Ah, lá vêm os fanboys do dirty pleasure dos musou dar o sermão de domingo…”.

Tento na língua, meninos, que já têm idade para ter respeito aos musou, esse género criado à custa de muita pancadaria. Também não falam assim à vossa mãe, pois não? Então vejam lá se não querem ficar um mês sem televisão!

Se, como o nosso querido líder me tem feito acreditar, a demográfica do Rubber é madura, o último parágrafo deve ter reavivado algumas memórias. Isto para dizer que após testar Fire Emblem Warriors: Three Hopes, já é altura de acabar com o preconceito em torno dos hack n’ slash da Omega Force – pelo menos aqueles que se inspiram noutros IPs da Nintendo – de como são absurdamente repetitivos e acabam sempre em tédio. A chave está na moderação – não deste jogo em si, mas de quantas vezes se decidam expor ao género. Só porque não recomendamos comprar FIFA, NBA 2K ou Call of Duty todos os anos, não afirmamos que não são jogos muito bem conseguidos, pelo menos vistos mais espaçadamente.

Faço questão de largar logo o sermão todo pois também eu olhava para os musou com desconfiança. Especialmente quando o cruzamento é feito com Fire Emblem, esse amor seguro que nutro há quase 20 anos, pois jamais quereria ver a franquia vulgarizada por algo menor. Mas no final o casamento faz imenso sentido: a série sempre nos fez pegar num exército de elite contra muitos mais inimigos, pelo que a pancadaria absurda e desenfreada é uma legítima e divertida alternativa ao ritmo pausado de um RPG táctico.

Para quem os musou são uma besta.

IMENSOS INIMIGOS, MAS CONTEÚDO TAMBÉM

Não é novidade que a Omega Force trata os IPs onde procura incorporar o género musou com imenso respeito, o que evita que cada iteração seja apenas uma muda de roupa do mesmo jogo. Fire Emblem Warriors: Three Hopes só tem de Warriors as sequências de combate, enquanto tudo o resto transpira o espírito e jogabilidade da franquia da Intelligent Systems.

Ao contrário do seu antecessor, Fire Emblem Warriors, a premissa em Three Hopes leva-nos a conduzir um mercenário(a) possuído por uma entidade sobrenatural enquanto este tropeça no caminho dos três protagonistas de Fire Emblem: Three Houses, Edelgard, Dimitri e Claude. Esta diferença central atira o personagem jogável de Three Houses, Byleth, para um papel de antagonista enquanto o nosso avatar, Shez (que agora, graças a Deus e a Naga, tem voice acting!), acompanha e influencia uma das três casas que correspondem aos reinos da região de Fódlan. Em vez de dividido em duas partes de dimensão semelhante em que na primeira os personagens são alunos da Escola de Oficiais de Garreg Mach e na segunda, passados alguns anos, os reinos entram em guerra, essa primeira parte desta história alternativa à de Three Houses é apenas um prólogo (desnecessariamente) extenso e o grosso do jogo a fase de guerra.

No acampamento os NPC levam esta cena da guerra a sério.

Ah, a guerra, esse mote central de Three Hopes e pretexto ideal para cenas de pancadaria sem fim. Sinto que a Omega Force fez de Fire Emblem um bom filme de domingo à tarde, em que cada personagem é um qualquer Stallone, Schwarzenegger ou Seagal capaz de arriar em tudo o que mexa. Há uma preocupação táctica nas batalhas, nas quais convém dar ordens aos personagens na batalha com que não estamos activamente a jogar para ir limpando bases inimigas enquanto nos dedicamos a outra missão – se quisermos que toda a gente chegue viva ao final ou para termos uma classificação mais elevada, claro está. No nosso acampamento entre missões, todas estas boas práticas são frequentemente recompensadas com itens ou recursos ajustados à qualidade do nosso desempenho. Na dificuldade standard, não senti grandes problemas em manter todo o meu exército vivo salvo em capítulos mais avançados – e muita dessa dificuldade veio de eu ter passado à frente algumas missões opcionais que me dariam mais experiência e recursos.

Algo que Three Hopes também faz muito bem é dar-nos total agência de como queremos jogar. Nas opções de início de campanha podemos não só escolher o modo Casual (todos os personagens secundários mortos regressam no capítulo seguinte) ou Clássico (quem morre…pronto morreu), mas também a frequência com que o jogo nos pausa a acção ao apresentar missões em batalhas ou menus adicionais de preparação. Como assumido micro gestor que sou, coloquei todo o ênfase na preparação, escolha das builds, armas e classes. Mas a verdade é que há um botão que optimiza tudo e nos deixa focar na acção se assim quisermos. Dá perfeitamente para ignorar as longas sessões de acampamento e colocar tudo em piloto automático que o jogo se termina completamente. Tenho sérias dúvidas é que essa abordagem automática seja ideal para quem quiser bater os desafios das dificuldades mais elevadas e fazer completionist ao jogo.

Um dos personagens nunca vistos mas mencionados em Three Houses, Holst, irmão da irritante Hilda.

Ou então que se lixe: tantas vezes optei por pagar (com dinheiro do jogo, que não achei micro transações, graças a Naga) ao Mestre de Treino para subir o nível às minhas personagens menos usadas para as ter sempre à altura da história principal. Ter opções de como quero experienciar Three Hopes é algo em que mais jogos deveriam apostar, especialmente AAA cujo público é alargado e heterogéneo.

No combate, demorei umas valentes horas a habituar-me à lógica de ir em busca dos bosses e mini bosses em vez de matar tudo o que via – bem como a câmara quando me focava num inimigo específico. O sistema de pedra-papel-tesoura entre diferentes armas está de volta, sendo o único grande desvio face a Three Houses, onde esse triângulo não existiu pela primeira vez na franquia. Claro, há muito esmagar do Y e do X para arriar nos maus, mas creio que a Omega Force criou um sistema de batalha equilibrado em que podemos usar qualquer personagem.

RESPEITINHO PELA TUA MÃE…E PELO IP

Tudo isto faz imenso sentido – afinal, é um musou, quem quer saber de escola? Venha a guerra e a porrada. Mas jamais alguém se agarrou a um jogo da Omega Force pela sua qualidade narrativa e aqui também não será o caso. O jogo não precisa. Sendo o único musou que joguei falta-me termo de comparação, mas a confiar nas sábias análises do Ricardo Correia e do João Machado a outros crossovers do género, creio que Three Hopes está uns bons furos acima, ainda que atrás de Three Houses.

É possível usar Three Hopes como porta de entrada para Fire Emblem (já voltaremos a esse assunto), mas a experiência é bem mais rica para quem já tiver jogado Three Houses. Se narrativamente isto é mais um “What If…?”, em termos de lore são exploradas personagens apenas referidas por nome em Three Houses, algumas das quais até jogáveis. São pormenores deliciosos que me encheram o coração num universo onde passei tantas horas – ainda mais sabendo que a Intelligent Systems esteve diretamente integrada na equipa de desenvolvimento da Omega Force, com Yuki Ikeno a coordenar a escrita tal como no original.

A atenção ao detalhe em tudo o que acontece à volta do combate é um bom augúrio para quem anda a fazer estes jogos. Aproveitando a vantagem de não ter acesso a este jogo antes do seu lançamento, dá para contextualizar melhor as opiniões que vão surgindo, particularmente de quem classifica o jogo mais pela negativa. Vi muitos reviewers que se perguntavam: porque é que a Nintendo permite que mais um Warriors veja a luz do dia? A resposta curta e grossa é que Fire Emblem Warriors vendeu um milhão, Persona 5: Strikers vendeu 1,3 milhões, Hyrule Warriors: Age of Calamity vendeu 4 milhões e este Fire Emblem Warriors: Three Hopes vendeu 100 mil cópias na sua primeira semana. Mas eu acho que o motivo é mais profundo e tem diretamente a ver com a qualidade com que a Omega Force faz a adaptação do seu género a outros IPs, que mostra a competência e desejo em criar uma experiência, ironicamente, única.

Será este um dos Machados do Ano?

NÃO SEJAM HATERS, AMIGAS

Ainda não tenho 100% certeza quem é o público alvo disto. Se me parece líquido que amantes de musou não pensam duas vezes antes de o comprar, não sei se o apelo é maior a quem gostou de Three Houses (o meu caso) ou quem procura uma porta de entrada para Fire Emblem através de um género mais pipoca de domingo à tarde do que o RPG táctico (os criadores deram uma interessante entrevista onde exploram o tema à Nintendo Dream que podem consultar traduzida na Nintendo Everything).

Uma coisa deve ficar clara: em Three Hopes há muito pouco da experiência tradicional de Fire Emblem e bastante da experiência moderna, para a qual a franquia se tem moldado desde os lançamentos na 3DS. Quem não gostou ou não se sentiu atraído por Three Houses, ou gosta de jogos Warriors ou então mais vale passar este à frente. Dada a popularidade cultural de Fire Emblem nos dias que correm entre os jogadores da Nintendo, é para mim claro que o género do RPG táctico foi transcendido pelo excelente worldbuilding que Three Houses nos trouxe com o lore de Fódlan e os seus personagens – algo ao nível dos universos de Arkanea (de onde conhecemos Marth e os primeiros jogos da série) ou Tellius (da geração GameCube e Wii).

“Ouvi dizer que só escolhes avatares masculinos…”

Fire Emblem Warriors: Three Hopes está mais do que recomendado. Mas não se metam a completar musou todos os anos porque o fascínio desgasta-se. Não sei se terei coragem para fazer as três playthroughs que requerem ver todos os cenários possíveis, pois já fiz mais do que isso com Three Houses ao longo de ano e meio e tudo tem um limite. Se ainda assim têm medo de não gostar, puxem a demo da eShop e vejam por vocês mesmos. Não vejo vergonha ou guilty pleasure em jogar musou, tal como amo Velocidade Furiosa ou o Universo Cinemático da Marvel de peito cheio. Ambos novos clássicos de filmes de domingo à tarde – mas é tão bom, não é?