Acompanhar o crescimento e a evolução de um criador é sempre um motivo de interesse para quem observa determinada área com um olhar crítico. Conseguir identificar essa progressão nas suas produções, de ver o talento e a capacidade técnica, artística e criativa dos autores. Nos videojogos esse crescimento é muitas vezes palpável, seja pelo sucesso comercial e crítico, mas sobretudo com o mediatismo em torno de determinadas empresas.

A sueca Zoink é um desses casos. Com alguns lançamentos no cinto aquando da criação do título que os catapultou para as bocas do mundo, Stick it to the Man, passando pelo facto de terem sido, com o seu Fe, os “estreantes” dos EA Originals, e de conseguirem agora, com Lost in Random, demonstrarem o seu salto para outro patamar bem distinto daquele onde começaram a ser falados.

É indiscutível que a qualidade das direcções artísticas dos jogos são dos seus maiores argumentos. E isso estendeu-se às primeiras imagens públicas que Lost in Random, onde este mundo Burton-esco nos cativa desde o primeiro segundo.

É interessante sentir que por baixo desta lenda gótica determinada se encontra uma mensagem política tão forte. A de um determinismo de vida antiquado, onde cada um se encontrava à nascença, por motivos que o ultrapassam, enfileirado num caminho de onde não conseguia sair. Onde “o que nascemos” se torna uma cláusula irrevogável “do que teremos de ser”.

A protagonista, Even, mora no reino mais pobre do mundo de Random: é uma Oner e viver em Onecroft. Em Random o 12º aniversário de alguém é o dia mais importante da sua vida: aquele em que o seu destino vai para sempre ficar vinculado ao lançamento do dado da Rainha. E é nesse dia especial que a sua irmã Odd é levada pela Rainha após o lançamento determinar que Odd é uma Sixer.

Even decide resgatá-la, seguindo um espectro que julga estar correlacionado com a sua irmã e que a vai levando pelas ruas dos seis reinos até chegar a Sixtopia.

É pelo meio dos tropeções que vai tendo pelo caminho que encontra Dicey, um dado consciente que a acompanha na sua aventura. Com todos os dados a terem sido banidos dado o poderio místico estrondoso que possuem, a capacidade de Even de se tornar uma Dice Bearer com a companhia de Dicey tornam-na uma ameaça à Rainha. Mesmo que Dicey esteja enfraquecido e lhe faltem pintas, impedindo-o de rolar valores mais elevados. 

Dicey é mais do que um companheiro: ele é na realidade a origem de todo o arsenal de combate de Even. Num sistema de combate original mas que após algumas horas demonstra que poderia ter sido aligeirado de outra forma, Dicey é a nossa única forma de combatermos os soldados da Rainha. 

Even não tem armas para além de uma fisga que tem de usar para quebrar cristais azuis que surgem no corpo dos inimigos. Os estilhaços destes cristais podem ser recolhidos por Dicey, para encher uma barra de energia (que nos permite lançá-lo) e para biscar mais cartas. Lançamos Dicey – que provoca uma desaceleração/paragem na passagem no tempo – e temos assim acesso – mediante o número que rolámos – aos pontos de energia disponíveis para comprarmos cartas. Cada carta tem um custo, e visto que as cartas não utilizadas são descartadas no final das nossas escolhas, podemos guardar algumas para o próximo “turno”. Chamar turno a isto é estranho, visto que temos esta componente de estratégia em que o tempo desacelera, mas todo o jogo se desenrola como um jogo de acção em tempo real.

As cartas podem ser armadilhas, feitiços, bónus passivo, ou mesmo armas, que são empunhadas por Even. Cada arma tem duração limitada e quebra-se após ser utilizada um determinado número de vezes.

Na tentativa de diversificar as secções de combate, os criadores da Zoink introduziram sequências que não são mais que jogos de tabuleiro gigantes, onde cada vez que lançamos Dicey o número que este rolou indica o número de casa que um peão gigante vai avançar. Os objetivos de cada um destes segmentos dependem de nível para nível, e pode ir de algo tão simples como chegar com o peão até uma determinada casa, ou ter de o utilizar para desbloquear canhões no “tabuleiro”.

O combate, como dizia, peca pelo ritmo, e por eventualmente se tornar demasiado longo e repetitivo. Há ideias interessantes mas após terminar o jogo fiquei com a ideia que os walking e running cycles de Even, para além das animações dos seus ataques, poderiam ser mais ágeis. Tudo parece merecer uma agilidade melhor e é indiscutível sentirmos a locomoção neste jogo como algo lento.

Adding the right cards to the deck can give Even and Dicey and advantage in combat in “Lost in Random.” (Electronic Arts)

No entanto, a excelente sinergia entre o componente de quase hack ‘n slash com as mecânicas do dado e das cartas tornam todas as ideias de combate de Lost in Random em algo verdadeiramente criativo, e que rapidamente apreendemos.

Ao longo dos seis reinos que visitamos – todos extraordinariamente criativos na forma como incorporam cada face de um dado – há um elenco de personagens memoráveis, bizarros e muitas vezes disformes, mas com aquele misto de assustador e de afável que os filmes de Tim Burton sempre tiveram. Para quem conhece o trabalho do director do estúdio, Klaus Lyngeled, isto não é de estranhar: os seus esboços, ilustrações e até esculturas sempre transpirar esta tremenda influência do realizador/autor norte-americano. Até as orquestras originais de Lost in Random parecem incorporar a estética musical de Danny Elfman, parecendo que foi o próprio compositor norte-americano a debruçar-se sobre este jogo.

Há muitas side quests para ganharmos dinheiro para comprar mais cartas ao Mannie Dex, editando desta forma o nosso baralho e arsenal, e algumas delas obrigam-nos a conhecer melhor os recantos dos diversos reinos de Random. 

Existem muitos diálogos, na sua maioria algo surreais, com frases que ora são mais profundas do que inicialmente transparecem, e outras que são mais bizarras do que a aparente normalidade que demonstram à primeira vista. Tudo isto encimado por um voice acting de excelência que envergonha algumas produções AAA.

Lost in Random é uma lenda negra e sombria ao estilo dos irmãos Grimm, onde mais do que uma história de reencontro entre duas irmãs, encontramos uma estratificação social ordenada por algo tão aleatório como o lançamento de um dado. Poder-me-iam dizer que o mundo real nunca teve este tipo de estratificação aleatorizada e eu dir-vos-ia que essa estratificação foi de uma forma metaforicamente semelhante, e que até aos dias de hoje, e em locais progressistas e cosmopolitas da Europa isso acontece. Mas o dado não é literal, mas sim um conjunto de acasos de pura sorte que determinam a vida de milhões de pessoas. Quem são os teus pais? Onde nasceste? Qual o acesso a oportunidades é que tens? Ainda que com um lançamento de dado metafórico, ainda hoje muitas gente está pré-destinada a um determinismo na sua vida que a impedirá de cumprir o seu próprio potencial. As fronteiras entre esses caminhos é que vão sendo mais derrubáveis do que em outros tempos. Mas ainda existem.

Quanto a Lost in Random é um daqueles geniais mundos que merecia uma vida para além do brilhantismo que alcançou nos videojogos. Um universo sombriamente delicioso que seria (será?) um filme de sucesso se algum dia a oportunidade surgir. E, a pouco meses do final do ano, junta-se a outro jogo da chancela EA Originals para lutar pelo meu topo de preferências de melhor jogo do ano. Se isto não é algo inesperado então não sei o que é. Tirando o Carlos Moedas vencer a Câmara de Lisboa. Mas isso é outro assunto.