Ainda me lembro de quando eras a miúda mais Tajiri da escola.

Toda a gente andava de roda de ti. Vinte miúdos de roda de um Game Boy, ou cada um com o seu. Ou com os dedos todos sujos de batatas fritas a besuntar-te as cartas. Ou aos sábados de manhã em frente à TV. No meu caso, tinha-te emprestada dos meus amigos enquanto não me deixaram comprar-te – sabias bem na mesma. Eras tão fixe, que até miúdas mais populares do que tu (estou a olhar para ti, Zelda) arranjaram versões gémeas.

Lá arranjei os sete contos para começarmos a nossa relação. Bem sei que isto te faz parecer vulgar, quando na verdade eras precisamente o oposto: diferente. Enquanto foste Vermelha, Azul, Amarela, Dourada, Prateada e de Cristal, deste-te a todos, mas sem perderes a tua aura de mistério. “Mostro-te o Mew se me mostrares o teu“; “Se andares comigo para trás e para a frente, dou-te Rare Candies até ficares contente“; “Pensavas que já tinhas os crachás todos? Anda comigo ver este segundo continente então“. Tínhamos uma bonita relação: tanto inocente como indecente, não havia pilha que nos separasse.

Eu em 2000 a pegar num jogo de Pokémon

É por isso que me custou imenso admitir que chegámos a este ponto.

A rebeldia da adolescência tornou a nossa relação abusiva. Ficaste demasiado disponível, então pirateei-te até mais não. As tuas eras de Rubi, Safira e Esmeralda deram asas aos teus sonhos, ficaste mais selectiva com os teus amigos e deixaste 250 deles presos no passado. Ah, mas eu não queria saber: tinha-te de borla, devorava-te a correr. Tinhas quase tudo o que de bom conhecia em ti até então, mas a tua experiência era mais refinada, quer na aventura, quer no colecionismo.

Foi perto do final dos meus anos formativos que achei por bem oficializarmos a nossa relação. Sim, não me deste grande escolha na parte da emulação, mas ainda bem que arranjei uma Nintendo DS para nós. Só não te dei um lar à altura, que routers e Wi-Fi ainda não eram uma coisa que se arranjava de qualquer maneira. O facto de já não ter amigos a jogar-te deixaria de ser um problema, com todo o mundo ao nosso alcance.

Se vou ser sincero, foi a primeira vez que experienciei alguma decepção contigo. Esmeralda havia sido a minha versão predilecta tua, Diamante e Pérola eram menos interessantes. Mas aqui ainda havia algo de honesto em ti, e Platina superou as minhas expectativas. Eis uma aventura em que o teu mapa foi melhorado, o post-game era exatamente aquilo que na altura deveria ser e até passaste a ter um lore transversalmente ligado à franquia, com Pokémons não só lendários mas também míticos, e os seus fantásticos eventos em Mystery Gift, onde me fazias ir à procura das tuas criaturas, sem mas dares de bandeja.

Caramba, com a geração Preto e Branco mostraste-me ironicamente o quão nuanceados eram os teus tons de cinzento: fizeste-me gostar dos teus novos Pokémons à força, deixando os antigos para o final da história, abandonaste a tua inocência narrativa com temas mais pesados, quebraste a tradição de terceiro jogo, e toma lá uma sequela directa, na mesma geração. Não ias com a carneirada.

Foi aqui, Pokémon, aqui! À medida que estas linhas escorrem ao longo dos meus dedos mais trémulos, não te esqueças deste momento. Foi o momento em que eu soube finalmente que te amava. E como te mostrei eu esse amor? Com a carteira, pois então. Com o meu primeiro ordenado, em 2012, a primeira aquisição foi a tua White 2. Com o meu tempo, dediquei-me por fim a completar o teu Pokédex, todos os 649 que existiam.

É também por isto que me custa imenso admitir que chegámos a este ponto.

Antes de mais, odeio que tenhas ficado burguesa. X e Y até foram boas versões da tua vida, mas a que custo? Acabaram-se os sonhos de teres uma dificuldade. Acabaram-se pequenos detalhes práticos. Qualquer ambição que tu tivesses para contar uma história, esvanecera-se. E ao mesmo tempo, reinventaste tanta coisa: online, offline, Mega Evolução. Ha, quando penso nesta última, como me andaste a atirar areia para os olhos. Devia ter percebido fizeste o teu ménage com Xerneas e Yveltal mas deixaste o Zygarde pendurado à espera da sua versão – a miúda que conheci na escola não faria isto a ninguém. Ao mesmo tempo, certas infantilidades mascaradas de nostalgia deviam-me ter deixado sob alerta.

Sábios os que afirmam que o amor cega. “É Poké-season!” dizia eu aos meus amigos pouco antes de cada Natal. “Tu tens TODOS os Pokémon? És mesmo um Mestre Pokémon?“, dizia-me outro, com um toque de admiração. Quis levar a nossa relação até outro patamar, nem o flagelo do desemprego me afastou de ti: já os tinha colecionado a todos, só não te tinha colecionado a ti. Ainda não estavas feita burguesa overpriced, varri o OLX até ter todas as versões que me escaparam ao longo dos anos. Chiça, eu fiz-te um altar: as que vieram sem caixa, fi-las eu.

Chegados à sétima geração, voltaste a ser mainstream. Já toda a gente te tinha no bolso outra vez, mas agora no smartphone. Até passei a conhecer os teus pais, que vieram a Portugal, mas estava tanto deslumbrado como em negação. Claramente tinhas outros planos para esta relação e eu só percebi tarde demais. História risível, umas mecânicas interessantes, outras tantas removidas pela enésima vez. Um assalto emocional implacável e consentido ao meu cartão de crédito, como qualquer bom estereótipo de esposa fútil, em que comprei quatro vezes o mesmo jogo, entre Sun, Moon, Ultra Sun e Ultra Moon. Em pré-order. E edição de colecionador.

“Tornaste-te Masuda, o meu Ohmori por ti já acabou”

Ainda me obriguei a gostar de ti em Sun e Moon. O casamento é para a vida, não é verdade? Acontece que desde então não fizeste nada para mostrar o teu apreço. E pior: levaste-me os filhos.

Quando chegaste à Nintendo Switch, tínhamos 807, qual Brad e Angelina. Decidiste que só tinha direito a metade. Um par de DLCs – agora ao menos és honesta quando me tentas extorquir – depois e ainda escolhes ignorar 233 dos nossos filhos. Claro, ou os deixo no museu da 3DS, ou pago mais uns cobres entre serviço online e Pokémon Home para não os negligenciar. Basta: podes ficar com o Home, as Mega Evolutions e a Battle Frontier, mas não ficas com eles!

Vou apanhar este comboio e não mais olhar para trás.

Não fizeste nada para salvar este casamento. Odeio chegar todos os dias a casa e pensar “outra vez caril?!”. Sempre que parece que chegaste a um sítio melhor, tiras uma feature qualquer. Tens 26 anos mas às vezes mais parecem 6. Já te me ofereceram, já te pirateei, já me deixaram (a caixa) levar-te de graça de uma loja, já chorei por ti. Estive muito tempo em negação mas moderei finalmente as minhas expectativas sobre ti.

Ainda te compro, mas usada, só por causa das tosses dos números de unidades vendidas. Ainda tenho filhos para criar e uma colecção para manter. Que a parte do colecionismo, especialmente de como apanhar Pokémon, continua sempre fresca. O que quero dizer, é que ainda tens jeito para o processo de fazer filhos, se bem que andes a ser péssima mãe depois. Podemos só ser amigos então? Não consigo ignorar que fazes parte da minha vida, mas por amor de Arceus, já chega. Tanto prometes um sandbox como um remaster chibi, que cabia num telemóvel, daquela que é precisamente a primeira decepção que me deste. És preguiçosa, aproveitadora e infantil, and I don’t Bayleef you anymore. Podemos ir comer um Vanillite ou beber um Sinistea, mas é o mais que vou tolerar.