Na grande corrida e lição que é este jogo da vida, confesso que a lista vai longa de títulos que poderia incluir no “Ia-me Esquecendo”. Ao longo dos últimos dois anos, a questão não foi bem o esquecer, passou por uma tremenda falta de energia para jogar videojogos. Não quer dizer que não jogasse, terminasse alguns, mas o prazer deixou de existir em diversos momentos por razões que me são difíceis de explicar. Vou tentar. Considerem isto como um gesto de purgar, de uma vez por todas, esta não vontade. Ou seja, de que tenho de sair desta depressão de que jogar é algo que me tira da realidade. Não é bem assim.

Tudo podia ter começado quando fui pai. E talvez tenha sido. Mas algo se passou antes. Nos expirados anos 1990 tentei, por breves momentos, cuidar de um Tamagotchi. Nas diversas tentativas o resultado foi dramático. Foi, talvez, o primeiro momento em que existiu uma parte de mim que resistia a esta coisa de criar criaturas ou personagens que não existiam. Algo que nunca entrou em choque com a minha euforia por JRPGs entre meados dos 1990s e a década seguinte, mas colidia muito com o sucesso a jogar The Sims, Minecraft (provavelmente o primeiro jogo que me fez sentir velho) ou Animal Crossing (tentei tantas vezes e tantas vezes me assalta o “porquê?”).

São exemplos entre muitos. A minha fobia ou falta de vontade por certas coisas é sempre menor do que a minha vontade de experimentar. O que fui entendendo nos últimos meses é que grande parte da minha falta de vontade de jogar videojogos advinha desta coisa intrínseca que existe hoje em muitos videojogos – pelo menos aqueles a que muitas vezes fico tentado a jogar – de criar coisas. E num nível mais baixo, de configurar tudo e mais alguma coisa.

Não tenho especial interesse por carros (nem tenho um). Adoro Fórmula 1 – de ver -, adoro jogar jogos de carros. Adoro jogar jogos de carros que não me fazem perguntas, que me permitem entrar num modelo qualquer, a qualquer momento, e desfrutar para a frente sem qualquer entrave ou perguntas. Deliro com Burnout Paradise (ainda hoje) e os Forza Horizon são a minha comfort food. Abomino Gran Turismo. Já tentei várias vezes, mas a camada de simulação não é de todo para mim. A partir do momento em que um jogo de carros me exige para escolher algo mais do que mudanças manuais ou automáticas, eu desligo. Não dá. A minha falta de vontade de embalar decisões virtuais para aproximar qualquer coisa no ecrã da realidade é superior a qualquer tusa que um jogo me dê.

Por outras palavras, cansa-me a personalização das coisas virtuais. No final do ano passado tentei jogar Watch Dogs: Legion, não por ter qualquer especial interesse na série – nunca me envolvi demasiado para terminar qualquer um dos outros dois -, mas porque parecia uma coisa divertida de experimentar na Xbox Series X. Apesar da rápida constatação de que Legion se congestionava a si mesmo numa série de B-A-BAs dos jogos do género em open world, insisti até perceber que a personalização que o jogo me pedia resultava sempre em falsas consequências para os meus actos. E eu tenho presente que não é o melhor exemplo, mas uma decisão inconsequente é uma decisão que poderia não ter sido tomada.

De regresso aos 1990s e aos Tamagotchi. Antes de ser pai encarei a coisa como criar um Tamagotchi sem lugar ao erro, à preguiça, à falta de paciência. Depois de ser pai, assumi que tem mesmo de ser um Tamagotchi que não posso deixar morrer (não estou a resumir a paternidade a isto, abracem a piada). Nas primeiras semanas estava muito assente a ideia de criar uma criança. Isto é, aprende-se como se deve manter vivo um ser vivo. É natural, menos assustador na realidade do que quando se pensa nisso, e mais intuitivo do que por vezes queremos assumir. E muito mais animador do que confirmar se um Tamagotchi está vivo.

Lembro-me de numa das primeiras semanas, ainda assoberbado por esta ideia de manter vivo um ser vivo, um condutor de Uber me apontar de que o que é difícil é quando eles têm três ou quatro anos (não me lembro dos anos e ainda não cheguei lá para articular isto com empirismo) e que é preciso educá-los. Educar, ora aí está um verbo que nunca me tinha passado pela cabeça em todo este processo de ter um filho, ser pai. Criar, por alguma razão, era o verbo dominante. Educar, algo inexistente. E desde então uma coisa distante com a qual terei de lidar quando isso chegar (talvez até já esteja a educar, mas não tenho distância temporal suficiente para o confirmar).

Estas ideias de criar e educar tomaram conta de mim. E aos poucos tornaram inacessível a minha vontade de jogar. Passei a ver os jogos de outra forma, o lado de entretenimento, passar o tempo, euforia, prazer ou de desligar o cérebro desapareceram sem aviso. Durante alguns meses – os últimos – jogar não me deixava feliz: gostava de culpar a pandemia, mas não tem nada a ver com isso.

Eu e os jogos estávamos com uma relação má. Uma depressão entre mim e eles (só entre mim e eles, eu estou bem). Talvez o ponto mais alto – ou baixo – tenha sido quando estava a jogar Returnal. Adoro os jogos da Housemarque. Quando comprei uma PlayStation 4 o primeiro jogo que joguei foi o Resogun. Deve também ter sido o jogo que mais joguei na PlayStation 4, tal como Super Stardust HD está nessa lista na PlayStation 3.

O que quero dizer é que a ideia de jogar um shooter naquele ambiente, com aquele conceito, era algo que me deixava para lá de entusiasmado. Contudo, algumas horas de jogo depois, o conceito de morte/repetição começaram a pesar em mim. O criar e manter alguém vivo, sempre presentes no meu dia-a-dia, não batiam certo com este mecanismo de jogo.

Foi mais ou menos neste momento que parei de jogar tão regularmente. Também foi mais ou menos aqui que comecei a perceber de que como a ideia de permadeath me aterroriza nos videojogos (sim, eu sou daqueles que desativa isso nos Fire Emblem). Depois de lidar com a ideia de vida/morte na vida real (experiência paternal misturada com muitas mortes de pessoas próximas nos últimos dois anos), a percepção da morte nos videojogos mudou completamente para mim.

O conceito de permadeath aterroriza-me pela sensação de controlo. Ou, melhor, da falta de dele. Estamos sempre entregues à aleatoriedade do código (mesmo quando o dominamos). E embora isso esteja – muito – presente na vida real, a vida real dá-nos ferramentas para fazermos ou acharmos que podíamos fazer mais. São ferramentas que nos dão algum conforto nas possibilidades e impossibilidades do desviar a morte.

A criação, múltiplas configurações, personalização e as diferentes formas de morte nos videojogos provocaram um pânico em mim de jogar. Efeito da idade, do desgaste no balanço trabalho/lazer ou de agora preferir fazer festinhas ao conceito de educar do que propriamente encontrar tempo para mim, para as minhas coisas. Seja o que for, tive de sair, para voltar a entrar. E vou atacar novamente Undermine, agarrar o boi pelos cornos e tirar da cabeça este peso de morrer como mecânica dos videojogos. Desculpem a seca, a falta de uma narrativa maior. Mas isto tinha de sair, para eu voltar a entrar.