Todo contente, consegui comprar uma PS5. Saltei PS3 e PS4, há ainda falta de jogos de nova geração que me puxem pelas artérias então fez-me todo o sentido aproveitar a retrocompatibilidade com Marvel’s Spiderman, Red Dead Redemption 2 ou Horizon Zero Dawn.
Só que em vez de passar dezenas de horas em catarse cultural com tão aclamadas obras, só me apetecia solicitar prostituição. Neste contexto figurativo, isto significa que cedi às minhas sórdidas e básicas ânsias por esse cocktail nitrado de azeite e gasolina chamado Need for Speed.
É isso, caros seguidores do galinheiro, eu escolhi passar a maioria das minhas horas com a ainda rarefeita e mais cobiçada consola do mercado com uma franquia medíocre. Mas caraças, Need for Speed Heat soube-me tão, tão bem. Não vou mastigar as análises do Ricardo e do Rui, antes tentar justificar como é que algo que inicialmente encarei como guilty pleasure me fez ir além das 15 horas da narrativa principal até às mais de 50 da minha primeira platina de um AAA na PS5.
Não se explica em 10 segundos ou menos, mas lê-se um quarto de parágrafo de cada vez.

“I owed you a 10 second car”
EU AZEITO AQUILO QUE SOU
A minha entrada em Need for Speed coincide com a minha entrada na PS2. Underground, Underground 2 e Most Wanted preencheram largas tardes com a rapaziada, em roda bota fora nos Drags, tuning contra tuning. Jogava-se um quarto de milha de cada vez, como haviam ditado os ensinamentos de Dominic Toretto uns anos antes em Velocidade Furiosa.
NFS Carbon, Pro Street e ambos os Shift foram bons jogos, mas nunca mais me encheram as medidas como os outros três. Joguei Undercover, The Run e Payback – tudo jogos com sérios problemas – e recuso-me a jogar os restantes que não me deixem azeitar o meu carro. Preciso tanto das corridas e dos bons mapas como preciso da personalização automóvel – pese não desejar nenhuma na vida real. Embora aceite que o tuning não tem sido aposta da maior parte das franquias de corridas mais bem sucedidas desde que Need for Speed perdeu fôlego (Forza Horizon ou The Crew fazem-no, mais levemente) – a moda foi passageira e hoje em dia é nicho – e os valores de produção da Electronic Arts pedem um público universal, vejo-o no seu habitat natural nos videojogos. Que melhor ideia vos ocorre para fazer tanto um bom jogo de corridas, como um bom RPG?

Não há Toyota Supra em NFS Heat, mas a malta bem o quer…
NFS Heat é a única iteração da franquia em quase 10 anos que não se espalha ao comprido na tentativa de conjugar todos estes elementos, sendo um filho mestiço das corridas de Underground, da personalização de Underground 2 e das perseguições policiais de Most Wanted. Com excepção da personalização, não brilha tanto como os seus antecessores em nenhum dos restantes campos.
Uma das coisas que mais longevidade me trouxe em NFS Heat foi o seu mapa. NFS Payback, tirando os magníficos carros clássicos espalhados pelo mapa em sucata, ostentou um dos open-worlds mais castradores em que já joguei. Heat tirou boas ideias para uma Miami fictícia, exacerbou o seu estilo vaporwave de noite e recheou-o de coleccionáveis que dá gosto procurar. Em Palm City, vivi um Flamingo, Cartaz, Grafiti, Drift Zone, Radar ou Rampa de cada vez. Não senti o mesmo vazio que o Ricardo – não acho que ia ligar nenhuma a peões e mais trânsito só me levaria a sofrer acidentes com ainda mais frequência.

Das coisas mais poderosas em Velocidade + Furiosa. Qual?
Sim, podia haver menos grind diurno (mas nunca me senti arrastado). Sim, a história podia ser interessante (mas não me lembro de um Need for Speed que tenha uma). Sim, há muito nas corridas e na dificuldade a aprimorar (mas entre os três níveis disponíveis, a experiência é palatável). Não estou aqui a cantar de galo e vender Heat como perfeito. Longe disso. Simplesmente encheu-me tanto as medidas, que não consegui parar de o jogar. Quiçá a falta de um jogo à altura das minhas expectativas durante tanto tempo me tenha deixado na RPM certa para a mudança de caixa. E a propósito de mudanças de caixa…

…o Nissan Skyline, claro. Aqui em NFS Heat.
NEED FOR SPEED E FAST AND FURIOUS: DUAS VIDAS SEPARADAS PELO TEMPO?
Estas duas franquias – uma nos videojogos, a outra no cinema – têm co-existido em dimensões separadas, ainda que eu suspeite que não sou o único a ser fã de ambas. Parece ter havido uma tentativa de crossover oficioso com NFS Payback, mas não correu bem. Pior ainda foi a tentativa da Slightly Mad Studios com Fast and Furious Crossroads, um dos jogos mais desastrosos de 2020, tendo em conta o seu potencial.
Ora, a Slightly Mad Studios é subsidiária de quem? Da Codemasters. E a Codemasters foi comprada por quem em 2021? Pela Electronic Arts. Não tenho como fazer futurologia dos planos da EA para a licença de Fast and Furious que expira em 2023, mas não consigo deixar de acreditar que um Need for Speed: Fast and Furious é o casamento perfeito. Em 2017, Ian Bell, o CEO da Slightly Mad, mostrava-se ambicioso após o lançamento de NFS Payback:
“Adivinhem o que o último NFS tentou fazer e pensem que filme de Hollywood estarão a copiar. Agora vou-vos dizer que temos um contrato com essa empresa de Hollywood que vai destronar o que NFS está a fazer – durante os próximos seis anos“.
Ouch.

“It don’t matter if you win by an inch…”
Mas e se…a Electronic Arts quisesse? Ultimamente têm estragado mais do que o que arranjam, é verdade. Só que mais importante do que terem feito um NFS Heat fenomenal, foi terem feito um NFS Heat sem grandes problemas. E agora com a Ghost, Criterion Games, Codemasters e Slightly Mad a trabalhar sob a mesma alçada? Seguramente não iria a carne toda para o assador, que há franquias bem sucedidas da editora britânica a manter, mas o potencial está todo lá.
Há algumas coisas que penso já ter percebido sobre a fórmula de Need for Speed. Primeiro, é que o mundo aberto é o que todos queremos e funciona, como bem escreveu o Rui. Fast and Furious passa-se numa grande fatia dos Estados Unidos e arredores, pelo que facilmente cinco filmes cabem entre Los Angeles, Miami, México e Nova Iorque. Juntem-se uns hub worlds à la Midnight Club para Rio de Janeiro, Londres, Tóquio e Dubai e até se pode legitimamente pensar em DLC.

“…or a mile. Winning’s winning.”
Segundo, que a narrativa não precisa de ter inegável qualidade para um jogo destes ter sucesso. O argumento original de Fast and Furious Crossroads é tido como das coisas menos desastrosas desse jogo, por um lado, e será que seria assim tão má ideia recriar a narrativa de pipoca domingueira dos filmes num jogo destes, por outro? Se como cinema Fast and Furious é duvidoso para muita gente, cairia na mesma desgraça se virasse videojogo? Mais que não seja, há personagens carismáticos o suficiente para se criarem mecânicas à sua volta – Brian O’Conner só conduz carros japoneses, Toretto só gosta de muscle americano, Roman Pearce é mais exótico europeu, Luke Hobbs é só SUV. Há circuitos, sprints, drags, drift e todo-o-terreno, géneros que já foram associados em NFS Payback a cada personagem e foram das coisas que melhor resultaram.

Nunca mais os motores de fora do capot foram a mesma coisa…
Terceiro, a cultura automóvel é algo que, apesar de já não ser tão mainstream, a Electronic Arts se tem recusado a abandonar. Porque tem muito mercado. Quase metade de Fast and Furious é tuning, chaços e grandes bólides, então porque não? Há uma ideia de progressão, nem que seja pela época em que cada filme decorre, na frota automóvel disponível. Há também todo um potencial de personalização, seja no tuning, seja nas armas e armaduras impossíveis incorporadas em cada veículo. Caramba, se procurarem dentro dos modelos mais populares da franquia na secção de vinis da comunidade do jogo, a versão mais descarregada é SEMPRE aquela que mais popularizou o carro nos filmes!
Quarto, os jogadores mostraram com NFS Payback que queriam verdadeiros assaltos sobre rodas. Roubar camiões com Hondas Civic? Tirar automóveis de dentro de um comboio em andamento? Atirar carros do alto de um avião, arranha-céus, ou, como os trailers do oitavo filme prometem, em direcção ao espaço?

…mas em NFS Heat não existe nenhum desses.
Quinto – e prometo que me fico por aqui -, há material suficiente em Fast and Furious para satisfazer o apetite ganancioso da Electronic Arts num contexto de negócio contemporâneo dos videojogos. Mesmo se o DLC se limitasse ao razoável de carros e peças cosméticas não essenciais à progressão (mas provavelmente não nos livrávamos de umas microtransacções e uns quantos mapas de história), haveria aqui margem de lucro de sobra. Se Need for Speed já passou os 25 anos de existência, pese fases de mediocridade, e Fast and Furious afinal não acabou no quinto filme, isto teria pernas para andar.
Fast and Furious é na verdade um videojogo lançado no cinema, e quero muito jogá-lo.