À procura de escape #02
Cada um encontra as ferramentas que melhor lhe servem para ultrapassar os momentos difíceis da sua vida. As últimas semanas têm sido particularmente difíceis do ponto de vista mental, em alguns momentos com sérias dificuldades em segurar as rédeas da ansiedade e impedir uma debandada das minhas emoções. E falava, na semana passada, da necessidade de encontrar um jogo que servisse de sucedâneo terapêutico, cujo espírito descontraído me permitisse utilizá-lo como elemento apaziguador da minha ansiedade.
Como vimos pelo artigo que publiquei, Clouzy! poderia tê-lo sido, mas a sua falta de qualidade negou-me essa possibilidade. Num momento em que milhares (milhões?) de jogadores estão a dedicar dezenas de horas da sua vida a Elden Ring (no qual eu neste momento começo a incluir-me), nas últimas duas semanas em investi cerca de 60 horas num jogo indie em Early Access, cheio de falhas e inacabado. E esse jogo é No Place Like Home. A minha companhia nocturna desde que a invasão russa se iniciou, e que me acompanha enquanto assisto a noticiários ingleses, franceses e ingleses no YouTube.
À semelhança do que tantos objectos culturais nos apresentaram – numa realidade distópica que está a caminho de ser nervosamente plausível – o planeta Terra ficou cheio de lixo e a Humanidade acabou deslocar-se para Marte num grande êxodo populacional, ficando para trás apenas uma meia dúzia de humanos, dos quais a nossa protagonista é um dos exemplos.
A paisagem é quase irreconhecível com pilhas de lixo que preenchem quase todo o cenário, apenas com um punhado de árvores, teimosamente a mostrarem alguma vida no meio da desolação.
A nossa protagonista é uma das pessoas que ficou para trás quando a Humanidade decidiu tentar a sua sorte em Marte. Munida de um objecto que parece o Poltergust 3000 do Luigi mas numa versão canivete-suíço, cabe-nos a tarefa de limpar o cenário de todo este lixo, reciclá-lo, e reutilizar os seus recursos.
Com uma broca capaz de furar estas pilhas de lixo, com um aspirador que consegue de forma mágica absorver tudo numa pequena mochila às costas (tecnologia da TARDIS, diria), incluindo água, para além de conseguirmos ainda usá-lo como mangueira.
O loop de cada nova zona que descobrimos é idêntico: perfurar e aspirar todo o lixo, e combater os robots agressivos que por ali andam, sendo o combate neste momento é capaz de ser dos momentos mais desinteressantes de No Place Like Home. Existem 2 a 3 tipos diferentes de robot, e desde que descobri que não preciso de utilizar a broca (seja em modo perfuração, seja a atingi-los como um objecto contundente), mas sim a regá-los para os destruir, conhecendo os seus padrões e conseguindo destruí-los a todos sem que me consigam dar qualquer dano.
O jogo, como muitos similares, divide-se em duas partes: a de exploração e a de gestão da nossa casa e campo de cultivo. Não fosse o facto de estarmos municiados de uma mangueira um indicador que a agricultura é um ponto forte deste jogo.
Vamos recebendo sementes de diversos vegetais, frutas, árvores e flores na nossa exploração e no cumprimento de quests. Em No Place Like Home os espaços de cultivo são limitados, e são também encontrados nos mapas. E é nesses espaços (inicialmente limitados) que vamos plantando todas as sementes que recebemos, sendo que as árvores podem ser colocadas em qualquer local.
Uma ideia interessante deste No Place Like Home é que à medida que vamos limpando os mapas – e visto que cada porção deste mundo é uma instância separada por uma porta das restantes – podemos considerar essas mesmas zonas uma extensão da nossa casa, ou seja, podemos construir edifícios ou plantações em qualquer zona. Os inimigos não fazem respawn, e a gestão do espaço é crucial num jogo como este.
Apesar do jogo ter uma full release hoje com a última zona (e o último capítulo da história), eu investi cerca de 60 horas a limpar todos os mapas nos diversos capítulos, nos diversos biomas – deserto, floresta, neve. Completei todas as quests, entrei em todas as “dungeons” secretas, apanhei todos os itens, travei amizade com todos os animais (para isso basta que tenhamos lugar para eles no edifício que os alberga, e termos o alimento que eles gostam de comer, e automaticamente mudam-se para a nossa “cidade”. Tenho vinte baús cheios de sementes e materiais excedentários, de alimentos que colhi e que estou a guardar ora para conservas (uma das “moedas” do jogo) ora para completar futuras quests que o exijam.
(Um pequeno update: enquanto revia este texto o patch final do jogo chegou e eu já completei o último capítulo, algo que demorei 10 minutos a fazer).
O loop mecânico de progressão não é novidade, mas exigiu-me limpar e explorar todos os cantos do mapa. Necessitamos de recursos progressivamente mais raros para comprar blueprints de novos edifícios, e posteriormente construí-los e comprar/efectuar os seus upgrades que os tornam mais eficazes. O mesmo acontece para os upgrades do nosso equipamento. E visto que conseguimos desbloquear novos biomas antes de terminar um determinado capítulo, isto obriga-nos a andar muitas vezes para a frente e para trás.
Esta é, aliás, uma das minhas grandes críticas ao jogo. Eu bem sei que o estive a jogar em Early Access, e que para azar meu apenas no último dia em que o joguei (e terminei todo o conteúdo que ele dispunha até hoje) é que foram introduzidos pontos de fast travel. O que significa que muito das 60 horas de jogo que tinha foram passados a teleportar-me até casa, e a utilizar uns túneis de atalho para determinados biomas. E aí percorrer caminhos infindáveis até chegar às secções de mapa onde queria ir.
No Place Like Home é visualmente interessante, e é curioso como a partir desta temática do mundo desolado pelo lixo os seus autores conseguiram desenvolver uma direcção de arte colorida e que torna o jogo bastante apelativo. A isto somam-se alguns momentos de “fofura” como a capacidade de colocarmos chapéus nos animais que temos, sejam galinhas, vacas ou outros.
Outro problema que senti de forma recorrente com No Place Like Home – tirando os momentos em que o chão magicamente desaparecia e eu caía para o vórtice do nada para além do level design – é que por vezes os elementos interactivos no cenário (necessários para terminar quests) se mesclavam demasiado bem com tudo o resto, e por vezes percorri todo o mapa de uma ponta à outra sem saber o que fazer.
Ainda assim, a forma relaxante como, se investirmos tempo suficiente, podemos simplesmente todo o mapa de jogo plantado com árvores, com currais, galinheiros, canteiros, estufas, plantações agrícolas, é um dos seus elementos mais interessantes. Ao contrário de tantos jogos, em que a zona inicial perto da nossa casa é a única que permite construção/plantação, No Place Like Home leva-nos mais longe permitindo que replantemos todo o mapa a que temos acesso, que o limpemos e que lhe demos vida, depois da destruição. E essa uma mensagem positiva, num jogo que começa no crepúsculo da Humanidade.
No Place Like Home ainda está em Early Access, tem muitas falhas, e grande parte das muitas horas que passei nesta Terra alternativa não tinha muitas das correcções e teleportes que me teriam poupado muito tempo. Mas isso não significa que este jogo seja menos interessante por isso. Dentro dos jogos de aventura com um grande foco na exploração e na agricultura, No Place Like Home consegue fazer a maioria dos elementos bem: sabe agarrar-nos, sabe criar um loop interessante e coeso, e apresenta-nos um mundo que realmente podemos alterar.
Agora que o terminei, acho interessante a forma como ele é diametralmente oposto ao que eu conheci. A Terra continua desolada, com apenas um punhado de pessoas espalhada pelo mapa, mas o lixo foi todo reciclado, a paisagem tem ruínas mas pelo meio delas erguem-se as plantas e árvores que cultivei, os animais agrupam-se animada e pacificamente. Tanto pensamos no mundo real no impacto que deixamos no mundo, que No Place Like Home nos permite fazê-lo: deixar a nossa marca num mundo, ainda que virtual, deixando-no num melhor estado do que aquele que o conhecemos.