Desde Janeiro que não visito a minha ilha de Animal Crossing. Um facto que pode soar injusto tendo em conta a gigantesca ajuda que o famoso life simulator teve na minha vida e na de milhões de pessoas que encontraram refúgio na sua pacata segunda vida insular. Só o tempo dirá se daremos o mérito emocional e psicológico que o jogo representou para nós, ou se pelo contrário o vamos vetar ao esquecimento, injusto, de quem foi usado numa era de aflição e relegado à prateleira, sem de lá mais voltar.
Não será também de estranhar que esse sucesso colossal que foi Animal Crossing em 2020 – potenciado, e muito, pelo estado de espírito global causado pelo confinamento – viria a abrir portas para outros jogos do género, numa ânsia pública de reencontrar o conforto que Isabelle, Tom Nook e companhia nos deram.
Hokko Life, recém-lançado pela Team17 em Early Access no Steam, traz-nos essa idílica calmaria de um relaxante life simulator. Um ambicioso título fruto do trabalho de uma pessoa só: um veterano da indústria chamado Robert Tatnell que trabalhou em jogos como Killzone 2, Heavenly Sword e Fable 3.
Sendo verdade que as potencialidades tecnológicas de um PC são superiores a uma Switch, é interessante ver o quão maravilhosa é a direcção artística de Hokko Life. Um primeiro impacto exponenciado pela chegada do nosso protagonista à cidade ainda pelo silêncio da noite. O apeadeiro, iluminado pela luz trémula dos candeeiros, abraça-nos à chegada, com os pingos da chuva oblíqua a transparecerem a neblina que se formou pelo passeio de acesso à cidade.
Esta oclusão ambiental misturado com a alta resolução do jogo vai construindo a nossa imersão no jogo, em muito incrementada pela profundidade de campo implementada no nosso ecrã.
Para o nosso (ou a nossa) protagonista adormecer no comboio e falhar a sua estação foi o bilhete de entrada para a vila de Hokko, cujos coloridos habitantes nos recebem de braços abertos. Seja o elefante cor-de-rosa dono do bar local, onde está calmamente sentado abrigado da chuva uma girafa que é proprietária da mercearia da porta ao lado.
É depois da primeira noite dormida que vemos o ambiente diurno de Hokko Life. O quão coloridas estão as suas formas, numa estética decorrente de jogos contemporâneos, onde as texturas têm elementos quase pincelados, e onde o seu quase low poly é “decorado” por essas mesmas superfícies pictóricas.
Para quem jogou Animal Crossing ou qualquer outro life simulator sandbox, é sabido que um jogo destes não tem propriamente uma meta no horizonte. Viver, na real acepção da palavra, é a tónica. É claro que pelo meio existem momentos de quests objectivas, quase todas elas dadas pelos nossos concidadãos.
Estas quests introdutórias às mecânicas do jogo e que funcionam de tutorial têm um ritmo que colide com a ideia de sandbox que será o sabor de Hokko Life. Falar com um personagem, receber uma quest, fazê-la e regressar ao nosso amigo para informar que já o fizemos é um modelo excessivamente clássico que nem o próprio Animal Crossing usa.
Isso não mancha, de forma alguma, o que Hokko Life faz de bom.
Uma delas é o crafting de itens que é levado a um excelente processo de personalização como nunca vi em jogo nenhum. Se construirmos, por exemplo, uma cadeira, podemos alterar as suas propriedades para as tornar verdadeiramente únicas. Seja a altura e disposição dos seus elementos, a sua cor, ou mesmo as suas decorações. Permitindo também que possamos partilhar os nossos designs únicos com outros jogadores, na única forma de interacção multijogador que Hokko Life permite.
Este é apenas um dos pequenos grandes toques de individualidade que demonstra a grande paixão e conhecimento que Tatnell tem não só como criador, mas sobretudo como apaixonado do género.
À semelhança do famoso jogo da Nintendo, em Hokko Life, apesar da sua total abertura típica de um sandbox, a meta geral do jogo é mesmo a de criar uma comunidade. Para isso basta-nos construir novas casas, colocar um foco de luz e uma cama, e eventualmente um novo animal irá chegar à aldeia de malas e bagagens.
Nesta fase do desenvolvimento, parece-me que os personagens que vamos conhecendo têm uma falta de profundidade que não vemos, por exemplo, em Animal Crossing. As centenas de possíveis habitantes do jogo da Nintendo surgem todos providos de uma personalidade única.
Estarei a ser exigente ao desejar algo semelhante para um jogo indie, feito por apenas uma pessoa, que está em Early Access? É possível. Mas por incrível que pareça, esta aventura de um one man band é na realidade o David e Golias das comparações, já que em muitos aspectos desta fase alpha Hokko Life apresenta elementos que deixam Animal Crossing na praia, a milhas de distância.
Seja o ambiente e a deliciosa direcção artística, sejam as mini-quests que nos vão atribuindo itens únicos, mas sobretudo pela personalização de tudo o que possamos construir. Um elemento que permite que a nossa criatividade tenha real impacto em tornar a nossa versão da pequena vila de Hokko realmente nossa. E que faz de Hokko Life um surpreendente sucedâneo de Animal Crossing, para pessoas que como eu, e após centenas de horas, já entregaram à famosa ilha da Nintendo tudo o que tinham para dar.