A teoria da possibilidade da recorrência de tudo o que existe no universo não é recente, mas seria Friedrich Nietzsche a definir a ideia de eterno retorno, de uma repetição cíclica dos eventos enquanto esfera intrínseca à existência. 

De forma metafórica, mas não só, o loop fatal onde os roguelikes encerram o seu ciclo de jogabilidade apela a esta ideia conceptual, mas indo mais longe. O eterno retorno de um roguelike é uma recorrência que quer, a cada novo ciclo, tentar expandir o diâmetro desse mesmo círculo, indo mais longe. 

Há quem diga que a verdadeira praga que vivemos não é o coronavírus, mas sim a quase obrigação de muitos jogos, especialmente indies, de incluir elementos roguelike no seu âmago. 

Quando Returnal foi anunciado pela finlandesa Housemarque*, muitos duvidaram do que aí viria. Primeiro porque o portfólio do conhecido estúdio circundava essencialmente o território dos schmups. E que portfólio, dirão. Entre Stardust, Resogun e uma série de excelentes jogos que interpretam, cada um à sua maneira, o clássico género de arcadas, era indubitável que contra-corrente o estúdio de Helsínquia ajudava a manter os shoot’em ups vivos. E de saúde. 

O salto criativo, técnico, e conceptual que a Housemarque deu entre o seu passado recente para este Returnal, que é um dos jogos da primeira safra de verdadeiros exclusivos da PS5 é tremendo. O primeiro embate positivo com Returnal é o ambiente opressivo, mas vertiginosamente belo na sua hostilidade, com as muitas partículas que compõem a neblina e a profundidade de campo dos cenários a choverem nos nossos olhos com um maravilhamento que exemplifica o poder tecnológico da nova PlayStation.

Neste novo título da Housemarque controlamos, Selene, uma astronauta que sobrevive ao despenhamento da sua nave no planeta Atropos. Longe de estar inabitado, logo na primeira clareira encontramos vestígios civilizacionais, com criaturas a proteger essas ruínas como se a existência das suas espécies dependesse disso. 

Sem poderes sobrenaturais para a defender, Selene conta com o seu revólver de protões para se defender. Sempre que morremos, e vamos morrer muitas, muitas vezes, Selene vê uma sequência de acontecimentos e volta a acordar na nave despenhada, num eterno retorno que ela própria abraça como parte do mistério que a rodeia e à sua presença em Atropos.

A cada nova ressurreição, o mundo de Atropos reconfigura-se, criando novos labirintos para Selene ultrapassar. Esta geração procedural dos níveis a partir de variáveis estipuladas dentro de biomas encerradas – e dizem os autores que existem seis, apesar de não os ter conseguido ainda visitar a todos – vai permitindo que a recorrência do nosso eterno retorno nunca soe a monotonia.

As portas para os novos segmentos de nível têm codificações que vamos aprendendo, já que o jogo pouco ou nada nos explica. E essa aprendizagem empírica faz parte do loop de Returnal, onde escalamos a pulso a íngreme curva de dificuldade do jogo.

Como seria de esperar, Returnal é um jogo muito difícil. Nem o facto de ser um third person shooter – numa era em que grande parte dos jogos do género constituem um passeio no parque – vem disfarçar este facto.

A identidade da Housemarque apresenta-se nas saraivadas de projéteis coloridos que são disparados contra nós, e que constituem perigos constantes e recorrentes.

Sendo um grande fã de roguelikes, há elementos adicionados a Returnal que considero serem uma excelente adição ao género. Ultrapassando os clássicos, de entre os recursos que vamos recolhendo apenas alguns serem permanentes no pós-morte, e outros serem efémeros, a introdução do sistema de adrenalina é um mecanismo que premeia a nossa destreza e o nosso domínio do conhecimento dos inimigos.

A barra de adrenalina funciona como uma bonificação crescente de dano ligada ao número de inimigos que destruímos sem receber qualquer dano. Basta um tiro para que o contador volte ao zero e que percamos todos os bónus que acumulámos até então.

A build que temos em cada nova vida vai dependendo dos “aumentos” às armas que recebemos (para além de novas potenciais armas que apanhamos, com características próprias aleatoriamente geradas). É o somatório das armas e dos pequenos componentes que apanhamos que constitui o nosso poderio único até à nossa morte, e onde voltamos à estaca zero.

Mas é curioso que a real essência de Returnal é o de um género cujo neologismo nunca poderia ser utilizado pela PlayStation enquanto argumento promocional. Mais do que um roguelike, Returnal tem muitos elementos de metroidvania. E há muitos aspectos conceptuais que me remetem para um dos mais sublimes e simultaneamente discretos exemplos do género: Metroid Fusion.

Se no brilhante jogo de Yoshio Sakamoto até hoje exclusivo do Game Boy Advance a magnífica protagonista Samus Aran vai avançando na exploração do planeta SR388 e vai evoluindo as suas capacidades em simbiose com parasitas que lá habitam, o paralelismo com Selene e Returnal, dezanove anos depois daquele, é quase imediato.

A grande componente de metroidvania que encontramos em Returnal resume-se à capacidade de Selene de incorporar a tecnologia orgânica daquela civilização aparentemente perdida no seu fato espacial. É isso que nos permite “atalhar” caminho para outras biomas, visto que estamos sempre a regressar ao ponto inicial, a nave despenhada.

Mas esta simbiose não fica por aqui. Há um elemento de gambling aleatório com parasitas que vamos encontrando e permitindo que se vinculem ao corpo de Selene. Cada um deles traz uma bonificação com um custo: uma prejuízo mecânico de intensidades diversas que pode ser “curado” se cumprirmos determinada condição.

Returnal, para além de deslumbrante visualmente, é brilhante do ponto de vista sonoro. Seja por todos os sons que emanam pela televisão ou mesmo pelo comando Dual Sense, sendo que no caso deste finalmente vemos mais um jogo a explorar as respostas hápticas do comando. 

Voltando à direcção artística, do musical passamos para o visual e para os conceitos que definem a flora e fauna deste mundo. As biomas são repletos de elementos que fazem deles ícones de exploração com ambientes sólidos, mas é a originalidade das criaturas tecnorgânicas que por lá habitam que conferem um grande grau de criatividade, e que se mesclam com a arquitectura soturna e arruinada que percorremos.

As muitas partículas e projéteis disparados em vagas típicas de cada criatura vão ajudando em algumas biomas a iluminar com efeitos néons aparentemente desenquadrados o ambiente, mas que na realidade ajudam a criar esta genial transição housemarque-esca entre um roguelike na terceira pessoa e os elementos que os notabilizaram.

Returnal segue a tradição de alguns filmes e séries recentes, de polvilhar uma história de aparente simplicidade narrativa em torno de um despenhamento em algo mais: dando-nos pequenos lampejos de elementos quase surreais que poderão, ou não, ser meros elementos para nos desviar a atenção da verdade que se esconde por trás das cortinas. A quantidade de vezes com que nos cruzamos com a casa terrestre de Selene, ou os avistamentos do astronauta são isso mesmo: pedaços de loucura que tacteiam as memórias no eterno retorno.

Num ano de tímidos lançamentos de grande projecção, Returnal é um dos grandes lançamentos deste primeiro semestre, e uma surpresa dos muitos degradados subidos pela finlandesa Housemarque em termos de qualidade. Sem grande concorrência à altura num ano estranho como 2021, Returnal é um jogo obrigatório para todos os sortudos possuidores de uma PS5, e ninguém lhe retira um lugar no pódio do que de melhor os videojogos brindaram nos primeiros meses do ano.

No meu caso o eterno retorno mantém-se, sem ter tido o engenho de ter conseguido quebrar o ciclo de morte e ressurreição de Selene, o que faz de Returnal um jogo cuja dificuldade intrínseca o tornará um jogo para ser saboreado ao longo de meses.

Num jogo tecnicamente irrepreensível, desafiante, artisticamente brilhante, Returnal tem ainda a mais valia de representar a inclusão original de elementos de roguelike e metroidvania num third person shoot’em up com o cunho único da Housemarque, num título excelente que mostra que o risco criativo em jogos AAA é muitas vezes recompensado com jogos que permitem quebrar barreiras.

* Sabem quando é que soube que se pronuncia HauseMark e não HauseMarki? Anteontem.