Uma das coisas mais divertidas de se fazer é especular sobre um evento mais ou menos distante no futuro porque, lá bem no fundo, não temos nada a perder. Se acertarmos podemos ir buscar o artigo e dizer que sempre soubemos, se falharmos já ninguém se lembra. Nostradamus era um campeão nesse aspecto, eu sou somente um aprendiz, mas dos esforçados.
A Xbox tornou pública a intenção de comprar a Activision/Blizzard (doravante somente Activision) e o mundo entrou num frenesim. Muito desta atitude deve-se somente a uma alteração gradual do status quo vigente, onde a Sony tem vindo a dominar a seu belo prazer o panorama dos videojogos mais hard core, com os seus fãs habituados a somar vitórias sobre a Xbox, vivendo num mundo onde tudo era permitido e aceitável… até os papéis se inverterem, mesmo que somente de forma teórica.
Embora o jogo em si me diga muito pouco, entendo o falatório em torno da franquia Call of Duty (doravante CoD), já que é ano após ano o jogo mais jogado nas consolas, a verdade é que a aquisição da Activision engloba imensas franquias, algumas das quais já nem me lembrava e falo de Blur, Caesar, CoD, Candy Crush, Crash Bandicoot, Diablo, DJ Hero, Empire Hearth, Gabriel Knight, Geometry Wars, Guitar Hero, Gun, Hearthstone, Heroes of the Storm, Hexen, Interstate 76, King’s Quest, Laura Bow Mysteries, The Lost Vikings, Overwatch, Phantasmagoria, Pitfall, Police Quest, Prototype, Quest for Glory, Singularity, Skylanders, Soldier of Fortune, Space Quest, Spyro the Dragon, Starcraft, Timeshift, Tony Hawk’s Pro Skater, True Crime, World of Warcraft (doravante WoW) e Zork.
Cinco linhas inteiras de propriedade intelectual que vão muito além de CoD, WoW e Diablo. Alguns destes jogos estão adormecidos pois quem os fazia passou a fazer suporte para CoD. Vamos espreitar os estúdios da Activision por um segundo. Blizzard Entertainment, King.com Limited, Major League Gaming Corp., Activision Blizzard Studios, Activision Blizzard Consumer Products Group, Beenox, Demonware, Digital Legends Entertainment, High Moon Studios, Infinity Ward, Raven Software, Sledgehammer Games, Solid State, Toys for Bob e Treyarch.
Mais uma vez, se a aquisição fosse feita pela Sony era assumido de imediato que todos os jogos seriam exclusivos e não se falaria muito mais nisso, mas sendo a Xbox e questão muda incompreensivelmente de figura. Na minha opinião há lógica nesta discussão, embora não pelas razões habituais de fanboy, razões essas que me dizem muito pouco.
Há muito tempo que há uma percepção de imparidade entre a oferta do Game Pass para a consola e o PC. Ultimamente já não sentia muito isso, mas esporadicamente lá havia um jogo maior que entrava na consola e não no PC. O contrário também existe, mas parece que não se fala tanto nisso. Uma das lacunas que esta aquisição visa colmatar é essa mesma. Não esqueçam que o negócio da Xbox neste momento não são as consolas é o Game Pass. A Xbox tenta emular o que a companhia mãe tem feito com imenso sucesso, a integração do seu ecossistema em praticamente todo o lado, para que consigamos jogar de forma similar independentemente de onde estivermos. Neste sentido não vejo qualquer problema em manter CoD na Playstation, digo o mesmo para Overwatch, em última análise até melhora o serviço já que os jogos contam com crossplay. Embora entenda a conversa de fanboy, há poucas razões para os retirar, já todos os outros…
O tio Phil refere amiúde que a sua luta não é com a Sony ou com a Nintendo, se bem que a Nintendo não entra nesta guerra, limita-se a continuamente ser o líder na sombra sem que muita gente pareça incomodar-se. A entrada no mundo dos videojogos de gigantes como a Amazon, Google e Facebook pode gradualmente mudar todo o paradigma a que estamos habituados. Neste momento ainda lhes falta o know-how, mas dêem-lhes tempo suficiente para aquecer o motor e logo veem. Neste sentido a Xbox tem que se colocar agora enquanto tem a vantagem de jogar com as peças brancas e ter tido a hipótese de fazer o primeiro movimento. É investir agora enquanto o forno está quente, pois no futuro dificilmente não terá concorrência. E, já agora, enquanto escrevo esta opinião, inicia-se o rumor que a EA também estará disponível para aquisição… aceitam-se apostas.
Se olharmos para diversidade de portefólios entre Xbox e PlayStation não tenho qualquer dúvida de qual é o mais diverso. A Sony tem o seu público alvo muito bem identificado e é exímia em produzir para ele. Para ser sincero não vejo grande motivo para mudar a sua forma de agir, já que dificilmente vão perder uma percentagem significativa de fãs, pois os seus exclusivos continuarão a ter uma qualidade ímpar, provavelmente irreplicável pela Xbox dada a multiplicidade de sistemas para o qual lançam um jogo e dada também a natureza mais dispersa dos jogadores. Por um lado, são mais casuais, por outro muito mais dedicados a jogos multijogador.
Esta disparidade de público também faz com que, mesmo tendo o portefólio mais diverso, lhe sejam sempre apontadas falhas no mesmo. Há muito que apontam a falta dum jogo com uma mascote, algo que poderia muito bem ser suprido por Banjo & Kazooie, porém a Xbox, e bem, alterou a sua política perante os seus estúdios e encontra-se neste momento numa encruzilhada gira. Uso este caso como exemplo, a Rare foi forçada à mediocridade do Kinect durante imensos anos. Aproveitaram a liberdade para fazer Sea of Thieves, que embora mediano à nascença se revelou uma pérola de jogo. Está também a produzir o enigmático Everwild, que ninguém sabe bem o que é. Onde é que isto deixa Banjo & Kazooie? Na gaveta. A Rare não tem neste momento nenhum interesse em voltar à franquia. Sabem quem também tem mascotes? A Activision. Quer Spyro quer Crash são excelentes mascotes, assim haja a vontade de os produzir.
E a história do PC, afinal? A Blizzard sempre foi conhecida por ser o estúdio dos jogos para PC. Claro que Overwatch e Diablo já encontraram o caminho para as consolas, mas há muita expectativa com WoW, quer sobre o simples facto de entrar no Game Pass, quer pela possibilidade, mesmo que ínfima, de encontrar o seu caminho para a Xbox. Uma coisa é inquestionável, franquias como Diablo, Warcraft ou Starcraft no Game Pass para PC nunca na vida serão um mau negócio para os subscritores.
Outro ponto importante é… o Candy Crush, ou melhor, os jogos mobile. Eu já nem me lembrava disto, mas Candy Crush é dos jogos mobile mais rentáveis do mundo, apenas batido por alguns gigantes chineses. Com esta aquisição a Xbox ganha pegada imediata neste mundo onde já tem The Elder Scrolls: Blades, The Elder Scrolls: Legends ou Fallout Shelter. Em termos de dimensão são campeonatos completamente à parte e ainda vem Diablo Immortal a caminho. Por muito que estes jogos sejam desconsiderados, a verdade é que são muito rentáveis e geram dinheiro a pontapé. Considerando que, fora a piada, todos temos telemóveis, conseguir colocar o logo da Xbox à nossa frente quando associado a um jogo móvel casual é mais uma forma de diversificar a marca.
E por falar em diversidade… o Metaverso. Sim, essa cena. Pessoalmente acho que a grande luta da Microsoft/Xbox é neste campo. Há muito que a Microsoft investe na realidade aumentada e no uso de hologramas quando associados ao Hololens. Este investimento é essencialmente a nível profissional, mas já se fazem algumas experiências no Minecraft. Aqui a luta afigura-se árdua, com o Facebook já com múltiplas redes sociais adquiridas e interligadas, um produto de realidade virtual mais acessível que a concorrência e nenhum problema em usar criptomoeda ou NFTs seja onde for. Fala-se à boca pequena que a Blizzard tentava integrar todos os seus mundos para criar algo neste sentido. Será que a Xbox está a tentar comprar este conhecimento? Será esta aquisição muito mais que a simples aquisição de jogos, mas a aquisição duma posição segura para o futuro?
Mais que a guerra das consolas eu acho que é aqui que eu acho que esta aquisição faz sentido. A Activision é uma companhia carregada de problemas até às orelhas, mas é inquestionável que está muito bem posicionada em vários campos do tabuleiro. Com esta aquisição a Xbox pode dar-se ao luxo de reforçar toda a sua oferta actual, ao mesmo tempo que se posiciona de forma segura para mudanças bruscas de paradigma no futuro.
Pessoalmente eu acho que isto é muito mais que simplesmente manter CoD exclusivo, é uma jogada que faz imenso sentido, que apenas pode correr mal porque sabemos que a Microsoft tem a fama e o proveito de queimar muitos dos seus investimentos, e este é um investimento de risco. Está a tentar se varrido um bocadinho para debaixo do tapete, mas a Blizzard merece uma limpeza jeitosa associada à sua política interna de discriminação e assédio. Com esta aquisição a Xbox está na linha de fogo, pois no fundo está a assumir uma dívida que pode não conseguir pagar. Se não resolver este problema será ferozmente censurada… e com toda a razão. Certo que foram certamente estes problemas que também podem vir a permitir esta aquisição, já que neste momento a Activision é quase um activo tóxico.
Há que esperar para ver, mas até lá vou aproveitar o meu espaço de jogador e usufruir daquilo que esta aquisição me pode oferecer. Mais de 30 estúdios a produzir, e uma miríade de propriedade intelectual ao mesmo tempo… bons tempos para os jogadores!