Magia.
Quase todos os universos, pedaços de arte ou media famosos têm esse algo intangível ao qual se atribui uma grande parte do seu sucesso. Para além das qualidades objectivas e discutíveis, há algo, um “cheiro”, um “gosto” indescritível e muito próprio que caracteriza a experiência e nos liga ou atrai vezes sem conta à mesma, ou a outras semelhantes.
O meu primeiro contacto com Final Fantasy foi com o sétimo jogo, quando era um gaiato de 6 anos. FF7 foi uma completa inovação e trouxe consigo todo um conjunto de tropes e definições que a série nunca tinha tido antes, catapultando-a para um astro mundial de sucesso mainstream. Esse facto cimentou a “magia” da saga na minha cabeça de uma maneira muito diferente das pessoas que acompanharam a série desde as suas raízes mais tradicionais, mas foi apenas muito mais tarde que voltei atrás para jogar Final Fantasy IV e VI e descobri isso. Nessa altura ficou muito mais claro o porquê de a série ser tão fracturante entre os fãs. Existiram claros saltos geracionais que alteraram a magia da saga e nessas alterações súbitas o choque foi de tal maneira grave que fãs ávidos da série se distanciaram definitivamente.
Este ciclo de renovação de audiências é normal e tem de ocorrer para a existência continuada de qualquer jogo, mas nos fãs que “ficam para trás” há sempre um sentimento de perda e nostalgia. Na minha opinião, o jogo do qual vou falar hoje é mais um numa linha de jogos que procuram recapturar esses mesmos fãs, trazendo-os de volta à casa mãe. Mas falarei mais sobre isso num artigo futuro.
Afinal não é só a Valve que não sabe contar até três…
Bravely Default II trata-se do terceiro jogo na franchise Bravely Default(BD). Sim, os japoneses continuam a não gostar de numerar os jogos de maneira consistente (algo que curiosamente partilham com a Xbox). Ainda melhor do que isto, Bravely Default II não é sequer uma sequela do original, cuja sequela se chama Bravely Second: End Layer(BS:EL), mas sim uma experiência 100% nova num mundo diferente e feita por um estúdio diferente, Claytech works. Felizmente, temos de volta Tomoya Asano, Masashi Takahashi e Revo, respectivamente os produtores de BD e BS:EL e o compositor do original. O jogo conta também com o famosíssimo sistema de combate pelo qual a saga é conhecida, onde podemos fazer Default e acumular Brave Points(BP) tomando uma posição defensiva, ou activar o modo Brave e descarregar uma sequência de acções de uma vez só, sendo depois penalizados com turnos de inação, de acordo com os Brave points que nos sobram. De volta estão também os Asterisks, o sistema de Jobs/classes extremamente profundo e divertido ao qual a saga já nos habituou.
A história começa de uma maneira bastante básica. O nosso protagonista Seth é um marinheiro naufragado numa terra desconhecida. Ele é salvo por Gloria e Sloan, uma princesa de um reino recentemente aniquilado e o seu guardião. Para saldar a sua dívida, Seth junta-se a estas duas personagens para as ajudar na sua missão de retornar os cristais, quatro pedras que salvaguardam o equilíbrio do mundo, ao seu local de origem, o reino aniquilado de Musa. Pelo caminho encontram um académico viajante e a sua protetora, curiosamente chamados Elvis e Adelle. Elvis encontra-se numa demanda para encontrar todos os Asterisks, pois tem um livro misterioso cujas páginas são desvendadas à medida que os adquire. O setup é básico, mas casa bem as motivações das personagens e do enredo ao sistema de jogabilidade e oferece incentivo e mistério suficiente para nos impelir nas horas iniciais do jogo.
Temos uma party de quatro heróis e quatro cristais, assim como um sistema de classes rico e variado e um overworld cheio de cidades e pontos de interesse, muito à semelhança do BD original. Espero agora que percebam o porquê de considerar estes jogos uma tentativa de ir buscar os fãs mais antigos de FF, pois as semelhanças são claras, particularmente em relação ao III e V.
Uma sanduíche sem pão
Infelizmente, a história e o protagonista principais são os pontos mais fracos do jogo, parecendo por vezes uma distracção em relação aos personagens secundários e sistema de combate. Digo isto porque a história organiza-se em capítulos, sendo que em cada um visitamos um local diferente e somos introduzidos a um novo conjunto de personagens secundárias e um novo problema, como se de um episódio ou arco de uma série se tratasse. Estes arcos pouco contribuem para o arco principal da história, sendo, na sua maioria, perfeitamente autocontidos. Devido a isto, são individualmente muito fortes, cada um deles oferecendo um cenário digno de um quadro expressionista e personagens com diálogo bem escrito e convicções sólidas. Cada local oferece também uma cultura e temas muito diferentes, assim como desafios novos e interessantes. Por várias vezes me encontrei chocado com a maturidade dos temas discutidos e com a facilidade com que um jogo que aparenta ser extremamente cartoony apresenta cenários bastante violentos e retorcidos. Quase todos os arcos têm uma componente surpreendentemente trágica, o que nos aproxima e nos faz gostar muito do elenco secundário. Infelizmente, isto faz com que o foco desses arcos sejam as personagens específicas a cada um e não o nosso elenco principal. No caso de Elvis e Adelle isto é remediado pelo facto de dois dos arcos serem dedicados à sua terra natal, o que os envolve mais directamente e nos oferece mais umas migalhas de caracterização. Isto fez com que se tornassem nas minhas personagens preferidas, um mal que parece frequente na saga, pois o mesmo me aconteceu com as personagens principais “secundárias” Edea e Ringabel no BD original.
Gloria e Seth ficam assim umas personagens muito insípidas, com motivações pouco cimentadas e cliché. Devido a esta falta de caracterização, não me consegui ligar às duas personagens que deviam ser o centro do enredo, o que me distanciou da trama principal e fez com que, após resolvidos os cenários secundários, não tivesse grande interesse na resolução principal do jogo. A falta de grandes reviravoltas e revelações quando comparado com o BD original também não ajudou, pois o enredo acaba por desbocar no clássico “o bem contra o mal”, sem nada para o diferenciar dos mil e um outros JRPG que utilizam o trope. As animações das personagens são também muito básicas e repetitivas, o que, ao fim das 45 a 65 horas de jogo (com vários finais diferentes), torna as longas sequências de história em algo entediante.
Se a história principal não me satisfez, não posso dizer o mesmo em relação a praticamente tudo o resto que o jogo tem para oferecer. O sistema de progressão à base de classes é incrivelmente profundo e viciante, a banda sonora é variada e memorável e os cenários são lindos e detalhados.
Todas as classes possuem uma especialidade passiva e estatísticas e aptidões para equipamento diferentes. À medida que progredimos em cada classe, desbloqueamos novas habilidades exclusivas a essa classe e habilidades passivas que podemos equipar independentemente de que classe estamos a usar. Quando chegamos ao nível máximo da classe, desbloqueamos uma nova especialidade passiva, muitas vezes extremamente poderosa. Em cima de todo este sistema, podemos equipar uma sub-classe ao mesmo tempo, o que nos permite utilizar as habilidades da mesma em conjunção com todas as características da nossa classe principal. O sistema incentiva-nos a espremer ao máximo o sumo de cada classe e criar a nossa experiência de combate favorita, tornando-se altamente táctico e viciante. Se durante a exploração normal os inimigos não apresentam grande dificuldade, é nas lutas contra bosses possuidores de Asterisks que o jogo brilha. Cada luta é um novo puzzle frenético, em que temos de perceber qual a melhor estratégia a utilizar para superar o adversário. Será que o boss vai contra-atacar ataques mágicos ou físicos? Será que ganha BP quando usamos itens ou magias de cura? Tudo isto é alicerçado por músicas de combate das melhores que já ouvi, o que, em adição à ótima caracterização de personagens secundárias mencionada anteriormente, faz as lutas de boss serem memoráveis e extremamente divertidas. Esperem pelo menos um Game Over por boss, pelo menos enquanto não fizerem overlevel e acederem às combinações mais poderosas de classes que destroem tudo e todos. Por vezes é necessário algum grinding, mas os developers oferecem várias alternativas para acelerar o mesmo, quer seja acelerar a velocidade de combate ou usar itens que nos permitem fazer cadeias de combates seguidos que resultam em quantidades enormes de experiência.
BD2 tem também um mini-jogo de cartas, Bind and Divide, ou B & D para simplificar. Este jogo é de simples compreensão, mas difícil mestria, sendo bem mais divertido do que outros do mesmo tipo (sim Tetra Master, estou a olhar para ti). É uma adição muito boa ao jogo, que nos permite descomprimir quando não nos apetece prosseguir com a história. O aspecto de colecionismo de cartas é sempre algo que me atrai muito e B & D não é excepção, com montes de cartas alusivas ao jogo e às suas personagens.
Infelizmente, nem tudo são rosas, e BD2 sofre de algumas omissões que não consigo compreender em 2021. Para começar, apenas podemos aceder a um mapa no menu. Este mapa não tem nomes dos locais, nem nos permite colocar marcadores ou fazer zoom em zonas específicas. O mini-mapa disponível enquanto atravessamos o mundo também não tem nomes de localizações, o que pode tornar a experiência num ato frustrante de memorização. Apenas podemos ter três missões secundárias ativas a qualquer momento, ou seja, se quisermos que as nossas acções contribuam progresso para uma quarta, temos de manualmente ir ao menu e desseleccionar uma das missões ativas e mudar para essa. Além disso, não há maneira de aceder a uma lista das missões secundárias que já completamos, o que impossibilita os compleccionistas de saberem se lhes falta fazer alguma coisa, a não ser que escrevam num caderno tudo o que fizeram.
Concluindo, BD2 é um RPG bastante bom. Recomendo a quem goste de esmiuçar sistemas de combate com capacidade de personalização das suas builds. Embora a sua história principal seja um mero veículo para oferecer uma experiência de jogo, os arcos secundários estão bem escritos e as personagens específicas a esses arcos são memoráveis. Fica apenas a tristeza de não ser realizado o potencial completo da saga, pois quem jogou o BD original sabe que a trama principal escondia um enredo inovador numa pele de tradição e que aquele final foi extremamente chocante, algo que não acontece em BD2. Espero que a próxima tentativa venha num pacote mais completo e coeso. Desta vez, não chegou à magia.