Tenho sempre muitas reservas com reinterpretações e revisitas a obras culturais. Tenho ainda mais quando estas mesmas obras são magnum opus da Humanidade, provenientes de autores que pelo seu peso histórico, impacto artístico e significância cultural são, de alguma forma, intocáveis.

Diria que não é preciso estudar todas as inovações estéticas que Hitchcock introduziu no cinema, na forma de realizar, de compor o plano, de imaginar o dinamismo de filmagem conduzindo o olhar do espectador. Basta ver os seus filmes e perceber que são intemporais, gigantes na sua qualidade tantas décadas após terem sido produzidos.

O risco de adaptar um filme como Vertigo para videojogo é um risco gigante, que, se mal calculado, transforma esta tradução videolúdica num nado morto. Fazê-lo como os espanhóis dos Pendulo Studios fizeram, em que aproveitaram apenas a temática do filme e decidiram contar uma história nova, é um risco ainda maior.

Tirando já a dúvida vertiginosa do caminho: tirando o tom de thriller, a exploração da memória e as vertigens, tudo o que Alfred Hitchcok – Vertigo, o jogo, e Vertigo, o filme, de Alfred Hitchock têm em comum, é o nome. Diria até que se não fosse o name dropping óbvio de um dos maiores realizadores da História e do título de um dos seus maiores filmes, e a atenção dada a este jogo seria diminuta. Por outro lado esse mesmo name dropping fadou à nascença este videojogo pela constante comparação com a obra original do mestre cinematográfico. E perde a cada instante nessa comparação.

Mecanicamente há muito pouco em Alfred Hitchcock – Vertigo. Para mim não há problema nessa abordagem. Eu gosto de videojogos que são sobretudo filmes interactivos, se a capacidade de contar uma boa história me mantiver cativado e investido em toda a sequência. E há momentos deste jogo publicado pela Microids em que isso acontece. Mas em grande parte do tempo não.

Olhando para o filme original, baseado no livro D’entre les morts de Boileau-Narcejac, e o enredo deste videojogo,conseguimos traçar alguns ligeiros paralelismos. Em Alfred Hitchcock – Vertigo seguimos 3 personagens distintos: Ed Miller, um escritor que se tenta suicidar no início da história e que sofre de vertigens debilitantes, a sua psiquiatra, a Dra. Julia Lomas, e o agente Reyes, que investiga um homicídio.

O cruzamento destas histórias com as sessões terapêuticas de hipnose de exploração do passado e das memórias reprimidas de Ed acabam por criar momentos interessantes do ponto de vista narrativo, trazendo temas pesados para tecer a trama deste jogo.

Como dizia, à excepção de algumas interacções simples que vemos em jogos da Telltale e da Quantic Dream, há muito pouca agência da nossa parte. As parcas decisões são todas elas vazias, já que o jogo possui apenas um desfecho, e nada do que decidamos ou façamos vai alterá-lo.

Tecnicamente, Alfred Hitchcock – Vertigo tem algumas falhas. A primeira, foi o excesso de ambição da equipa dos Pendulo Studios e da real capacidade de reproduzirem a sua visão. Quiseram aproximar o seu jogo da estética de um The Walking Dead da Telltale, mas acabaram por ficar muito longe dessa intenção. Some-se a isto os problema de sincronismo entre lábios e fala (muitas vezes não há sequer movimento labial), e multiplique-se pelos infernais loadings, demasiado intrusivos e recorrentes, que nos estragam a imersão no thriller psicológico que este jogo quer representar.

Admito que tinha muita curiosidade para saber o que é que os históricos autores de aventuras tão boas como Runaway e Yesterday iriam fazer a partir de uma das obras mais icónicas do cinema. Mas o tamanho da desilusão é tão grande que nem o grande twist, reservado para o encerramento das cortinas, chega a cumprir o potencial deste título. Mas fica a lição: mexer com as grandes obras é um risco que tem de ser tomado com toda a consciência, sob pena de entregar a alma numa falhanço certo. Como aconteceu com este Alfred Hitchcock – Vertigo, uma história interactiva interessante, que é sempre esmagada pelo tremendo peso do seu próprio título.