Nunca vou esquecer a primeira vez que perdi o fôlego quando a minha mente tentou identificar a minha insignificante presença na escala universal. Aos seis anos senti-me subitamente desesperado, petrificado e sem conseguir respirar, enquanto o meu cérebro tentou conceber os conceitos de infinito e eternidade. A importância e relevância que a nossa auto-consciência nos habituou é subitamente posta em causa pela incomensurabilidade universal onde nós somos, na realidade, invisíveis e irrelevantes.
Há cerca de dois anos revivi essa sensação que tantas vezes revisitei ao longo da minha vida, numa ida em família ao Planetário. Observarmos os acontecimentos cósmicos e galácticos e vê-los também a eles como perfeitamente inócuos no grande esquema do tecido universal, e ali, naquelas projecções da cúpula do edifício levar o nosso cérebro a identificar a nossa própria existência em microscopia naquele ponto vertiginosamente pequeno que é a Terra, à volta de uma estrela num dos muitos braços da Via Láctea.
A percepção de tudo o que está para lá dos limites da nossa existência – pessoal – mas também planetária é simultaneamente aterrador e maravilhoso. E imaginar a génese de tudo isto num momento onde o universo partiu de um ponto original e começou uma expansão de biliões de anos é dificilmente concebível pelas nossas limitações mentais.
Os criadores de Genesis Noir quiseram traduzir esses elementos Físicos numa linha narrativa tangível e interligada com a mais clássica história da literatura de bolso. Detective conhece cantora de jazz. Detective apaixona-se pela cantora de jazz. O saxofonista, ciumento, mata a cantora de jazz. Mas adiciona um elemento único: o detective tem de impedir o Big Bang de acontecer para reverter o assassinato da cantora de jazz.
Com pouquíssimas linhas de texto, Genesis Noir consegue contar uma das histórias conceptualmente mais ricas que vi nos últimos meses, conseguindo em simultâneo traçar paralelismos entre o início e expansão do universo com a vida dos três personagens: o nosso protagonista, o No-Man, a Miss Mass, e o Goldenboy (a cantora de jazz e o saxofonista, respectivamente). Definindo traços de entidades cósmicas a estes estereótipos de policiais, criando duas dimensões simultâneas com escalas universalmente opostas: entre o elenco de um filme noir e a sua representação enquanto forças cósmicas.
Mais do que um videojogo, é-me impossível não considerar Genesis Noir um dos melhores filmes de animação interactivos que já vi. A sua brilhante direcção artística encaixaria na perfeição no que de melhor e mais experimental tem sido desenvolvido no cinema de animação fora do circuito mainstream.
Todos os jogos de realização e composição visual que são feitos, com experiências e mudanças de plano evocam isso mesmo: uma linguagem plástica cinematográfica que torna toda a harmonia de linhas e manchas brancas, pretas e douradas uma obra digna de ser apreciada e imortalizada em milhares de screenshots.
Do ponto de vista mecânico, Genesis Noir é muito táctil. Podemos controlar o No-Man (não confundir com o genial e experimental projecto de art pop de Steven Wilson e Tim Bowness) com teclas, botões ou rato, com cliques. Os puzzles são resolvidos através de interacções: agarrar, puxar, preencher, agitar, entre uma série de movimentos distintos que tornam efectivamente as suas resoluções em algo que seria melhor resolvido num ecrã táctil.
Não sendo difíceis ou na sua maioria desafiantes, os puzzles acabam por ser a justificação mecânica entre os momentos narrativos. Alguns destes puzzles são extremamente originais, apesar da simplicidade, enquanto que outros são um pouco repetitivos e por vezes inegavelmente crípticos.
A acompanhar a direcção artística visual está uma excelente direcção artística auditiva, com uma banda sonora inteiramente composta por jazz que encapsula toda a experiência narrativa de Genesis Noir no ambiente que lhe é natural. A banda-sonora – que pode e deve ser adquirida adicionalmente ao jogo – foi composta por Skillbard, a experiente equipa londrina que tem desenvolvido brilhantes composições para videojogos, cinema e televisão.
Um exercício interessante de se fazer é ouvir a banda sonora isolada após terminarmos o jogo, e sentirmos como é que cada uma das 28 faixas nos transportam para capítulos específicos do jogo.
Se consigo apontar uma crítica no meio de toda a genialidade de Genesis Noir é que tem um ou dois capítulos que ou são inócuos, ou são longos demais, e que quase ferem a nossa imersão nesta experiência multi-sensorial única.
Genesis Noir não é um jogo para todos, nem tampouco foi concebido com essa perspectiva. Prova, sobretudo, que no meio de jogos mais comerciais existe espaço para momentos de pura genialidade artística, que eleva o meio ao mesmo que quebra preconceitos culturais. O pequeno estúdio novaiorquino Feral Cat Den assume assim uma abordagem de art house e traz-nos uma das experiências mais maduras e originais que o meio já assistiu, num dos melhores jogos que joguei neste ano de 2021.