O que se esconde no nevoeiro?
Relutante, abri a caixa do jogo. O Survival Horror não é um género que escolha jogar de livre ânimo e Silent Hill para a PlayStation 1 é, talvez, um dos melhores exemplos do quão um jogo, tal ou até mais que o cinema, pode afetar os sentidos e provocar sensações. Coloquei o CD do jogo, há muito encontrado num baú bafiento que comprei na feira do velho. A caixa rachada e os manuais rasgados contam histórias de outros que se perderam neste pesadelo. Não é um jogo recente, mas será que ainda consegue produzir o mesmo ambiente de terror que no distante ano de 1999? Olhei uma última vez lá para fora e notei que um nevoeiro se adensava… era a minha vez de visitar a cidade de Silent Hill…
O género Survival Horror era já um favorito quando Silent Hill foi lançado. Antes deste, Alone in the Dark, Resident Evil, Clock Tower, para mencionar apenas alguns, prendiam já as nádegas dos jogadores aos sofás, pois neste género, cada novo ecrã tem o potencial de levantar os cabelos. É caracterizado por um inventário limitado, espaços claustrofóbicos, ausência de luz e pela presença do sobrenatural, que se manifesta, regularmente, na forma de hediondas criaturas que mais parecem o deus me livre. Popularizado em particular pela série rival da Capcom, o Resident Evil, o género tornou-se mais mainstream, e é impossível de negar a influência do cinema na sua conceção. É comum encontrarmos monstros com vontade de fazer de nós empadão e com lâminas que podiam fazer a barba ao King Kong.
Logo após o FMV inicial (com uma série de humanos CGI que roçam o aterrador), Harry acorda e vê o seu carro acidentado. A sua filha, Cheryl, desapareceu após o impacto e Harry decide ir à procura dela. O caminho “linear” leva-o pelas ruas da cidade, deixando o jogador conhecer o ambiente que o espera. Nota-se rapidamente a atmosfera isoladora, com o nevoeiro sempre presente e uma ausência de som de fundo que traz uma ligeira inquietude. Pelo caminho, Harry vê aparições de Cheryl, que estranhamente não lhe responde. Em vez de virar para trás, como alguém no seu perfeito juízo, Harry decide prosseguir e perseguir as aparições, até que alcança um beco.
A primeira impressão que algo não vai correr bem é a presença de uma carcaça no chão. Este pequeno episódio do beco é assinalado por um trabalho de câmara digno de Hollywood, o que apenas aumenta a tensão do jogo. Um pouco à frente, a pouca luminosidade reduz-se ainda mais, e Harry decide acender uma lanterna, apenas para descobrir que está no meio de um beco pintado com sangue e com corpos mutilados. Mais tarde, viria a descobrir que estava no “outro mundo”, mas por enquanto, a única coisa que Harry descobre é o pânico quando um grupo de toupeiras gigantes o cerca e faz dele tiramisú.
Quando assumimos controlo de Harry Mason, apercebemo-nos que os controlos diferem significativamente do seu rival direto, o Resident Evil. Ao invés de um movimento “tanque”, Harry controla-se facilmente e com grande fluidez. É possível mudar de direção sem parecer que estamos a dirigir uma orquestra e evadir-nos de situações apertadas parece, em primeira instância, exequível. Após as cenas expositivas iniciais, Harry vê-se na posse de várias armas, uma faca e uma pistola. Embora ao longo do jogo tenha acesso a um modesto arsenal, a arma mais eficaz é, sem dúvida, o dar de frosques. Isto deve-se ao “complexo” sistema de combate que faz com que matar um inimigo seja uma tarefa árdua. Segundo o manual do jogo, Harry não tem experiência com o uso de armas, o que faz com que falhe frequentemente. Se isto é uma justificação para o facto que acertar no alvo é uma experiência frustrante ou algo intencional, é algo que só os desenvolvedores da Team Silent poderão dizer.
O primeiro encontro com um monstro é o que melhor exemplifica esta característica do jogo. Harry está num café quando um bicho feio irrompe pelo telhado, pronto para o deixar mais arejado. Harry prime o gatilho e descarrega o cartucho sobre a vil criatura, ou mais precisamente, sobre as paredes do café, uma premonição do número de munições desperdiçadas ao longo deste jogo. Contudo, no toque de uma tecla (Auto-aim), Harry imbui-se do poder do apontar automático, conforme a arma que tem nas suas mãos. Se isto é uma benesse, não foi a nós que nos sorriu, pois continuámos a parecer os irmãos Dalton a tentar furar o Lucky Luke.
É nesta altura que o protagonista provavelmente desejaria que a mulher-polícia, Cybil, não se tivesse posto na alheta minutos antes, naquela que foi talvez uma das conversas mais estranhas que já ouvimos. O voice acting é decente, quando comparado com ”Jill sandwich” ou a “master of unlocking”, mas a ausência de qualquer tipo de inflexão faz com que Harry pareça um psicopata. Se calhar foi por isso que Cybil decidiu desamparar a loja o quanto antes.
A série de infortúnios de Mason continua mal este deixa o café, e depressa se vê perdido. É aqui que nos apercebemos que o mapa é, sem dúvida, algo essencial para a jogabilidade de Silent Hill. A natureza da cidade, organizada por quarteirões, o constante nevoeiro e a similaridade dos edifícios, quer no exterior como no interior, parecem desenvolvidos para induzir a desorientação. Ao longo do jogo, Harry vai descobrindo pistas, que assinala automaticamente no mapa. Também os limites do mapa que o impedem de deixar a cidade são marcados, o que se torna útil quando Harry se vê na infeliz posição de jantar dos monstros que habitam as ruas.
Todo o cenário, quer seja da cidade ou de interiores, é gerado em tempo real, pois os desenvolvedores apostaram num afastamento pronunciado da série rival, optando por não usar cenários pré-renderizados. Isto levou à necessidade de um sistema que ocultasse todo o carregamento em segundo-plano. A solução encontrada foi uma que contribuiu para a mística e para o ambiente do jogo, o nevoeiro. O detalhe gráfico dos vários elementos leva o hardware da PlayStation ao limite, distinguindo-se as feições das personagens, os elementos arquitetónicos dos edifícios e até aquilo que achamos serem cicatrizes nos monstros. Em nossa defesa, o medo é tanto que a nossa primeira reação é enchê-los de chumbo e não apreciá-los.
À medida que o enredo se densa, a componente sonora do jogo faz-se notar. A música e o som ganham um papel preponderante. São eles que nos permitem imiscuir no ambiente, levando-nos para um falso sentimento de segurança, ou mostrando-se acutilantes nos momentos mais tensos. No início do jogo, algo que rapidamente se nota é que a cidade de Silent Hill é silenciosa. Todavia, o protagonista rapidamente adquire um rádio, que o avisa de quando existem monstros por perto. Este é uma faca de dois gumes, pois embora consiga avisar-nos que vamos encontrar uma alma penada, também cria uma ansiedade sem medida, e não há Xanax no jogo.
Mas a música tem um papel bem mais importante no decorrer da aventura, criando uma constante tensão e, por vezes, um imenso pânico. É predominantemente rítmica, como se quisesse representar mecanismos ou batimentos cardíacos, mas em certos momentos, com o auxílio de sons agudos que fariam a miúda do exorcista tremer que nem varas verdes, torna-se um frenesim que assola os sentidos e nos desorienta. Por vezes, conseguem ouvir-se, ao longe, pequenos risos maquiavélicos dos desenvolvedores, pois nem sempre um som incrivelmente perturbador significa um perigo iminente. Trolls… antes dos trolls serem famosos. E nem falem do som que as criancinhas-sombra fazem, pois isso tira o sono ao demo!
Aliado à envolvência sonora, temos o design dos níveis. Ao debruçarmo-nos sobre esta cidade, notamos que surge um padrão na construção de cada cenário. De uma forma geral, os níveis estão bem desenhados, constantemente orientando o jogador na direção certa (não carecendo, como é claro, a consulta frequente do mapa) e fazendo surgir nos momentos corretos uma regular e bem-vinda dose de munições ou de itens curativos. Contudo, o jogo recicla os cenários com frequência. Não no sentido de fazer o jogador voltar ao mesmo cenário novamente numa intérmina série de fetch quests, mas sim pelo uso dos mesmos cenários no “outro mundo”, uma componente essencial da narrativa. Estes são diferentes, claramente, com um ambiente que perturba os sentidos (ainda mais), mas as similaridades fazem-se sentir e, por vezes, repetir novamente aquele corredor tira o entusiasmo.
Embora tudo isto contribua para uma atmosfera que não nos traz descanso à alma, Silent Hill não é um jogo difícil. A maior parte dos inimigos morre com dois ou três tiros bem colocados ou com uma paulada certeira e embora nos encurralem contra um canto, isso é mais pontual do que estratégia. E se quisermos tornar a nossa viagem bem mais fácil, a única coisa que temos de fazer é desligar a lanterna, fazendo de Harry Mason o maior pesadelo de Silent Hill. E isto sem mencionar o número ridículo de itens curativos que se encontra e o facto que o jogo conta com um sistema de “continues”. O medo começa a desaparecer quando o nosso protagonista carrega mais munições que o Rambo. Os bosses do jogo seguem a mesma linha dos restantes inimigos, fazendo com que o Two-Face do Batman pareça o Brad Pitt, mas derrotá-los envolve olhar para eles e, por vezes, pensar. Dizemos por vezes, porque enquanto o primeiro boss tem uma técnica especial para o derrotar, os restantes estão doentes… e a única cura é chumbo!
Silent Hill foi desenvolvido por uma equipa interna da Konami, conhecida como a Team Silent, uma equipa composta por funcionários que não tinham ainda encontrado sucesso e que ponderavam deixar a empresa, dado que a Konami não lhes dava suficiente liberdade criativa. Talvez o ambiente em que foram colocados tenha contribuído para a criação de um jogo como Silent Hill. Talvez a falta de fé por parte da empresa-mãe tenha sido o elemento galvanizador que fez esta equipa criar um jogo (e uma série) que redefiniria o género do Survival Horror. Seja qual for o motivo para a sua conceção, Silent Hill é um jogo que deixou e continua a deixar uma marca nos jogadores, pois mesmo passados todos estes anos, visitar esta cidade é uma experiência única.