Ontem, enquanto tentava pela quarta vez recomeçar a campanha de Cartel Tycoon, conversava com um amigo no Discord. As frases que lhe ia dizendo enquanto jogava este jogo que irá chegar ao Steam Early Access no final desta semana, se descontextualizadas, eram criminalmente perigosas. Deixo o aviso público aos agentes do SIS ou mesmo da NSA que monitorizem as minhas chamadas online: eu estava a jogar a um jogo de gestão de cartel sul-americano dos anos 1990. Nunca experimentei estupefacientes (nem sequer erva) a menos que consideremos a valente bujarda de açúcar daquela tarde em 1999 em que comi 5 bombocas de seguida.

Eu percebo que fora do contexto frases como: “já consigo produzir cocaína”, “estou com um bom fluxo de lavagem de dinheiro” e “o Presidente da Câmara quer 50k para me deixar traficar na cidade dele” soam mal, mas eu tenho provas como estava a jogar um videojogo indie. Depois de ver Narcos e o spinoff, acreditem que se há negócio que eu não me meteria era nesse. Isso e a vender cerveja em festivais e concertos com aquelas mochilas às costas, a servir os clientes com uma mangueira e a contar o dinheiro com uma lanterna.

Pela 14ª vez este ano: eu adoro tycoons. Cartel Tycoon tem tudo para eu gostar dele, mas não o estou a adorar. Há um longo caminho de possibilidade de correcção de todas as falhas deste jogo até ao seu lançamento final. Que eu espero sinceramente que seja percorrido.

A qualidade de produção de Cartel Tycoon é tremendo. As ilustrações que acompanham o jogo relembram o melhor que a direcção de arte dos GTA, e é impossível não traçar paralelos entre os dois títulos.

O tutorial, incluído no próprio modo de campanha, permite-nos compreender os elementos únicos deste jogo, ainda que seja demasiado restritivo. Nas minhas quatro tentativas, três foram infrutíferas e enterrei o meu império pouco depois de ele tentar levantar voo, ao construir mais do que o próprio tutorial pedia.

Há muitos elementos da fórmula dos tycoon neste jogo, e outras adições que só funcionam com esta temática. A obrigatoriedade de termos caminhos a unir todos os edifícios faz sentido, e ainda existe a adição mecânica dos nossos tenentes do cartel conseguirem atravessar as estradas internas destes espaços. 

Em Cartel Tycoon existem dois tipos de dinheiro diferentes: o sujo, proveniente da venda de droga, e o dinheiro legal, proveniente da lavagem de dinheiro. Podemos pagar o funcionamento diário dos nossos edifícios e tenentes com dinheiro sujo ou branqueado, mas acarretam mecânicas distintas. No caso do dinheiro sujo, mais fácil de obter, ele tem que ser entregue directamente, seja pelos veículos automáticos a edifícios que estejam no raio de acção da nossa residência-quartel-general, ou entregue pelos nossos tenentes. No caso do dinheiro legal, bem mais difícil de obter, o pagamento é automático.

Esse é, aliás, o grande problema de Cartel Tycoon. Dependemos em excesso de fazer microgestão de todos os sistemas com os nossos tenentes. De andar a recrutá-los, acarretar os custos associados, e colocá-los a fazer sistemas pendulares de ir buscar dinheiro, droga, ou outros e devolver a pontos específicos. Ou colocá-los estacionários a protegerem alguns edifícios importantes, como aeródromos (onde podemos exportar droga no seu estado puro), ou portos (onde temos de vender droga dissimulada noutros produtos, como vegetais e café).

Para além desta microgestão excessiva que torna o acto de controlar a extensão do mapa uma verdadeira dor de cabeça, temos muito mais com que nos preocupar. Seja a gestão e negociação com os autarcas das cidades envolventes, de responder-lhes a quests, satisfazer-lhes as vontades e untar-lhes as mãos, para que possamos operar na sua cidade sem termos de pagar um dízimo. E lá construir edifícios legítimos, como empresas de táxis, casinos, circos, joalharias, igrejas, que sirvam para branquear o nosso dinheiro e para aumentar a lealdade da população para connosco.

Paralelamente a isto, a barra de terror, pelas nossas acções contra outros carteis: quando lhes roubamos território e os assassinamos. Essa barra do terror vai-se enchendo e ganhando estrelas, que equivalem, em linguagem GTAesca, ao nível de poder das organizações que nos perseguem. 

O que começa com polícia local, evolui para a DEA, que faz raids aos nossos edifícios e nos baixa a rentabilidade da droga, até um momento mais à frente, em que as últimas estrelas trazem o exército nacional e a CIA para a nossa porta.

O sistema de conquista de espaços funciona por oposição de valores. Os nossos tenentes têm valores de Poder associados, e se os enviarmos para um espaço inimigo começa um tug-of-war com as forças presentes. Se os valores estiverem empatados, a barra de conquista não mexe. Se a força invasora for superior, a barra vai-se enchendo dessa cor até ficarmos com a posse desse edifício. No caso de um tenente inimigo estar presente nesse espaço a defendê-lo, e se a sua facção perder esse braço-de-ferro, o personagem é assassinado. O mesmo se aplica aos nossos.

Numa das minha playthroughs, depois de ter avançado bastante, vi uma das muitas notificações no ecrã (tantas que muitas vezes perdemos-lhe a importância) a avisar de uma tentativa de conquista de um dos meus armazéns. Num braço-de-ferro de 16 contra 1 dos meus, a CIA simplesmente destruiu um dos meus armazéns. Nada que me chateasse, visto que a minha barra de terror estava evoluída o suficiente para me apresentar perigos como este, mas o problema para um jogo que nos obriga a tanta macrogestão, sob risco de dinheiro e recursos ficarem parados onde não devem, é o de não conseguirmos dar atenção simultânea a todo o mapa.

Se Cartel Tycoon poderia fazer algo para voltar aos trilhos do excelente tycoon que poderá vir a ser, é o de repensar os seus automatismos e de diminuir a necessidade extrema de microgestão a que nos obriga. E o de tornar os avisos mais evidentes, mais claros e menos monótonos. Bem sabemos que a derrocada de todos os impérios foi o momento em que estenderam demasiado, mas ainda assim acredito que há maneira de podermos traçar um tycoon/city builder como tantos outros, permitindo que a boa construção de sistema automatize o processo e nos permita crescer. Em Cartel Tycoon somos um Pablo Escobar que ainda anda a controlar cada um dos seus subalternos a dizer-lhes para fazerem tarefas perfeitamente servis. 

Quero acreditar que para a qualidade visual de Cartel Tycoon, que as mecânicas, complexas, e outras tantas inovadoras, acompanharão. Mas reduza-se a microgestão. Esse já foi um passo ultrapassado no género há mais de 15 anos. Será que os membros do estúdio Moon Moose o sabem?