Vou já tirar o elefante da sala: tenho grande problemas com jogos legacy. Para quem não sabe, jogos de tabuleiro legacy são jogos aqueles cujos autores desenharam para serem experienciados uma e apenas uma vez, onde as acções e decisões dos jogadores vão alterar física e definitivamente o tabuleiro.
Apesar de ser uma ideia interessante, de base é algo que mexe com o meu transtorno obsessivo-compulsivo. A forma proteccionista como olho para as coisas que tenho – que vem da infância, numa altura onde o pouco que tinha era estimado ao máximo – se estende aos meus jogos de tabuleiro. Estamos a falar de um hábito que tenho de nenhum jogo poder ser jogado até todas as cartas estarem devidamente sleeved, e de ser agressivamente cuidadoso com a forma como as pessoas jogam os meus jogos (e os dos outros). Ainda há cerca de 2 anos a minha obsessão-compulsão fez-me dar uma espécie de sermão a um jogador por estar a jogar com um copo de Coca-Cola sobre o tabuleiro de um jogo… que era seu.
Portanto a ideia de alterar um jogo, seja a colar-lhe autocolantes, a rasgar componentes ou a escrever neles, é algo perfeitamente proibitivo para mim. Desse pensamento até à pesquisa e desenvolvimento de formas de poder jogar o jogo sem o alterar definitivamente, vai um ápice.
Muita gente dir-me-á: mas porque é que hás de querer jogar um jogo legacy sem ser da forma como os criadores o definiram? A minha resposta é simples: depois de jogar diversos capítulos de Charterstone fiquei com a impressão que é daqueles que vou rejogar com grupos diferentes ao longo da minha vida. E ter de comprar Recharge Packs para o poder fazer sucessivas vezes é algo que já torna o jogo ainda mais caro do que é.
No caso de Charterstone os autores pensaram-no em 2 momentos distintos: no primeiro, onde o tabuleiro vai sendo construindo a partir das nossas decisões. Após terminada a storyline e a nossa playthrough o jogo deverá ser jogado de forma estática a partir dos elementos que lá estão colocados, como se tivesse sido adquirido com aquela configuração. Um caso de um jogo que pode ter duas vidas distintas.
Mas falemos do porquê de se ter tornado o jogo que eu anseio pelo fim-de-semana para poder jogar. Quando abrimos o gigantesco tabuleiro de Charterstone, vemos um mundo por construir. Um grande prado verde com uma pequena povoação no centro, cercado por subtis hexágonos que preenchem o restante do tabuleiro.
Cada jogador vai escolher um colono diferente, sendo que todos eles são a versão mais básica de colono que temos, com iguais capacidades entre si (em capítulos seguintes podemos assumir personagens com poderes passivos avançados para nos representarem). A diferença em relação a cada colono, é que cada um ocupa uma secção diferente do tabuleiro e recebe cartas de construção únicas. Isto definirá a apetência natural das construções ao qual teremos acesso: da pastorícia à agricultura, passando pela extracção de minério e pela padaria.
Sendo um worker placement game perfeitamente aberto, este direcionamento prévio de regiões e tipos de construção pouco dizem em relação ao que temos acesso. É que em Charterstone em cada turno podemos colocar um dos nossos colonos disponíveis em qualquer espaço que esteja vazio, seja nosso, os nativos do tabuleiro, ou os de outro jogador.
Charterstone tem disponíveis centenas de cartas numeradas, e é com elas que a história e as mecânicas vão sendo reveladas. Mas a grande particularidade destas cartas, especialmente as de construção, é que elas são bem mais do que parecem.
Tomemos como exemplo uma das cartas de edifícios de construção que recebemos quando começamos o jogo. No topo da carta tem o seu custo de construção, e dos lados o o que pagamos para o activar. O centro da carta é na realidade um autocolante hexagonal que deveremos colocar no tabuleiro, configurando em definitivo este edifício no tabuleiro.
A minha solução para contrariar esta ideia mas mantendo a mecânica base foi morosa mas resultou. Colei todos os hexágonos numa cartolina A2, e recortei-os todos de forma a tornar um token o que era outrora um autocolante.
Depois de construirmos o edifício, e de termos acesso aos seus meios de produção/transformação/conversão, ficamos com a carta à nossa frente, com o hexágono retirado. É que a utilidade desta carta não se ficou por aqui. Temos ainda a possibilidade de construir a charterstone correspondente à carta, que por sua vez irá indicar-nos, a partir da tabela, leia a carta x, retire as cartas y a z para si. Normalmente esta sequência de novas cartas que vamos buscar a partir da construção da charterstone de um edifício construído vai mostrando versões evoluídas e avançadas dos sistemas de produção base que temos. A civilização que possuo trabalha a extracção de minério, e os edifícios mais avançados já me conferem acesso a materiais que não existiam antes.
Algo interessante deste sistema de evolução da sociedade e da tecnologia, é que é através da construção e desbloqueamento das charterstones que vamos desbloqueando novas mecânicas. No nosso caso já desbloqueámos algumas que não vamos referir para não incorrermos sem spoilers, visto que cada playthrough vai ser única: é possível que venham a existir mecânicas que nunca conheceremos em toda a nossa jornada neste mundo.
Não é só o mundo que evolui, as mecânicas também. Esta é uma ideia brilhante, num jogo onde os turnos são simples, mas que tanto o jogo mas também o mundo que estamos a construir vão avançando à medida que avançamos na história.
Charterstone está dividido em capítulos, que são descritos nas cartas que o jogo nos manda retirar e ler. Estas cartas que explicam o capítulo definem as condições que servirão de gatilho para avançarmos para o próximo capítulo.
Neste sistema de incógnitas e de momentos que poderão ser spoilers, a partir do 3º capítulo as cartas que definem quando é que devemos passar ao próximo bloco de história têm um rectângulo prateado que deve ser raspado quando chegar o momento certo. Depois de raspado revelar-nos-á opções, que deverão ser escolhidas pelo jogador que, segundo as condições de vitória do capítulo, o venceu. É aqui que a história se vai ramificando, e mais um elemento que vai tornar cada playthrough única: o caminho escolhido vai, ao estilo de Fighting Fantasy, levar-nos por caminhos diferentes.
A direcção de arte de Charterstone quebra com quase tudo o que a Stonemaier costuma fazer: com os edifícios e os personagens a lembrarem a abordagem de um strategy game para mobile, resultando em ilustrações muito mais familiares e “fofas”.
Ainda estou longe de terminar Charterstone, mas por tudo o que já joguei é indiscutível que o mundo que vamos construindo, capítulo após capítulo, o tornam num jogo verdadeiramente único. A curiosidade de saber mais, para onde a história e a nossa colónia irão. Charterstone é brilhante, para fãs de legacy e mesmo para aqueles como eu que vão sempre procurar forma de tornar as alterações menos definitivas.