1984 é o meu romance favorito. Quando vi o trailer de Not For Broadcast pensei que o meu papel seria o de Winston Smith e teria de reescrever a história todos os dias, consoante a actualidade da guerra e aliança com a Eurásia ou Lestásia. Afinal o meu papel não era esse, era muito mais mundano, porém muito mais professo porque ao mesmo tempo fazia de Winston e de Ministério da Verdade.
Em Not For Broadcast fazemos o papel do tipo da régie de um programa noticioso de um país onde a Extrema Esquerda acaba de chegar ao poder. Aparentemente as nossas funções são apenas técnicas. Temos de escolher o monitor certo para transmitir, passar os anúncios, impedir interferências na imagem, seleccionar imagens para acompanhar as notícias ou os efeitos sonoros a entrar durante uma actuação. No fundo é o papel que o nosso querido líder desempenha na gestão do portal.
Ao mesmo tempo que aprendemos e interiorizamos estas tarefas corriqueiras a história vai girando à nossa volta. Há decisões a tomar com a nossa família e colegas. A maioria aparentam ser situações banais, outras onde claramente percebemos que estamos a tomar uma decisão importante. Este evoluir da história não é sempre na régie, muitas vezes é-nos apresentada entre as emissões sob forma de texto, e algumas vezes parece que poderíamos ter mais controlo sobre o que se está a passar ou mais opções para escolher.
Não foi positiva a minha primeira impressão do jogo. O meu PC anda um bocado maluco e não reconhecia o comando. Para um jogo de computador achei muito estranho ser virtualmente impossível jogar com teclado e rato. Mudei para o portátil, embora a refilar. Já no portátil não me permitia executar uma das acções que se pode fazer depois de acabarmos uma transmissão, aparecia tudo em branco. Tive de recomeçar. Quando me irrito com um jogo é normal acabar por não o voltar a jogar, mas felizmente insisti.
Para um jogo que aparenta ser feito nas traseiras de minha casa a representação é imaculada. Raramente fixo o nome dos personagens dos jogos, até é frequente ir procurá-los se for necessário mencioná-los na análise, mas aqui o senhor Jeremy Donaldson entrou imediatamente no meu vocabulário e imaginário. Não só os momentos sérios são bem representados, tudo quando é chunga e batanete é ainda mais cuidado já que é extremamente difícil fazer resultar esses momentos.
Enquanto jogamos não percebemos de imediato que os criadores do jogo nos estão a levar no engodo da história, criando bases graduais para as mudanças enormes que estão a acontecer à nossa volta. Aos poucos vemos o mundo a mudar, os personagens a mudar, as mentalidades a mudar. Aos poucos vamos percebendo que temos um papel interventivo no que transmitimos à população, que as nossas decisões importam e isto é ao mesmo tempo a pièce de résistance e o problema do jogo.
Há um sistema de classificação das nossas transmissões consoante o nosso desempenho, que se reflecte não só a nível monetário como de afinidade com o partido, oposição e entidade empregadora. Controlar todas as mecânicas do jogo é simples no papel, mas requer atenção constante, minúcia com controlos e grande agilidade com os dedos. Cedo percebi que a minha alma velha não conseguia prestar atenção a tudo e ainda escolher o rumo da história. Felizmente o jogo reconhece que tem esse desafio e oferece-nos um nível que baixa muito a dificuldade. Estava a ser lambareiro, baixei um bocadinho a dificuldade e consegui conciliar tudo, não que me importasse muito com a qualidade da transmissão, mas mesmo assim…
Não consigo ser eloquente o suficiente no elogio à forma como a história nos conduz porque, acreditem, somos conduzidos. Há decisões significativas em qualquer uma das alturas, muitas delas baseamos na informação incompleta que nos fornecem a cada instante. São ratos nesse aspecto. Na minha primeira run creio ter-me arrependido da grande maioria das decisões que tomei e é essa a intenção mordaz do jogo, mas mesmo assim o meu tradicional cinzentismo permitiu que o final que me calhou fosse exactamente o que eu queria que acontecesse.
O mundo não muda todo duma vez. As ideias extremistas vão sendo implantadas gradualmente, dando tempo ao aparecimento da díade controlo/resistência. Olhamos para estas imagens condicionados pela nossa percepção da nossa realidade, mas cada vez que parecemos seguros das nossas ideias há sempre algo atirado para a fogueira que nos fornece mais um ponto de vista sobre a nossa acção.
É bastante complicado explicar o quão bem feito Not For Broadcast está. Mesmo que as mecânicas não me tenham interessado muito, admito que estão bem conseguidas, mas para mim o melhor dele é mesmo as situações em que nos coloca, os partidos que constantemente nos obriga a assumir, as situações desconfortáveis que constantemente nos apresenta. Tem múltiplos finais, mas ao começar a segunda run já não senti nada perto do impacto inicial e desmotivei. O valor do jogo está mesmo nesta primeira impressão.
Parecia inicialmente um jogo simples e sem sal, muito afastado do meu adorado 1984, mas acabo a pensar que a inspiração está lá e, acima de tudo, todo o espectro de emoções que inicialmente esperava conseguir experienciar foram largamente ultrapassados. Not For Broadcast veio do nada, mas vale muito. Não o deixem escapar. É brilhante em mais que uma dimensão, ao ponto de me fazer pensar que, numa sociedade democrática como a nossa, todos deveríamos jogá-lo já que nos mostra perfeitamente algumas possíveis consequências de deixarmos os outros decidir por nós. Se o portal tivesse um selo de qualidade para colar nos jogos, este levava uma data deles.