A HouseMarque já produz videojogos desde do tempo do Amiga 500, com a sua estreia em Stardust, um clássico que ainda hoje é relembrado pela sua ação frenética, e serve de referência ao género Twin Stick Shooter. Returnal é sem dúvida o título mais ambicioso do estúdio, pegando em toda a sua experiência passada em jogos de ação frenéticos, mas introduz agora um formato roguelike.
Depois de Hades ter mostrado que o género pode ser facilmente candidato a jogo do ano através das suas mecânicas divertidas e narrativa intensa, Returnal pretende afirmar o género dentro dos valores de produção AAA, seja ao nível gráfico com ambiente cinematográfico, uma sonoplastia de luxo, e uma jogabilidade igualmente simples e divertida, puramente arcade, como o estúdio já nos habituou. Mas a isso acrescente-se uma dificuldade elevada, ou pelo menos muito desafiante, baseado em ciclos de vida da personagem.
É fácil comparar este roguelike aos demais: sempre que morrem voltam ao início, perdendo todos os itens e armas que recolheram até então. Ao contrário de Hades e Curse of the Dead Gods, que primam por tentativas relativamente curtas em cada tentativa, Returnal oferece uma longevidade enorme caso os jogadores se conseguirem manter vivos ao longo dos seus seis biomas distintos. Claro que tanto podem percorrer vários cenários numa tentativa, como morrer logo no primeiro encontro com inimigos. Tudo depende da forma como os cenários são baralhados em cada tentativa, pois uns são mais difíceis que os outros.
Returnal é um jogo repleto de inspirações, tanto de outros videojogos, como de obras cinematográficas, no que diz respeito ao seu ambiente. O jogador encarna Selena, uma astronauta que se despenha num planeta inóspito chamado Atropos. E pouco mais se sabe neste início. Será necessário explorar, morrer, voltar à vida, para compreender que algo sobrenatural se passa naquele local. Ou seja, toda a estrutura funciona como uma complexa cebola que vai sendo descascada a cada ciclo.
A mecânica de roguelike assume-se assim na narrativa como os filmes Edge of Tomorrow de Tom Cruise ou Groundhog Day de Bill Murray, em que em cada ciclo a personagem vai compreendendo o mistério, seja pelos diários de áudio que encontra nos seus próprios cadáveres no percurso, ou contactos com alguns dos elementos do planeta.
Mas talvez o mais misterioso seja a presença da sua própria casa algures num dos cenários do planeta. Aqui é dado a conhecer ao jogador um pouco mais sobre o passado de Selene. E este mistério faz lembrar Interstellar de Christopher Nolan, num ambiente que mistura com eficácia os mundos selvagens de Metroid Prime, Aliens Covenant, com o mistério sobrenatural de Control da Remedy.
Por norma não costumo jogar jogos do género roguelike, pelo tempo perdido sempre que se morre. E acreditem, certas tentativas são de deitar para o lixo o percurso feito. Ou pelo menos, até compreenderem melhor o que acontece durante esse loop, algo que inicialmente passa ao lado, pois o jogo não faz um excelente trabalho a mostrar o que persiste. As ferramentas vitais permanecem, ou seja, a pistola inicial juntamente com o seu ataque especial, uma espada para ataques melee e um gancho para navegar entre locais elevados, este apenas depois de derrotarem o segundo boss. Existem outros itens que permanecem, tais como o Ether, que funcionam como moeda de troca em algumas máquinas importantes.
Para além de alguns itens, e talvez mais importante, é que as armas encontradas são mais complexas do que aparentam. A personagem só pode carregar uma de cada vez, seja uma pistola, metralhadora, caçadeira, sniper, etc. divididas por 10 de base distintas. Mas cada arma tem elementos próprios, nomeadamente traits, com elementos diferenciadores, tais como eletricidade, explosivos, capacidade de ricochete, rajadas de energia, somando 90 habilidades, cada uma com três níveis e uma dezena de disparos especiais.
O mais interessante é que cada arma vai sendo melhorada mediante o seu uso, e quantos mais inimigos eliminarem com determinada arma equipada, os respetivos traits vão sendo melhorados na sua barra de investigação, ou experiência, se preferirem. O mesmo para os diferentes itens, por exemplo, um medikit, quanto mais usarem, mais eficazes se tornam ao longo dos loops.
E nesse sentido, a recompensa de quanto mais jogarem, mais eficientes ficam com as vossas armas favoritas, considerando que têm sorte destas irem dropando ao longo do loop. E por isso, cada tentativa é um autêntico mistério, desde o facto que os módulos dos cenários são baralhados, com os locais dos objetivos a surgir mais cedo ou não, e os melhores itens irem também caindo. Uma certeza é que cada módulo do cenário é sempre igual, com os mesmos inimigos, no mesmo local, assim como o posicionamento das arcas de tesouro e itens em geral. Duas ou três tentativas são suficientes para decorarem cada pequeno módulo. E são muitos.
Apesar do sistema roguelike, que baralha o cenário, o jogo é bastante linear, ou seja, os cenários têm alguma dose de exploração muito contida, pois podem ver todos os itens e inimigos no mapa ou mini mapa. Depois é seguir pelas portas com formato quadrado que indicam o objetivo para avançar ou as alternativas, em forma de pirâmide, que são de visita facultativa. Estes podem ter arcas de tesouro, inimigos ou máquinas importantes, sendo mais uma vez um gamble. Há ainda portas de desafio, locais trancados repletos de inimigos para eliminar, com a possibilidade de encontrarem itens importantes, mas elevada possibilidade também de morrerem e terminarem o ciclo.
E isso torna o jogo muito assente entre o factor sorte e estratégia. Quanto melhor conhecerem os cenários e inimigos, mais rapidamente vão decidir se correm em frente para o objetivo ou se perdem algum tempo a explorar. E isso é muito interessante, até porque o jogo não é de todo massudo. Depois de matarem o primeiro boss, por exemplo, não precisam de o voltar a encontrar, pois este larga a chave do portal para o segundo bioma, e a partir daí basta encontrar o portal. O mesmo quando passam o segundo boss, podem saltar do início da aventura e encontrar o acesso direto para o terceiro ambiente. E assim sucessivamente.
Há aqui uma inspiração nos jogos Soulslike, num sistema de atalhos que vai sendo aberto. E também de metroidvania, por certos locais estarem previamente trancados até que encontrem o objeto e habilidade para os explorar, como por exemplo, a possibilidade de explorar a água. E outro aspeto importante para a persistência, é que uma arma que desbloqueiam apenas num bioma avançado, passa a entrar para a lista de drops do início da aventura. Por isso, quanto mais avançam e desbloqueiam armas e itens, mais fácil se torna.
Obviamente que o jogo obriga os jogadores a terem skills, pois tal como é habitual nos jogos da HouseMarque, os combates desenrolam-se num sistema de bullet hell. Isso significa um autêntico fogo de artifício, com os inimigos a dispararem rajadas de balas que devem ser evitadas com o poderoso dash ou salto. Os padrões são iguais, por isso basta decorarem o comportamento dos inimigos. E não esperem uma inteligência artificial cuidada dos mesmos: a resposta é semelhante aos jogos anteriores do estúdio, sempre que vêem o jogador, mandam-se para cima ao molho.
E por isso, os combates são bastante caóticos e muitas vezes difíceis, levando a alguma frustração quando estão avançados na tentativa. Mas é disso que são feitos os roguelikes. E se muitas vezes temos vontade de largar o comando, passando um pouco volta a dar vontade de repetir, tal o vício do gameplay.
Há ainda que falar no sistema de adrenalina, um elemento que incentiva os jogadores a jogarem realmente bem, a não tomarem dano. Sempre que matam um inimigo o medidor sobe, até ao máximo de cinco, aumentando o dano da arma e da espada, assim como a capacidade de ver os inimigos atrás das paredes. Sempre que são atingidos o medidor de adrenalina faz reset.
E o estúdio utilizou o já comum sistema multijogador passivo, ou seja, se jogarem ligados ao servidor, o cadáver da personagem vai aparecer nas partidas de outros jogadores, que podem optar por vingar ou farmar Ether. Se optarem por vingar, vão combater contra um boss bem difícil, na esperança de um drop precioso. Também vão receber mensagens de outros jogadores que vingaram a vossa morte.
Muito poderia falar do gameplay, mas basta dizer que este é arcade, simples de dominar, muito rápido e frenético, e sobretudo, muito refinado, como já é habitual nos jogos da Housemarque.
Mas a aposta neste seu primeiro AAA é que puxa pelas capacidades da PlayStation 5, com todos os mimos técnicos de última geração, desde o grafismo 4K mantendo os sólidos 60 fps, efeitos de ray tracing nas sombras, partículas e iluminação. O jogo é realmente bonito, mas sobretudo orgânico em cada cenário dos diferentes biomas disponíveis, entre a floresta negra e pantanosa do início, passando pelo deserto, até uma cidadela com máquinas destruídas, para referir alguns.
O sistema de partículas da HouseMarque está bem integrado no ambiente, que foi simulado de forma a comportar-se também de forma diferente em cada loop, mesmo que visitem o mesmo módulo. Pode haver chuva ou ventania, dependendo do que for baralhado. Há muito a comer com os olhos nesta aventura de ação, num mundo que parece querer devorar a personagem.
E se graficamente é agradável, a sonoplastia é um dos melhores aspetos do jogo, desde o som ambiental, salientando por melodias que aumentam a tensão, aos disparos das armas que ajudam a criar aquela sensação de impacto. O jogo tira mesmo partido dos auscultadores Pulse, caso tenham a oportunidade de os ter.
E há um gambling constante, entre as armas, os itens, tudo aquilo que saem nas máquinas em troca de uns cristais que recolhem dos inimigos mortos. Raramente têm controlo daquilo que compram. E como se não bastasse, ainda há o sistema de parasitas, que se vai encontrando e que oferecem tanto um buff como um debuff à personagem. Há sempre um efeito secundário que têm de ponderar para o benefício que este apresenta. Seja a diminuição da capacidade do tiro, o aumento do cooldown do uso do dash ou da espada, entre outras penalizações; mas como benefício podem ter a chance de manter um consumível no inventário quando utilizado ou mais drops de armas dos inimigos.
Se Astrobot mostrou aquilo que era possível fazer com o novo comando DualSense, a House Marque investiu em expandir a experiência. O comando ajuda a compreender todo o ambiente em redor, pulsando quando este fica tenso, sente-se a chuva a tocar na personagem, projetando muitos dos sons do jogo no pequeno altifalante. É sem dúvida o melhor jogo a tirar partido das sensações hápticas do DualSense. Mesmo os gatilhos adaptativos com dupla função, com o esquerdo a servir para fazer mira, apertando ligeiramente ou a fundo para disparar a bomba alternativa. E com o da direita, para além de disparar, também carrega a arma, num mini-jogo semelhante a Gears of War: se acertarem no meio da barra ganham um disparo adicional mais poderoso de seguida, falhem e a arma encrava.
Returnal é um excelente roguelike para quem gosta do género, e um cartão de visita para quem conhecer um formato desafiante. Pessoalmente não aprecio o gênero, mas Hades e Curse of the Dead Gods abriram-me os horizontes. Se tiverem paciência para repetir a experiência de início a cada morte, o jogo acaba por recompensar, pois praticamente tudo o que a HouseMarque se comprometeu, cumpriu.
Resta saber se o price point deste AAA convence os mais céticos a mergulhar nesta experiência em loop, entre a vida e a morte. Mas a sua longevidade é enorme, nos seis biomas disponíveis, repletos de segredos para descobrir.