É uma quase certeza que tanto 2020 como 2021 tenham feito derrapar por completo as previsões e projecções da indústria para aquilo que era a tão aguardada mudança de geração. A disrupção das linhas de produção de componentes electrónicos viria a fadar os stocks iniciais das duas novas consolas, numa crise industrial que se estende para lá do mercado dos videojogos.

Imaginar que esta mesma disrupção nos videojogos se centra apenas em questões físicas de manufactura de hardware é um erro, e os sucessivos confinamentos globais foram determinando atrasos no desenvolvimento de muitos jogos, alguns deles planeados já numa fornada inicial de mudança de geração.

Juntando estes dois factores, é de perceber que tirando casos esporádicos, as grandes companhias não queiram (porque a base de instalação de novas unidades das novas consolas é baixa) ou não possa (por atrasos de desenvolvimento) cumprir o seu próprio plano de lançamentos para o primeiro ano civil da nova geração.

Esta primeira metade de 2021 ficou assente, sobretudo, nas costas dos jogos indie. Sejam os títulos mais desconhecidos e inesperados, seja It Takes Two que é para muita gente – eu incluído – o melhor jogo a chegar-nos neste ano estranho.

Ratchet & Clank: Rift Apart é finalmente a mudança de ritmo que 2021 necessitava, trazendo para o mercado o primeiro (e verdadeiro) AAA de nova geração. Aproveitando o excelente trabalho que a Insomniac Games fez com a sua reimaginação do jogo original em 2016, para além de terem desenvolvido logo de seguida um dos grandes sucessos comerciais e críticos do final da década, o estúdio californiano demonstra o porquê da aposta certa da Sony Interactive Entertainment em adquiri-los em 2019.

As primeiras grandes imagens de Ratchet & Clank: Rift Apart surgiram no evento digital de apresentação da PS5, e desde então, aquela pequena sequência que servia de aperitivo para a nova geração permitiu que a nova iteração da série do Lombax mais conhecido do universo se tornasse um dos títulos mais aguardados desta primeira vaga de jogos da PS5.

E, sem qualquer surpresa, essa expectativa criada a partir de alguns instantes de teasing acabaram por cumprir-se, e é também certo que este é indiscutivelmente o melhor jogo do ano até agora.

O ritmo cinematográfico de Ratchet & Clank: Rift Apart tornou-se ainda mais evidente nesta nova sequela. Mas esse exponencialmente rítmico ligado à 7a Arte é acompanhada com uma grande dose de ironia: apenas 5 anos depois este exclusivo de PS5 é um melhor filme do que aquele que chegou ao cinema em 2016 realizado por Kevin Munroe.

Para esse ritmo narrativo frenético e contínuo muito podemos agradecer as novas capacidades tecnológicas dos discos SSD. Apesar da muita informação gráfica presente em cada segundo de renderização de Ratchet & Clank: Rift Apart, a inexistência de loadings mesmo nas transições entre dimensões, por muito pequenas que sejam, tornam a fluidez de todo o jogo como uma longuíssima metragem, um épico colorido e detalhado que não tem qualquer interrupção, do primeiro ao último segundo.

Se dúvidas existissem com as imagens de teasing do ano passado, é no primeiro contacto com o jogo final que sentimos (à semelhança do que Returnal, noutra escala, conseguiu) que entrámos numa nova geração de processamento de videojogos. O nível de detalhe de partículas e elementos que compõem o nível, interligado com animações de diversos elementos de forma ágil, simultânea e fluída, tornam-no um dos grandes exemplos das verdadeiras maravilhas que a nova geração ainda terá para nos oferecer. A verossimilhança das texturas e superfícies – das quais, a título de exemplo, o metal do corpo de Clank é algo de nos deixar boquiabertos – espelha bem o tremendo salto geracional que existe entre o reboot de 2016 e este de 2021. Cinco anos apenas que parecem um salto de gigante em termos técnicos e criativos.

Mas é também no aproveitamento de todo o feedback háptico do comando DualSense, onde sentimos os passos de Ratchet (e Rivet) em diferentes superfícies, onde sentimos as vibrações que se tornam ainda mais reais pelo acompanhamento sonoro.

A história, sem pretensões de ir além do que se reconhece a si mesma, consegue trazer-nos momentos surpreendentes. Ratchet & Clank: Rift Apart apresenta-nos uma segunda dimensão paralela ao universo de Ratchet e do seu companheiro Clank, onde encontramos contrapartes de quase todos os personagens conhecidos. Seja o Dr. Nefarius, o anti-herói Captain Quark, ou mesmo os protagonistas, que numa jogada semelhante à que aconteceu em Adventure Time, têm na outra dimensão uma versão espelhada em género de si mesmos.

Mas Rivet é bem mais do que uma versão feminina de Ratchet, assim como o seu universo é muito distinto daqueles que nos habituámos. Há uma sessão de familiaridade na exploração espacial dos planetas que compõem o universo de Ratchet & Clank que ganha aqui uma nova forma ao visitarmos as suas versões alternativos. E é nesses saltos dimensionais que vamos resolvendo puzzles mas também que vamos avançando a história. Em segmentos de acção tão bem desenhados e caracterizados que os transformam em momentos de aprendizagem para o próprio cinema.

Mecanicamente todos os elementos que constituem um Ratchet & Clank estão de regresso. Seja o arsenal de armas criativo que pode ser upgraded e leveled up à medida que o jogo progride, seja no dinamismo e no exímio controlo de third person shooting dos protagonistas, e dos gadgets que vão ganhando.

Há pequenos pormenores de genial subtileza que quase passam despercebidos. Os inimigos robóticos, que vão sendo alvejados por nós com a mais variada panóplia de armas, vão lentamente perdendo peças, ficando danificados, até serem totalmente destruídos. Até o cenário ao ser atingido com uma “martelada” certeira tem uma alteração de textura para demonstrar essa interacção, ainda que na sua maioria não seja destrutível. 

Se os bons elementos que fazem deste Ratchet & Clank: Rift Apart um bom da série estão de volta, como o humor, a história pejada de acção e a criatividade no arsenal ao nosso dispor, também os mini-jogos regressaram em todo o seu esplendor, e talvez aquele que eu mais me diverti a jogar foi mesmo o da nossa anti-vírus robótica chamada Glitch. Uma espécie de tanque que controlamos e que consegue andar no chão, tecto e paredes e que tem de eliminar todos os vírus que contaminam os sistemas informáticos. Um bom e original momento de third person shooting que é simultaneamente uma homenagem a jogos de arcada do género.

Numa era em que muitos AAA ampliam a sua própria duração de forma artificial com demasiado busy work para nos manter entretidos, e muitas vezes, exasperados, Ratchet & Clank: Rift Apart tem a duração perfeita, mesmo para alguém que fez completionist como eu. A história principal, sem grandes desvios, rondará as cerca de 10 horas, sendo que os elementos coleccionáveis deverão adicionar umas 2-3 horas de caça ao tesouro. E é até na quantidade e qualidade dos coleccionáveis que percebemos a honestidade criativa da Insomniac em dar-nos o conteúdo que merecemos sem sentirmos que estão a “encher chouriços”. As muitas peças dos muitos sets de armadura para Ratcher e Rivet com bónus distintos associados, para além das caixas de Rarinium para upgrades das armas são motivos mais do que suficientes para tentarmos encontrar todos os elementos espalhados em cada planeta.

Destes elementos opcionais as pocket dimensions com pequenos puzzles de destreza e platforming são talvez os mais deliciosos, por sentirmos que os itens coleccionáveis que encontramos no final do percurso são verdadeiras recompensas à nossa jogabilidade.

Ratchet & Clank: Rift Apart ser o melhor Jogo do Ano até então tem apenas um sabor agridoce: a certeza que para o número de consolas PS5 vendidas, que o número de pessoas que poderão jogar este jogo verdadeiramente obrigatório é bastante inferior ao desejado. 

Ratchet & Clank: Rift Apart é um jogo visual e musicalmente deslumbrante em cada instante de jogo, mecanicamente exímio a espelhar um dos mais energéticos e intensos jogos de acção para toda a família. Um jogo magnífico que não só demonstra as potencialidades da PS5 e do seu DualSense, como deixa antever tudo o que nos vai surpreender no futuro próximo, demonstrando o porquê da Insomniac Games ter o seu passado recente repleto de verdadeiras joias dos videojogos. E Ratchet & Clank: Rift Apart é mais um desses tesouros.

https://www.youtube.com/watch?v=9p_gg9UW9k4