Quando há pouco mais de um ano vi o anúncio para Triangle Strategy, cedo ansiei por um sucessor espiritual de Final Fantasy Tactics, essa obra maior – pelo menos em popularidade – dos RPGs tácticos até em 2013 Fire Emblem ter arrebatado esse lugar que nunca mais abandonou. Qual não foi a minha surpresa quando percebi que a nova empreitada de Tomoya Asano é algo bastante único, antes uma carta de amor à própria ideia de RPG táctico. E que maravilhosa empreitada esta para mim, mas não sei se para todos. Está só uns furos abaixo de candidato a jogo do ano – o que não lhe tira o mérito de ser um dos grandes jogos do ano – porque escolhe não incorporar elementos que em nada comprometeriam as suas virtudes, mas muito lhe daria em variedade e formas de o jogar. Ah, Teimoso Asano…

Estas primeiras linhas estão a demorar muito a sair-me das teclas, pois haveria várias formas de abordar este jogo. Consultei, no entanto, a minha Balança da Convicção (isto soava melhor em inglês…) e vou-vos levar pelas mesmas três etapas que trilhei em Triangle Strategy: Liberdade, Utilidade e Moralidade.

Junte 20g de convicção em cada prato da balança.

Liberdade: será que este jogo é para vocês?

Provavelmente já leram umas quantas análises na data de lançamento há duas semanas e, como é habitual, o Rubber Chicken poupa-vos a descrições técnicas e sensaboronas do jogo. Uma frase chega: têm um grupo de personagens para combater os maus num mapa quadriculado por turnos, embrulhado num estilo artístico saudoso dos 8 aos 32 bits com uma narrativa que ramifica consoante as escolhas que vão fazendo entre capítulos.

Numa decisão que continuo a aplaudir desde o primeiro Bravely Default em 2013 e que devia ser um standard da indústria, a Square Enix lançou demos em todos estes seus jogos retro-inspirados (dedicarei todo um artigo a esta política em breve que ligarei a este) e Triangle Strategy não foi excepção. Joguem 2 horas do Debut Demo que vos dá duas boas batalhas e uma amostra da envolvente trama política e suas longas cutscenes. Se estiverem a bordo, joguem umas 4 horas do Prologue Demo que vos dá acesso aos dois capítulos iniciais do jogo, que podem transportar para o save da versão final – com mais umas batalhas e muitas cutscenes.

Cutscenes. É aqui que está o fator que mais gente vai afastar deste jogo. São muitas. E longas. Em particular nos primeiros capítulos, em que o continente de Norzelia, as suas três nações e respetivos personagens nos são apresentados, passamos aqui mais tempo do que a combater. A amostra é realista: o resto do jogo também é assim, embora as batalhas passem a demorar mais tempo e temos sempre a escolha das mental battles (estou a olhar para ti, primeira saga de Dragon Ball Z) para desenjoar. O ponto chave? Se a história vos aguça a curiosidade, a viagem vale imenso a pena.

Num mapa de Norzelia, vamos vendo os acontecimentos da história como se de um tabuleiro de jogo se tratasse.

Nem todos os jogadores terão paciência. Asano já disse publicamente que o jogo está tão repleto de segmentos narrativos porque toda a trama foi primeiro escrita como se de um livro se tratasse, para depois serem adicionados os elementos de game design em redor. Só nessa fase ficou decidido que se trataria de um RPG táctico e não de um RPG normal. O tom é muito adulto, repleto de áreas cinzentas. Está bem no encalço do primeiro Final Fantasy Tactics da PlayStation, com ligeiros toques mais leves das iterações de FF Tactics Advance ou FF Tactics A2: Grimoire of the Rift. Dei por mim não só a jogar Triangle Strategy, mas por vezes a ver. Algumas sequências de cutscenes onde só precisava de avançar entre si com um botão foram vistas enquanto jantava ou lanchava, já que o texto pode avançar autonomamente e é totalmente falado pelos personagens.

Experimentem uma ou as duas demos por ordem. Avancem ou não, assumam a vossa escolha. Está dado o mote para o resto do jogo e explicada a primeira das grandes Convicções, a Liberdade: aqui representada pela audácia de tomar decisões sem medo ou fragilidade, assumuindo consequências pelos nossos riscos.

Há gente bem poderosa neste jogo.

Utilidade: agora que já vos agarrei, eis o que Triangle Strategy quer que façam

A demo que me permitiu adiantar umas horas desta análise antes do lançamento deixou-me também confortável com o funcionamento das mecânicas. A narrativa gira em torno da geopolítica de Norzelia, cuja paz precária entre três nações (estou a olhar para ti, Fire Emblem Three Houses), assente no desequilíbrio da distribuição de recursos naturais (aqui o sal, mas também o ferro, movem toda a trama), leva a que a guerra eventualmente se instale.

A história é contada apenas da perspetiva do protagonista, Serenoa, príncipe da casa Wolfort, o que lhe dá muito foco. Se Octopath Traveler nos dava oito narrativas que em nada se cruzavam, Triangle Strategy dá-nos uma grande narrativa – que ramifica – para a qual contribuem as diferentes motivações dos personagens que rodeiam Serenoa. Enquanto FF Tactics tinha meia dúzia de personagens e o grosso do nosso exército eram apenas arquétipos de certas classes de combate, aqui combatemos lado a lado com estes companheiros cheios de personalidade.

As influências de Fire Emblem, admitidas por Asano em entrevista, moldam, contudo, algo diferente: não há mortes permanentes em combate, pois a história precisa de (quase) todos os personagens vivos para avançar. Ao mesmo tempo, a progressão de classes é linear e exclusiva a cada um – Serenoa é sempre um warrior, Erador um tank, Frederica uma fire mage, etc. Voltando a Octopath, as aptidões de combate de cada personagem são sub-texto directo para as suas personalidades e convicções, presentes na narrativa. É aqui, contudo, que sinto falta de alguma maleabilidade das builds disponíveis: FF Tactics, Octopath Traveler ou Fire Emblem dão-nos classes alternativas ou secondary jobs; Triangle Strategy é obstinado em fazer-nos montar a estratégia em torno do que temos. A mesma coisa acontece com o equipamento – só podemos equipar dois acessórios em cada personagem, para benefícios como resistência aos elementos ou algum boost a um atributo. Uma das melhores coisas de FF Tactics, especialmente na era dos exclusivos da Nintendo, era o variado e colorido equipamento (capacetes, armas, armaduras e calçado) para cada personagem, e a aventura de o coleccionar. Um elemento que teria caído lindamente em Triangle Strategy, sem prejuízo do seu foco narrativo.

Ritz, és tu?

No combate está muita da unicidade de Triangle Strategy. De volta estão os pontos de acção cumulativa de Bravely Default e Octopath Traveler, agora baptizados de Tactical Points, para utilizar em ataques ou feitiços especiais. Rodear um inimigo dá direito a um ataque espoletar outro pelo companheiro no lado oposto. Há ainda mecânicas exclusivas em certos mapas – podemos usar vagões numa mina para movimentar o nosso personagem mais rapidamente (e atropelar inimigos nos carris pelo caminho) ou pegar fogo a meia aldeia para fazer face a um inimigo avassalador. Mecânicas como esta última são especialmente únicas já que a nossa decisão de as utilizar ou não tem consequências de longo prazo na história e em quais desfechos nos estão disponíveis mesmo no final. E isso mostra exímio game design, onde tudo o que fazemos tem consequências na narrativa: falar mais ou menos com NPCs, comprar mais ou menos itens, utilizar mais ou menos certo tipo de personagem.

Ao início, parece muita pressão, eu sei. Não saber se o que estamos a fazer nos vai levar onde queremos. Mas é precisamente aí que Asano quer que o jogador vá: decidindo aquilo que lhe parece melhor, a caminho de um desfecho alinhado com as suas convicções. Nos momentos chave entre capítulos, são-nos apresentadas 2 ou 3 alternativas para o que fazer em seguida: visitar esta ou aquela nação? Salvar este ou aquele personagem? Aliarmo-nos com qual potência? Em vez de simplesmente tomar uma decisão, Serenoa apoia-se nas tradições da casa Wolfort e vai buscar…uma balança.

Arte de cortar a pixelização.

As Scales of Conviction, ou Balança da Convicção (prometo que não lhe chamo mais isto), são a grande novidade mecânica que molda tudo em Triangle Strategy. Com a nossa party inicial de companheiros, cada um vota em qual dos caminhos a entourage deve seguir na história. Serenoa deve deixá-los sossegados a decidir ou tentar influenciar a sua escolha, argumentando de forma a apelar às convicções de cada um. Por entre curtas fases de exploração em alguns mapas, vamos recolhendo documentos e opiniões de pessoas que nos dão informação sobre consequências de cada escolha diante de nós. Só que não há uma resposta certa, nem sequer óbvia para a maioria delas. Com essa informação, pode até nem ser relevante utilizá-la para convencer os nossos companheiros que o caminho que pretendemos é o mais adequado, antes utilizar outro dos argumentos já disponíveis para melhor apelar à sua personalidade. E mesmo que encontremos a resposta ‘certa’ para tal personagem, eles só serão convencidos se o nível das convicções de Serenoa for alto o suficiente para os influenciar, consoante muita ou pouca pré-disposição a mudar de opinião tenham.

Parece complicado, eu sei. À medida que jogamos, isto torna-se claro de forma mais simples e gradual, mas o essencial é: tal como na vida, há pessoas que estão dispostas a ouvir-nos para mudar de opinião, outras não, e pessoas mais convincentes inspiram outros a segui-los. Sejam Jesus Cristo, Steve Jobs ou Vladimir Putin. No final de cada votação, os nossos esforços para influenciar os outros podem não ter sido bem sucedidos e lá vamos nós num caminho que não escolhemos individualmente, mas a maioria sim. Que a democracia esteja presente num RPG táctico de forma tão elegante através de uma simples mecânica é delicioso.

Numa primeira playthrough, não vemos quão fortes são as nossas convicções em Liberdade, Utilidade ou Moralidade. Diferentes respostas e acções avisam-nos apenas que “as convicções de Serenoa foram fortalecidas”. É de propósito para o jogo nos levar ao caminho que, de forma natural, a nossa personalidade nos levaria. No New Game+ já conseguimos ver esses valores e tentar guiar mais a nossa postura no sentido de um desfecho específico.

E assim vos mostrei como funciona a Utilidade: através da lógica, ponderação e análise do custo-benefício, tomar-se uma decisão que nos dê a maior probabilidade de sucesso. Como qualquer uma das outras duas, é por vezes necessária nas tomadas de decisão, e alguns personagens são mais suscetíveis a ela que outros.

Ir com a onda é muito um tema neste jogo.

Moralidade: levar um soco no estômago com um sorriso

No estilo 2D-HD está novamente uma impressionante direcção de arte, com iluminação moderna e efeitos visuais de encher o olho no meio de arte tradicional e uma desenvolta pixel art. Por não ser novidade, remeto-a como cereja no topo do bolo e fantástico plano de fundo para a narrativa e jogabilidade que decorrem em Triangle Strategy, para a qual contribuem também uma memorável banda sonora de Akira Senju.

Se na Liberdade vos deixei claro do porquê jogar ou não jogar Triangle Strategy – é mesmo daqueles em que faz sentido não dar uma nota concreta, pois a proposta do jogo não será consensual -, na Utilidade vos expliquei por que caminhos o jogo vos vai levando, a Moralidade é a minha forma de ilustrar como é nos sentimentos que esta obra vos vai tocar.

Já escrevi que nem sempre vocês irão pelo caminho que preferem. Um ou outro personagem não poderá ser persuadido. Mas no meu caso, pela forma como dei certas respostas ou tomei certas decisões, nunca senti que a alternativa fosse totalmente desajustada: se me inclinei para certas convicções ao longo do jogo, a decisão tomada nas Scales é apenas o reflexo natural de onde a minha entourage deve ir. Mas tudo é muito natural, muito humano no mundo de Norzelia. Há magia, mas os problemas são acima de tudo de seres humanos.

E porém, por vezes arrependi-me.

Estudasses!

Numa decisão consciente em que tive de me separar de alguns personagens temporariamente, sofri baixas inesperadas. Personagens que não consegui recuperar. Ou porque cheguei a um ponto da história em que já fui incapaz de ter toda a gente a seguir o desfecho democrático das Scales e a extremar-se em relação ao grupo. Não fazia ideia que tal ia acontecer, pelo que apostei mais ou menos de forma igual em todos os personagens. Esses personagens abandonaram-me.

E eu, que fiz? Sorri, de ironia, de alguma incredulidade. Mas também de “sim senhora, boa escrita” ou de “não estou a ter mais do que mereço”. Sem me aperceber, as 30 e muitas horas ao longo de duas semanas foram incutindo em mim a convicção de que o que vier, virá. Eu, que em Fire Emblems faço soft reset para não perder nenhum personagem de forma permanente, jamais voltei atrás num save em Triangle Strategy. Eu, que à partida para este jogo me via totalmente alinhado com a Utilidade, pragmática, fria, dei por mim a tomar uma decisão de Moralidade perto do fim. Não fui capaz de não o fazer, pelo tipo de decisões que tomei antes. Mecanicamente não faz mal: terei o New Game + para ver todos os desfechos e recrutar todos os personagens jogáveis.

Triangle Strategy é um jogo com várias referências não só do sub género dos RPG tácticos mas também dos RPGs em geral. Se se lembrarem da Ritz, de FF Tactics Advance, ela pintava o cabelo de rosa para não se sentir gozada pelos colegas porque o seu tom natural era o branco e chamavam-lhe velha. Em Triangle Strategy, há todo um povo cujo cabelo é naturalmente rosa e são, em contrapartida, a minoria mais desfavorecida. Há felizmente o abandono de FF Tactics em ter uma data de personagens genéricos apenas para combater, sem relevância narratiava: nisso Fire Emblem sempre foi melhor a fazer-nos preocuparmo-nos com todo o exército.

A Moralidade da história (se ainda não perceberam como vos ilustrei a última das convicções, lembrem-se que às vezes apenas decidimos o que está certo ou errado, sem pensar nas consequências)? Triangle Strategy é um manual de como refrescar todo um género, seguindo em frente com um legado de 30 anos por detrás. É certo que ainda poderia ter ido mais longe sem sacrificar a sua premissa, mas mais uma vez, a visão dos developers foi realizada sem concessões comerciais, ou preocupações em ter de abrangir um público demasiado vasto. Foi número um de vendas na semana de estreia no Japão , onde o género tem mais adeptos, mas os RPGs tácticos já têm o seu espaço fora do nicho pelo mundo fora. Um título a não perder – se se atreverem!