assombram e correm atrás de nós, mas apresenta-nos horrores muito mais reais e sub-reptícios que se escondem nas suas personagens e na maneira como lidam com a realidade circundante. Para isto, recorre ao uso de múltiplas perspectivas. Cada disco que colecionamos permite a Bree “viver” uma experiência de outra pessoa na cidade. Isto permite ao jogador observar a crise através de diferentes olhos, com diferentes valores e prioridades. É por esta razão que este jogo me cativou tanto. Para uma experiência de 2-4 horas, Boreal Tenebrae explora temas muito diversos de uma maneira surpreendentemente impactante. Vou falar mais em detalhe da parte da história que mais mexeu comigo, para tentar ilustrar o que quero dizer.
I collect from the Mill.
Através de Nicole e Sam, duas trabalhadores da serração, vivemos a destruição da economia e o seu impacto na sociedade. Desde que os monólitos apareceram, qualquer tentativa de sair da cidade é frustrada, acabando os fugitivos por voltar exatamente a onde partiram, sem saber porquê ou como. As exportações da serração pararam e sem elas, a serração ameaça fechar. Os donos da serração, vendo as dívidas a aumentar, fingem que está tudo bem, enquanto procuram uma maneira de sair da cidade. No meio da confusão, Sam tenta organizar os trabalhadores num sindicato, de forma a pressionar os chefes a fazer alguma coisa. Enquanto isto, os patrões procuram virar os trabalhadores uns contra os outros, ameaçando despedimentos e difamando Sam. Tudo isto culmina num “acidente” no qual Sam acaba por morrer. Vemos tudo isto transparecer através dos olhos de Nicole, uma colega de Sam reticente em juntar-se a ela por medo de represálias.
A forma como toda esta narrativa se desenrola não é a mesma que apresento aqui, mas sim cheia de anacronismos, saltando para a frente e para trás, em travessias por mundos alternativos, nos quais o simbolismo é extremamente claro. Se a serração “normal” é um local de trabalho como qualquer outro, a versão “escura” está cheia de corpos, alguns arrastando-se na nossa direcção, outros enforcados. As fundações da serração assentam literalmente em cima de uma montanha de corpos de trabalhadores. Por mais assustadoras que sejam estas imagens, começamos a perceber que o verdadeiro horror se encontra na realidade normal e na forma como nos desumanizamos uns aos outros. Quando o instinto de sobrevivência aperta, o outro passa a ser apenas um número ou uma ferramenta para usarmos e descartarmos. A empatia fica em segundo plano e o arrependimento e medo transformam-se em raiva e violência.
They collect from me.
Num dos pontos mais altos desta história, visitamos a caravana onde Nicole vive. Quando este momento ocorreu, tive um aperto na garganta e tive de lutar contra as lágrimas que teimavam em picar os olhos. Aqui nos apercebemos da razão por que Nicole não se juntou imediatamente a Sam. Numa pequena roulotte vivem quatro pessoas: Nicole, o seu irmão mais novo, o seu namorado, e o seu tio. O tio de Nicole encontra-se ligado a um ventilador e com mobilidade limitada, tendo contraído uma doença respiratória grave devido ao seu trabalho na serração. O namorado de Nicole perdeu o trabalho e dirige a sua raiva a todos os que vivem com ele. O irmão de Nicole é demasiado novo para trabalhar. Sendo assim, o peso de tomar conta de todos cai sobre Nicole, que trabalha todos os dias em condições precárias e volta para uma casa minúscula na qual tem de lidar com a frustração do namorado e com a presença do tio, uma lembrança constante do que lhe pode acontecer. Boreal Tenebrae está cheio destes pequenos detalhes e usa perfeitamente o “bait and switch” de criar tensão com a sua atmosfera supernatural, para nos desferir de seguida um soco nos rins com o verdadeiro horror do quotidiano humano. Não vou estragar mais nenhuma das suas múltiplas perspectivas. Deixo-vos apenas com a ideia de que este tema tão atual, da exploração da classe social, dos efeitos da precariedade e do capitalismo desenfreado, é apenas um de vários temas nos quais Boreal Tenebrae se lança com efeitos devastadores.
The Belt Grinds On.
Espero agora que percebam porque me foi tão difícil escrever esta análise. Se por um lado, BT é frustrante, lento, cheio de fricção e pouca inovação ou surpresa mecânica, por outro é uma exploração fresca de um mundo interessante e profundo. As personagens de BT são tridimensionais e dotadas de uma humanidade profunda, para o melhor ou pior. O jogo usa a violência e o medo com tacto e cuidado, nos momentos e na dose adequada. Para além disso, aborda temas incomuns no nosso meio e, em cerca de 3 horas, oferece uma experiência estranhamente profunda. É um jogo que, a meu ver, merece ser experienciado pela maneira como apresenta e desenvolve as suas ideias. Posso estar redondamente enganado e ter sido apanhado num remoinho de conflitos internos que exacerbou o valor e qualidade deste jogo, até porque a situação atual do mundo reflete de várias maneiras a realidade retratada no jogo. No entanto, acho que me equipei bem o suficiente e esgrimi adequadamente os argumentos que consegui juntar. Na minha opinião não perdem nada ao gastar uns míseros 2,39€ e passar um serão com Boreal Tales, mesmo que o jogo ainda não esteja concluído. Algo tão cativante e diferente merece todo o apoio possível.